domingo, 21 de outubro de 2012

O chamado de Fobetor


  Apenas não sabia explicar. Cesar se encontrava em um bosque escuro, tomado por árvores de folhagens negras como a noite e não tinha a mínima ideia de como havia chegado ao maldito lugar. Sentia-se imensamente confuso, tomado pelo mais completo terror. Sua última lembrança era do momento em que se deitava na cama, disposto a esquecer de seus problemas e adormecer profundamente, esconder-se de seus dilemas em seu subconsciente, em lugares impossíveis de serem alcançados pelos maus pensamentos.

 Tinha quase certeza de que estava sonhando, mergulhado em um de seus devaneios sem sentido. No entanto, o vento frio que lhe castiga o corpo lhe faz desconsiderar a primeira hipótese e pensar seriamente na possibilidade de estar realmente em um bosque de alguma parte distante do mundo, caminhando sem rumo, perdido como um andarilho sem lar. Um cheiro acre lhe toma as narinas, lhe provocando náuseas. Sensações reais demais para serem percebidas em uma cena construída por sua imaginação. Um cenário sólido e palpável e acima de tudo, assustador, como que retirado de um terrível pesadelo.

  Cesar caminha por entre as árvores de madeira viscosa e de coloração extremamente escura, que lhes dão um tom um tanto irreal, difícil de se ver na natureza da realidade. As folhas são negras como pena de corvo e o gramado do bosque é de um verde escuro que quase provoca ardência nos olhos. O vento uiva espectralmente por todos os cantos, como que protestando furiosamente contra alguma injustiça desconhecida pelos homens. O resto é absoluto silêncio, tão presente, que tornar-se quase audível.

  O firmamento é apenas um espaço escuro e sem vida. Não há estrelas ou qualquer outro corpo espacial. Apenas o negro se faz ver. Cesar olha para o infinito de escuridão e imagina formas no vazio, rostos cobertos de expressões entristecidas, castigadas pelo sofrimento. Há pessoas lhe observando do firmamento morto, indivíduos estranhos e de existência insignificante para o universo, seres sem corpo e alma. Apenas faces disformes, que lhe fitam intensamente, algumas movidas por mera curiosidade, outras pela inveja, pelo desejo de poder possuir um corpo humano como o de Cesar, pela vontade de serem um dia capazes de sentimentos honrosos e de desfrutar de uma vida comum, como a do homem afortunado que caminha desesperadamente pelo bosque, em busca de uma saída da terra dos sonhos, que começa a lhe soar um tanto aterradora.

  Após caminhar por incessantes e quase eternos minutos, Cesar encontra uma clareira. Nela há um tronco de árvore atirado na grama e sob o mesmo uma pequena figura, vestida de trajes pequenos e engraçados, usando um gorro negro na cabeça. Parece ser um homem, apesar de ter o tamanho de uma criança e ter orelhas pontudas e pupilas finas como as de um felino. Sorri astutamente, exibindo uma fileira de dentes impecavelmente brancos, tão brilhantes que chegam a parecer falsos em meio ao bosque escuro.

  O pequeno homem levanta-se e fica de pé em cima do tronco, observando o recém-chegado com extremo divertimento, o que deixa Cesar imensamente enervado e tomado por um medo inexplicável, aquele que sentimos quando estamos diante de algo que pode acabar por se transformar em uma terrível ameaça. O homem com tamanho de criança encara Cesar, ainda sorrindo como se estivesse lembrando uma piada engraçada, e diz, fazendo soar sua voz grossa e de certo modo, até monstruosa:

- Demorou para vir ao meu encontro. Estava lhe esperando ansiosamente para jogarmos um pouco.

- Jogarmos o que? – Perguntou Cesar, incapaz de controlar uma angustiante tremedeira provocada por uma rajada gélida de vento, que já começava a tomar conta de todo o seu corpo. – Isso é um sonho? Onde estou afinal?

- Sim, você está sonhando, pelo menos por enquanto. Se pretende manter esse bosque como um lugar agradável é melhor seguir minhas regras e vencer o jogo, ou caso contrário, teremos um grande problema pela frente. – Disse o pequeno homem de orelhas pontudas, exibindo uma expressão que transformou todo o seu rosto em uma careta repugnante, repleta de maldade. Cesar podia jurar ter visto dentes pontiagudos surgirem da boca do terrível anão, além de uma mudança rápida na cor de seus olhos, que passaram do negro sem graça para um vermelho sangue que o fazia pensar em morte.

- Pode pelo menos me dizer seu nome? – Perguntou Cesar, sentindo-se um idiota por estar tão assustado dentro de seu próprio sonho.

- Não creio que seja uma informação importante e que sirva para te salvar caso falhe, mas se está tão incomodado para saber como me chamo, tudo bem, lhe direi. – Disse o anão, com um sorriso insano no rosto. – Sou Fobetor, visitante de sonhos alheios, amante da imaginação humana. Podemos começar agora ou ainda quer me perguntar algo? – Questionou Fobetor, um tanto impaciente.

- Se isso for me deixar livre de você, então vamos começar logo com esse seu maldito jogo. – Disse Cesar, tentando parecer valente, mas incapaz de esconder o terror estampado em seu rosto.

- Ótimo! – Disse Fobetor, dando três rápidas piruetas no ar, caindo de pé com uma graça invejável e com o mesmo sorriso enlouquecido em seu rosto. Cesar tinha certeza de que os olhos do anão haviam novamente mudado de cor, adquirindo de uma vez por todas uma coloração avermelhada marcante e intensa. – Adoro adivinhações, sabia? Gosto também de pessoas inteligentes, que tem a capacidade de decifrá-las. Faremos uma divertida brincadeira. Lhe farei três perguntas. Elas são sua condição de liberdade desse bosque sombrio. Caso consiga acertá-las, estará livre para despertar e viver sua vida novamente. O que acha? Não é uma ótima proposta?

- E tenho outra opção? Minha opinião vale de alguma coisa para você? – Perguntou Cesar, irritado.

- Me responda se é ou não uma ótima proposta e cale-se! – Vociferou Fobetor, exibindo presas afiadas em sua boca e fazendo seus olhos faiscarem como chamas em um destrutivo incêndio.

- É sim. Maravilhosa. – Disse Cesar, submisso e quase urinando em suas próprias calças.

- Assim que eu gosto. Bom, vamos começar! – Disse Fobetor, batendo palmas como uma criança animada.


  O retumbar de tambores se fez ouvir no bosque de árvores negras, ecoando por cada canto, dando a impressão de que um exercito de homens batucava o instrumento, fazendo o ruído chegar a um nível tão alto, que os ouvidos de Cesar doeram agudamente, como que perfurados por espinhos. Fobetor gargalhou divertido, fazendo soar sua voz anormal, que fazia Cesar pensar em um gigante e não em um anão aparentemente inofensivo. Com um gesto de mãos semelhante à de um maestro diante de uma enorme orquestra, Fobetor fez o batuque dos tambores cessar. O silêncio voltou a imperar, quebrado apenas pela odiosa voz de Fobetor, que não lembrava em nada alguém humano:

- Vamos para a primeira pergunta! – Disse, seguido por um vozerio animado, que parecia vir de uma plateia invisível. – Qual é a coisa, qual é ela, que se fez para andar e não anda? Tempo! – Gritou, sendo acompanhado pelo tique-taque de um enorme relógio que surgiu bem acima de sua cabeça, flutuando misteriosamente no ar.

- A estrada. Essa é bem fácil. – Disse Cesar, suspirando aliviado, sorrindo ao ouvir aplausos e assobios da plateia invisível.

- Meus parabéns! Achei que fosse burro, mas está me surpreendendo. Bom, ainda restam duas adivinhações. – Disse Fobetor, encarando Cesar com uma expressão séria, como se houvesse sido desafiado. – Qual é o céu que não tem estrelas? Tempo! – Berrou, fazendo os ponteiros do relógio voador girarem rapidamente.

- O céu da boca. – Disse Cesar, sem pestanejar. – Falta só mais uma. Termine logo com isso.

- Muito bem. Creio que te subestimei. – Disse Fobetor, sorrindo maldosamente, como que tramando algo terrível em sua mente. – Lá vai a última e crucial adivinhação, a chave para sua liberdade.  Vive em remorso, algo terrível atormenta, culpa de um erro nefasto, a mulher em prantos pede clemência. Quem sou eu? Tempo! – Berrou Fobetor com sua voz monstruosa, observando o terror tomar posse da expressão antes serena de Cesar, agora banhada em suor.


  O que aconteceu em seguida fez Cesar perceber que não estava sonhando de todo. Algo do que estava presenciando era de fato real, tornando possível suas lembranças serem incorporadas ao dito sonho, como se estivesse acordado. A cena que havia tentado evitar durante semanas surgiu viva em sua mente. Estava novamente na rua 44, diante de uma mulher indefesa, que desesperada chorava diante de sua presença, pedindo clemência, aterrorizada pelo destino que lhe aguardava. Cesar estava sob o efeito de drogas fortes e fingiu não ouvir o choro angustiado. Tomou todos os cuidados possíveis para alcançar o estado de insanidade no qual se encontrava, a única maneira de reunir coragem suficiente para seguir adiante em seu ato sádico e doentio.


  Odiava ser ignorado. Não poderia engolir uma vagabunda qualquer lhe fazendo pouco caso, lhe tratando como um homem comum. Cesar sempre era o centro das atenções, a estrela das festas, o cara que chegava para animar, fazer barulho, contagiar a todos com seu pó branco especial. Não poderia perdoar alguém que o fizesse se sentir um verme. Havia se acostumado a ser tratado bem por seus clientes e pelas putas que costumava conhecer nas espeluncas que visitava. No entanto, a garota de tranças longas e pele branca como neve, lhe dirigiu um olhar repleto de desprezo e lhe ignorou, como se não houvesse ninguém ao seu lado. Isso Cesar não podia aceitar. De maneira alguma.


  Por isso a castigou com todo o seu ódio reunido nos punhos, os quais usou para espanca-la até a morte, em um beco escuro e fétido da rua 44. É claro que antes de terminar o serviço tratou de fodê-la com o restante da raiva que ainda insistia em perturbá-lo, fazendo-o se lembrar da humilhação de ser destratado na frente de todos os seus conhecidos, seus estimados camaradas. Tudo resolvido na penumbra do beco, sob as sombras de uma noite sangrenta e que ficaria marcada em seu subconsciente pelo restante de sua miserável existência.


  No momento em que quebrava cada osso da face da garota com seus socos bem ordenados, Cesar nada sentia, apenas um imenso e inarrável prazer por estar fazendo justiça com sua próprias mãos, por estar vingando sua abalada autoestima de traficante. Após ter terminado o serviço e ter parado por um único momento para vislumbrar sua obra de arte, o remorso lhe caiu como uma pedra no crânio, fazendo-o perceber o quão monstruoso e desumano o pó branco da alegria havia lhe tornado. Destituído de emoções, um saco de carne sem sentimentos, capaz de desfigurar uma pobre garota, apenas por ter sido descartado, por ter sido vítima do direito de escolha de uma mulher bem resolvida.


  Por semanas havia sido perseguido implacavelmente pelo fantasma da culpa, que o fazia se recordar de cada segundo em que seus braços fortes iam de encontro ao rosto sensível e frágil da garota, que nunca mais teria a oportunidade de desprezar alguém novamente. Recordava-se de sua frieza, que não era refreada nem diante dos ruídos terríveis de ossos sendo partidos, dilacerados em milhares de pedaços. Prazer sanguinário e imediato, que logo se converteu em pesar e arrependimento, que nunca seria apagado de sua memória.


  E agora estava diante de seu próprio julgamento, na forma de um anão de olhos vermelhos e flamejantes. O mesmo que levantou os braços para o firmamento negro e sem vida do bosque de sombras, gritando com todo o ar de seus pulmões, com sua voz desumana e monstruosa:

- O tempo acabou! A resposta é Cesar! – Disse Fobetor, gargalhando divertido. – Quais são suas palavras finais?

- Me perdoe! Eu estava dopado! Acabei perdendo o controle! – Berrou Cesar, deixando lágrimas cristalinas escaparem de seus olhos.

- Não é comigo que você tem de se acertar. – Disse o anão, sua voz soando como trovão, olhos vermelhos brilhando como raios em uma tempestade. – É consigo mesmo. – Terminou, crescendo de tamanho de uma hora para outra, ganhando cabelos grandes e de longas tranças, pele branca e macia, e um rosto suave de mulher, amassado aqui e ali pelo o que pareciam ter sido socos violentos, nariz virado em um ângulo um tanto impossível de ser imitado e queixo torto para o lado, quase que arrancado da face. A imagem perfeita do que havia se tornado a bela mulher desprezadora de usuários do pó branco da alegria.


  O bosque tornou-se ainda mais escuro, sendo tomado por uma neblina negra, cheirando a pura morte. Lobos uivaram de algum lugar distante, quebrando o silêncio sepulcral e fazendo o coração de Cesar disparar desesperadamente no peito. Um raio vermelho rasgou o firmamento, derrubando duas árvores em chamas. A mulher desfigurada avançou alheia a tudo, encarando Cesar com desejo de vingança nos olhos. A escuridão cegou Cesar, deixando-o na espera de seu julgamento final, que continuou avançando, passos ecoando por toda a imensidão do bosque imerso em eternas sombras.


sábado, 20 de outubro de 2012

Medo do escuro

  Dez horas da noite, horário um tanto injusto para se ir dormir, ainda mais quando ainda se é uma criança. Kevin pretendia ficar acordado até mais tarde, para assistir a alguns programas de seu interesse, assuntos comuns da recém-iniciada puberdade. Tinha um plano simples em mente. Ficaria enrolando no sofá até ser esquecido por seus pais, tendo a sua disposição a televisão e toda a programação desejada ao alcance das mãos. No entanto, o mundo não é fácil para um garoto de apenas dez anos. Existem regras que devem ser cumpridas, leis rigorosas impostas pelos pais, tais como ir deitar-se bem cedo, para estar disposto encarar a escola no dia seguinte.
  Não há discussão nessas situações. Qualquer palavra pode ser interpretada como rebeldia, resultando em um castigo amargo pelo restante da semana. Kevin não quer correr esse risco. Preza por sua liberdade e pela diversão com os amigos todas as tardes, jogando bola em um dos campos de futebol próximos de sua casa. Um dia sem seu passatempo preferido e Kevin jura ser capaz de enlouquecer. Sendo assim, caminha até sua cama sem pestanejar, sendo seguido pelo olhar vigilante de seu pai, que o segue até o antro de seu descanso, apenas para ter certeza de que não vai ser enganado. Kevin é persistente. Tem um segundo plano em mente, mas só pensa em coloca-lo em prática mais tarde, quando seus pais estiverem mergulhados no chamado sétimo sono.
  Deita-se e recebe o boa noite de seu pai, fechando os olhos, fingindo-se sonolento e quase adormecido. Chega quase a sentir vergonha de si mesmo, por ser tão falso, quase um ato de primeira categoria. Aguarda pacientemente, até que o silêncio toma conta de toda a sua casa. Deitado em sua cama, olhando para o teto, Kevin luta contra os primeiros sinais de sono que tentam domá-lo. O garoto é forte e não pensa em dormir cedo. Tem algo de muito tentador lhe esperando na televisão, garotas lindas, as quais pretende arrastar mais tarde para seus sonhos. Bela e insaciável pré-adolescência, capaz de mexer com os hormônios de qualquer ser vivo na terra.
  Levanta-se na ponta dos pés. Usa meias, o que faz suas pisadas soarem silenciosas no vazio do quarto, quase imperceptíveis. Já é madrugada, Kevin começa a sentir sono mais é possuído por uma necessidade incontrolável de dar ao menos uma vislumbrada rápida nas belas mulheres sempre sensuais dos programas noturnos. Caminha para a saída de seu quarto, mas antes que possa deixa-lo para trás, um som de pancada contra madeira lhe faz parar assustado, com o coração martelando dolorosamente no peito. Olha na direção do ruído, deparando-se apenas com a escuridão, pesada e implacavelmente presente. Recua diante das trevas, correndo em direção a sua cama, lançando-se sob a proteção de suas cobertas e lençóis.
  Kevin desde bem pequeno, sempre carregou em seu íntimo um medo inexplicável do escuro. Segredo que guarda sigilosamente e que poderia torna-lo motivo de chacota em seu grupo de amigos. Não consegue explicar o motivo de sua fobia. O fato é que diante da escuridão, sua coragem se desvanece feito gelo no calor, deixando-lhe acuado e assustado. O problema é sua imaginação, sempre exagerada demais, capaz de criar formas em meio ao escuro, dando-lhe corpo e até mesmo expressões. Em certas ocasiões, chega a ouvir vozes nas trevas, chamando-lhe, convidando-lhe para algo que prefere não conhecer.
  Recorda-se de quando tinha apenas cinco anos. Estava sozinho em seu quarto, em uma noite de intensa tempestade. Raios protestavam do lado de fora, produzindo clarões fortíssimos, que rasgavam a escuridão a todo o momento, produzindo sombras disformes no quarto de Kevin. O garoto olhava para a parede, tremendo de medo em sua cama, resistido bravamente ao desejo de ir ao quarto de seus pais e dormir junto deles, protegido de qualquer perigo. No entanto, seu orgulho de garoto e futuro homem o impede de um ato tão covarde. Persiste em seu canto, mesmo amedrontado, lutando bravamente contra o terror que se apossa de seus sentidos, transformando as sombras distorcidas em formas abominadoras, monstros feitos de trevas.
  Então, em um dos clarões repentinos, uma criatura surge diante de seus olhos, real como a tempestade que despenca do lado de fora da casa. Um ser de pele verde e fedorenta, gotejando algo que não dá para ser identificado, mas de consistência viscosa e coloração amarelada. Possui garras longas e pontiagudas no que deveria ser tido como mãos e olhos vermelhos, como sangue. A criatura lhe encara, e sorri com sua fileira de dentes afiados, ansiosos por mergulharem em carne macia de criança. Kevin grita diante da visão, grita até ser acudido pelos pais, resgatado de seu pesadelo, que ao contrário dos outros que desaparecem com o retorno da realidade, dispara para fora do quarto, ocultando-se em meio às sombras, fieis protetoras das aberrações noturnas.
  Lembrança desagradável, que ainda continua aterrorizando Kevin nas noites de insônia. Um medo do qual nem as mulheres sensuais dos programas noturnos poderiam fazê-lo esquecer, isso porque Kevin ainda pensa que a criatura de pele verde não era fruto de sua imaginação e sim algo real, de carne e osso. Tão real que poderia mata-lo, arrancar-lhe as tripas e de quebra ainda comer-lhe os olhos. Kevin tem medo de que a coisa o visite novamente. Quem sabe, um reencontro mágico, com a criatura abrindo a boca e exibindo sua fileira invejável de presas, capazes de partir uma tábua de madeira ao meio, com uma facilidade incrivelmente assustadora.
  Kevin tem sido mal. Merece uma punição. Tem mentido demais para os pais, inventado histórias para se livrar de situações complicadas. Colas nas provas da escola, programas inapropriados durante a madrugada, envenenamento do cachorro do vizinho, (esse só por odiar o animal, um cão atrevido, pequeno, mas corajoso o bastante para morder a perna dos que se atrevessem a desfilar diante de seus olhos), além de um mundo gigantesco de pequenas infrações, terríveis quando se é apenas uma criança. E o castigo está prestes a chegar e não vem na forma de uma chinelada da mãe nem uma bofetada do pai, mas sim na encarnação real de um carrasco.
  Um cheiro pútrido toma conta do quarto e Kevin quase tem certeza de saber a quem pertence, mas prefere ignorar sua sabedoria, rezando para estar completamente errado em suas suposições. Descobre parte de sua cabeça e encara o seu castigo, de pé, na forma de uma criatura esverdeada, com a pele coberta por uma gosma viscosa, de coloração amarelada e nojenta. A coisa lhe encara e sorri, exibindo seus belos dentes afiados. Dessa vez, ninguém ira socorrer o pobre garoto, que já começa a gritar, com toda a força de seus pulmões. A criatura avança, ignorando o desespero de sua vitima, que berra como se não houvesse amanhã.
  A criatura arranca o cobertor da cabeça de Kevin e o empala com suas garras enormes e afiadas. Kevin chia desesperado ante ao aperto das unhas da criatura, incapaz de continuar a gritar. Sabe que não há mais salvação. Seus dias como garoto tarado e assíduo telespectador das garotas da madrugada estão terminados. A criatura o arrasta, levando-o para a escuridão existente sob a cama, onde os dois mergulham. Logo, a dor se faz sentir, acompanhada de ruídos molhados, de carne sendo mastigada. Kevin grita por uma última vez e logo o mundo desaparece diante de seus olhos e mergulha em meio à escuridão, sufocando-se junto de seu medo infantil do escuro.