O camaro 74 rasgou a estrada em
alta velocidade, ignorando as placas que alertavam sobre o limite de
velocidade, que não passava de 80 quilômetros na interestadual. O motorista
chama-se George, um homem branco e alto, com um cabelo arrepiado no melhor estilo
Elvis Presley. Sujeito metido à besta. Acredita piamente que seus óculos
escuros lhe dão um ar sensual, capaz de seduzir qualquer garota que surgir em
seu caminho. Não sabe que está ridículo aos olhos dos outros, um verdadeiro
idiota tentando se passar por um cara elegante. Também, não há ninguém para
alertá-lo de seu visual vexatório. Está no meio da estrada, em meio ao mais
puro nada. Não tem destino. Um louco viajando sem rumo, apenas disposto a
apreciar o que há de melhor em seu país.
Seu plano era atravessar todo o território nacional, conhecer novos
cenários, cidades de todos os cantos, pessoas novas. Está tremendamente cansado
de sua rotina repetitiva. Antes de partir em sua jornada insana, George
trabalhava como entregador de pizza em Boston. Uma profissão nada gratificante,
ainda mais quando já se está com quase trinta anos nas costas. Quando
adolescente, sonhava em ocupar um lugar de respeito na sociedade, talvez como
um empresário bem sucedido, alguém de renome. Não chegou nem perto. Deixou de
estudar ainda novo, pensando em aproveitar a vida, desfrutar do máximo de
garotas possíveis, pretensão normal para qualquer jovem rapaz, ainda mais
quando se está com os hormônios a flor da pele. Tornou-se um derrotado, sem um
futuro brilhante no horizonte.
No entanto, algo de bom aconteceu. George é grande amante dos jogos de
loteria. Não deixa de tentar sua sorte uma única semana sequer, habito que
aprendeu com o pai, que morreu sem ganhar um único tostão em tais apostas.
Porém, a história de George foi um pouco diferente. Faturou uma quantia
interessante acertando uma quina por acaso, pois nesse dia, apostou em números
distintos, sem qualquer tipo de ligação com sua vida, ao contrário da grande
maioria das pessoas, que preferem arriscar-se com numerologias ligadas a datas
especiais e marcantes, algo que nunca premiou ninguém.
Nunca havia visto tanto dinheiro em suas mãos em toda a sua
insignificante existência. Levado pela alegria incontrolável, George decidiu
viajar sem rumo, pegando qualquer estrada que surgisse em seu caminho. Tinha
como se sustentar em sua aventura. Poderia garantir-se tranquilamente em
qualquer canto do país, podendo privar-se de qualquer tipo de preocupação.
Sentia-se livre, desacorrentado de suas obrigações, das implicâncias da mãe,
que sempre fazia questão de lhe lembrar do fracasso que haviam sido suas
tentativas de conquistar uma profissão melhor, realizar-se como pessoa. Nada
mais importava. Nada.
Tanta felicidade não poderia existir sem estar acompanhada de uma frustração.
Nada pode ser perfeito. Essa é uma das regras cruciais da vida. Não foi
diferente com George. Havia planejado percorrer ao menos cem quilômetros sem
uma única parada, objetivo frustrado por seu camaro 74. O motor do veículo, já
um tanto desgastado pelo uso, pifou, deixando George na mão. Sentia-se como um
verdadeiro imbecil. Tinha o dinheiro necessário para dar uma geral em seu
carro, mas tinha se esquecido de tal precaução. Agora, encontrava-se
completamente abandonado no meio da estrada, distante de qualquer tipo de
civilização. Teria que se virar.
Não se deixou tomar completamente pelo desânimo. Próximo de onde se
encontrava, havia a única esperança. Uma cidade se destacava em meio à
paisagem. Não se apresentava agradável. Em realidade, por seu aspecto deplorável,
parecia estar abandonada há bastante tempo, por anos incontáveis. Era sua única
alternativa. Iniciou a caminhada até a cidade, andando com pressa. Queria
retomar sua viagem o mais rápido possível. O primeiro destino de sua lista
seria Las Vegas, onde apostaria mais uma vez em sua sorte. Poderia acabar
ficando rico. Quem sabe? Sua boa fase poderia lhe presentear com uma pequena
fortuna, o bastante para calar de uma vez por todas a boca de todos os
desacreditados em sua vitória. Acabar com a sina de pobreza incrustada em sua
família, colocando-a no ponto mais alto da sociedade.
Havia uma placa bem na entrada, com o nome da cidade gravado em letras
brancas, grandes o bastante para se fazerem ver de uma distância considerável.
Greenville, esse era o nome do lugar. George já tinha ouvido essa nomenclatura
uma vez, só não conseguia se recordar onde e muito menos quando. A única coisa
que lhe interessava, era conseguir encontrar alguém capaz de lhe ajudar a fazer
o pobre camaro voltar a funcionar novamente. Depois, se concentraria novamente
em sua viagem, nos destinos infindáveis que tinha em mente. Tinha de aproveitar
a vida, pelo menos, enquanto durasse o seu prêmio.
Caminhou por entre os prédios de Greenville, construções decadentes,
desoladas pela passagem implacável do tempo, que havia lhes tirado a vivacidade
da pintura, a firmeza de uma estrutura capaz de suportar qualquer tempestade. Estava
um tanto deslumbrado. Muitas histórias tinham acontecido na cidade, em épocas
passadas, acontecimentos diversos. Em sua cabeça a imaginação trabalhava aguçadamente,
tentando criar uma explicação razoável que solucionasse o mistério por trás do
fim de toda uma civilização. Como teriam sido os últimos dias de Greenville?
Dúvida cruel, que lhe trazia a tona o desejo de vasculhar cada ponto oculto do
local, perseguindo respostas escondidas por anos. Levantar a poeira deixada
pelo passado. Seria uma boa idéia? Certas questões devem continuar insolúveis,
pelo próprio bem de muitos, afinal, a curiosidade um dia matou um gato.
De súbito, um vulto lhe chamou a atenção. Movia-se com velocidade em um
beco estreito, sumindo de vista rapidamente. Poderia ser alguém. George
enfiou-se no beco, correndo desesperadamente. Precisava de ajuda. Não planejava
passar a noite na cidade e queria retomar a sua viagem o mais rápido possível. Avistou
o vulto ao longe, descendo uma escadaria comprida, que levava a uma porta onde
se lia o aviso: “Entrada autorizada somente para funcionários da prefeitura”. George
ignorou o alerta. Desde criança, sempre tinha tido a capacidade nata de quebrar
regras, e não havia mudado depois de crescido. Abriu a porta, penetrando em uma
escuridão densa, de certa forma, assustadora.
Acendeu o isqueiro que costumava trazer sempre em seu bolso, iluminando o
que se encontrava ao seu redor. Uma podridão nauseante invadiu suas narinas.
Era um odor úmido, carregado do fedor inconfundível de merda. Estava bem
próximo dos esgotos da cidade. Era uma espécie de acesso alternativo, utilizado
talvez, em emergências. Caminhou com cuidado, tomando todo o cuidado possível
para não pisar em falso. Percebeu um vulto se movendo adiante, e seguiu em sua
direção. Estava um tanto irritado. Sentia-se como que usado pelo estranho que
perseguia, que parecia estar jogando, divertindo-se com o seu desespero por
estar em um lugar desconhecido, e para piorar, longe de casa. Muito longe.
Seguiu o som dos passos do vulto, indo parar em um beco sem saída. Não
havia mais para onde ir. Tentou raciocinar, pensar a respeito do que faria. Um
ruído de água escorrendo ao fundo atrapalhava suas idéias, deixando-o desconcentrado,
ainda mais perdido do que realmente estava. Então, sem aviso prévio, seu
isqueiro resolveu apagar-se, abandonando-o na mais completa escuridão. Tentou
acendê-lo novamente, mas sem sucesso. Parecia estar sem carga, justo na hora em
que mais precisava. Forçou sua vista, na esperança de conseguir rasgar as
trevas e surpreender quem quer que ali estivesse lhe observando. Porém, antes
que conseguisse ao menos visualizar as sombras que lhe cercavam algo lhe
acertou em cheio na cabeça, fazendo-o perder os sentidos de uma só vez. Caiu ao
chão inconsciente.
Quando despertou, viu-se cercado por dezenas de estranhos vestidos em
vestes negras, com suas faces ocultas por debaixo de um capuz. Todos lhe
encaravam, como que aguardando pelo momento em que recobrasse sua lucidez. Suspirou
atemorizado, com dificuldade em articular palavras. Estava completamente
desnorteado. Não sabia o que dizer em realidade. Sentia-se como que perdido em
meio às páginas de algum livro aterrorizante, ansioso por chegar ao seu fim, e
desvendar toda a trama de uma única vez.
Quando se permitiu pensar de maneira mais
ordenada, percebeu que estava atado a cordas grossas, amarrado em uma espécie
de coluna de pedra. Debateu-se como um peixe preso na rede de um pescador, tentando
escapar da armadilha de forma inútil. Por fim desistiu, decidindo-se utilizar
da única arma que lhe restava, sua língua. Disse, com a voz tomada pelo medo que
agredia seu íntimo: - O que vocês querem de mim?
- Nós nada. – Disse um dos
encapuzados, em um tom de voz sereno, capaz de trazer calma a qualquer pessoa,
menos para George, que já começava a suar frio de terror. – Você foi escolhido
por nosso bom senhor. Afortunado, terá a benção de fazer parte de nossa
importante missão, a de levar a palavra sagrada a todos os cantos da terra. Sua
jornada começa aqui, irmão.
- Do que você está falando?
Está louco? É alguma espécie de demente por acaso? – Indagou George, tomado por
uma fúria quase incontrolável.
- Logo você irá entender.
Compreenderá que sua vida vazia foi traçada para este encontro. – Disse o
encapuzado, sorrindo na escuridão, exibindo seus dentes amarelados, carcomidos
pelas cáries que castigavam sua boca. – Sei o quanto sofreu. Incompreendido por
todos, tido como um idiota sem futuro, um derrotado. Tolos. Nunca conseguiram
enxergar sua luz interior. Você foi marcado desde seu nascimento. Escolhido
pelo anjo da justiça como o messias que carregará sua verdade pelo mundo. A
hora da revelação chegou.
- Luz interior? Que papo é
esse? Messias? – Perguntou George, cada vez mais perdido.
- Sim. Você nasceu para ser um
líder. Nosso guia. O porta voz da justiça divina. – Disse o homem, afastando-se
enquanto continuava a falar. – Você irá começar a entender tudo o que estou
dizendo quando for tocado pelo poder divino. Acordará de sua ignorância, para
enfim se tornar o proclamador dos bons tempos. – Terminou, acendendo algumas
velas, para depois deixar a sala, seguida de uma fila de indivíduos trajados de
negro.
- Espere!- Gritou George
desesperado, sem ser atendido. Estava mais uma vez sozinho. Não completamente.
Sentia uma presença opressora no ambiente,
um ser poderoso, capaz de destruí-lo em um piscar de olhos se assim fosse sua
vontade. A entidade parecia estar bem próxima, examinando-o atentamente, articulando
planos nada sadios em seu silêncio espectral, perturbador. Então, George foi
tomado por uma dor agonizante, que vinha de dentro de seu corpo, do meio de
suas entranhas. Era como se uma criatura estivesse se locomovendo por entre sua
carne, perfurando-a, abrindo caminho com os dentes, dilacerando tudo o que
surgia em seu caminho. E pelo jeito, parecia estar faminta. George gritou,
sentindo um líquido morno escorrer por entre suas vestes. Era sangue. Jorrava
violentamente, de uma ferida imaginária. Não estava machucado. Isso lhe deixou
ainda mais confuso.
Sua pele começou a arder como se tivesse
sido tocada por chamas incandescentes, fazendo-o contorcer-se bruscamente de um
lado para o outro, tomado por dores anormais, daquelas que acometem mulheres na
hora do parto. Algo parecia estar penetrando por seus poros, tomando o controle
de seu corpo, transformando-o em um simples recipiente, que serviria para
abrigar uma criatura sem forma definida, mas imensamente poderosa. Sentiu sua
capacidade de pensar lhe sendo tirada, substituída pela consciência de um novo
ser, milenar, talvez, com a mesma idade do próprio início da existência. Seus
olhos desfaleceram, tomados por uma cor esbranquiçada, indefinida. Gritou desesperado,
clamando por piedade. Não foi atendido. Sentiu sua mente desaparecendo em uma
explosão violenta, despedaçando-se como uma lâmpada recebendo o impacto da
queda contra o solo. Depois disso, a escuridão se fez existir.
Abriu os olhos, com um sorriso maldoso no
rosto. Não era mais o mesmo. Na verdade, havia deixado de existir. Seu corpo
agora era ocupado por outro ser. A coisa que tinha se apossado de sua carne,
exibia uma expressão de satisfação insana na face, um prazer mórbido, daqueles
que vemos na cara de um psicopata, logo após cometer algum ato desumano,
doentio. Estava livre. Tinha esperado por séculos por uma oportunidade dessas.
Enfim, caminharia por entre os mortais. Trataria de levar sua justiça para
todos, o devido castigo aos incrédulos de sua soberania. Enfim, reinaria. Nada
poderia lhe impedir. Nada.
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