Morte é o fim do caminho? Jorge acredita que não. Viu muita coisa para
ter desconfianças dessa verdade atirada aos quatro ventos por todos que
caminham pela Terra. Céu, inferno, são conceitos que não entram mais em sua
cabeça e o fazem se envolver em uma luta íntima de teor filosófico. Real,
fantasia, não existe mais uma linha que limite o distanciamento dessas
definições. Não consegue mais saber o que é de fato pertencente ao mundo que
lhe ensinaram a enxergar desde muito pequeno, onde demônios e anjos coexistiam
em eterno combate, e Deus, um senhor de vestes brancas e longa barba, residia
na maior das alturas, a tudo assistindo com sua sabedoria infinita. Essa era a
sua noção de universo invisível, o máximo que poderia assimilar de fantasia, o
que lhe permitiam que pudesse imaginar em sua mente ainda longe de amadurecer.
Como poderia pensar que havia algo além disso? Descobriu da pior maneira possível,
que existe muita coisa que vai além da ingênua consciência humana e que quando
descobertas, podem levar um sujeito normal a mais completa loucura.
Sua atual residência é no número 198 da rua Otaviano, na pequena cidade
de Pontas, em Minas Gerais. Vive em um hospício há quatro anos, em um cárcere
que se fez necessário por sua insanidade incurável. Perdeu a linha ao ver-se
diante de coisas que fugiam ao seu controle, questões sobre eternidade que
nunca antes tinham passado por sua cabeça e que agora desfilam sem cessar por
sua mente adoentada, a ferindo ainda mais e alimentando o senso de irrealidade
latente em seu íntimo. A maldita ainda lhe surge em pesadelos intermináveis,
nos quais desperta com o corpo suado, os olhos arregalados em conjunto com sua
boca escancarada, por onde sua alma aterrorizada fugiria se fosse possível. Não
pode dizer a si mesmo que o que viu é mentira, pois sabe muito bem que isso
seria uma maneira covarde de fugir da verdade. E assim os dois lados de seu eu
se digladiam violentamente, o lado racional querendo colocá-lo como um contador
de lorotas e sua faceta crente no inexplicável berrando em alto e bom som que o
ocorrido não havia sido mero devaneio, e sim, um fato real e incontestável.
Difícil se fazer existir como um homem dividido ao meio.
A culpa é da sua tia Rita. Nunca a tinha levado a sério, não antes do
inexplicável ocorrer. Todos da família a viam como a senhora excêntrica, dona
de teorias estranhas, ideias de doida que compartilhava com quem quisesse
ouvir, mesmo sabendo que seria motivo de piada assim que se calasse. Ela acreditava
ser imortal, uma deusa condenada a vagar no meio de meros mortais, seres que
nunca conseguiriam compreendê-la. Falava que permaneceria viva após seus
conhecidos partirem para o desconhecido, para a escuridão existente depois do
último e derradeiro fechar de olhos. A parte cristã da família a evitava,
condenando-a ao inferno por dizer tantos absurdos, outros ficavam distantes,
temerosos de serem contaminados por tal loucura, e as crianças... elas a
seguiam, achando graça da tia biruta.
Jorge gostava particularmente de escutá-la, se deliciando com as tantas
estórias que a tia lhe contava, e ficava deslumbrado com a criatividade dela,
curioso em descobrir de onde ela tirava tanta imaginação. Sorria ao ouvia-la
falar que havia visto impérios inteiros caírem por sobre a terra, sociedades de
tempos passados sucumbirem ao poder inevitável que a modernidade traz ao
presente. Rita se colocava como a personagem central de suas narrativas e
contracenava com nobres de séculos deixados há muito para trás, sempre a
mocinha a viver as mais diversas aventuras, com direito a magia e o que há de
mais absurdo em matéria de fantasia. Quando restava apenas silêncio ao término
das estórias, Jorge sempre fazia questão de fazer a mesma pergunta, divertido
em ouvir a resposta padrão da tia biruta.
— E era você mesma? Como poderia se isso
aconteceu há séculos atrás? Ninguém vive tanto.
— Esqueceu que sou imortal? Pra mim nada
é impossível. — respondia tia Rita, provocando um desejo irrefreável de rir em
Jorge. O garoto se segurava. Ao contrário dos outros, não gostava de
ridicularizá-la por nada. A via como doida, mas nem por isso jogava isso na
cara dela.
Certo dia, sua mãe o proibiu de continuar visitando a tia, afirmando que
ela era uma péssima influência, alguém que o afastaria do caminho da salvação
oferecido pelo bom Deus das Escrituras. Nem tentou discutir. Sua mãe era sempre
quem dava a última palavra, a líder natural a traçar as leis que deveriam ser
seguidas sem questionamentos dos que estivessem abaixo de sua posição na
hierarquia da família feliz, comum a quase todo lar que se preze. Como bom
filho que era, obedeceu e nunca mais viu tia Rita, pelo menos não viva.
Aconteceu um ano depois da proibição da mãe. Os boatos na época foram
variados, mas ninguém conseguiu chegar a uma explicação aceitável para a
repentina morte de Rita. Alguns diziam que havia enfartado, espalhando por meio
de fofocas que a mulher não se cuidava como deveria, comia porcarias a reveria
e ficava a maior parte do tempo em casa, não se prestando a fazer sequer uma
caminhada de alguns minutos, para pelo menos diminuir os fatores de riscos das
doenças comuns a pessoas sedentárias. Outros afirmavam categoricamente que era
uma punição do bom Deus, por ela ter levado uma vida de pecados, por negar sem
pestanejar a benção de Cristo. A verdade é que nem a medicina conseguiu
desvendar o motivo da morte dela. Puro mistério, que instigava a mente de todos
e incentivava o surgimento das mais diversas teorias, por mais sem sentido que
fossem.
Apesar dos critícos que conservará em vida, tia Rita teve um funeral
caprichado, cheio de belas coroas de flores e presenteada com um caixão com enchimento
de veludo, que até os vivos gostariam de ter no quarto para descansar as costas
de vez em quando. Muita gente compareceu, a família inteira, tanto os que
gostavam dela mesmo que desgostassem de suas excentricidades e até os que por
ela guardavam desprezo por sua condição de louca de pedra. No meio da pequena
multidão reunida para dar adeus à mulher nascida para ser comentada em rodas de
boteco e nas reuniões de família que ocorriam algumas vezes por ano, estava
Jorge, o garoto olhando hipnotizado para o caixão aberto, fitando a face imóvel
da tia com visível respeito, que poderia ser chamado de temor. Em sua
imaginação de criança, a via se levantando como um morto vivo de filmes antigos
de terror, correndo de braços abertos na sua direção, gritando o seu lema que
naquele momento tanto lhe pareceu macabro, repleto de mórbida veracidade: — Sou
imortal. Pra mim nada é impossível!
Enquanto fitava a face dela em
muda reverência, algo de estranho realmente aconteceu. Por um momento, julgou
ter visto os olhos da tia se abrirem em lento movimento, as pupilas verdes da
defunta voltadas para sua direção, entrando fundo nos seus olhos, penetrando no
território proibido de sua mente e ali ficando marcados feito queimadura de
fogo na pele. Sentiu-se enjoado, o chão sob seus pés mole como gelatina, tudo
irreal demais para seu gosto, como que produto de um sonho descabido e que
facilmente desmantela o sentido de qualquer um. Olhou para baixo, acreditando
que logo desmaiaria e respirou fundo, querendo poupar-se da vergonha de cair
como um saco de farinha no meio de tanta gente. Quando abriu os olhos novamente
a ilusão havia passado, mas não o efeito dela.
Como narrar sua surpresa ao ouvir gritos de desespero partirem do bolo
de pessoas que antes velavam em silêncio o caixão, e que naquele instante de
total estranheza, corriam de um lado para o outro e instauravam o caos em uma
cerimônia que deveria seguir-se tranquila e não traumática. Homens e mulheres
faziam uma roda em volta de um sujeito caído no chão, a mão direita firme no
peito, ofegando sofridamente, vitíma de um ataque cardíaco violento, que por
certo não lhe pouparia a vida. Era seu tio Roberto, com a face avermelhada, os
olhos saltados de uma forma que prenunciavam que o pior inevitavelmente ocorreria. Ele gritou em seu último fôlego, palavras que vararam a carne dos
presentes e fizeram cada um deles sentir um frio imensurável, fruto do horror
de algo que ia muito além da capacidade de compreensão de pessoas acostumadas
ao comum e não ao que extrapola o conceito de realidade.
— Ela abriu os olhos. Imortal ela é! No túmulo não
descansará, a morte nunca a levará. Meu Deus, me proteja do mau!
Ele se calou e morreu, os seus
últimos espasmos de vida se seguindo com violência aterradora, músculos
tremendo sem controle e os dentes batendo com tanta brutalidade que a maioria
se quebrou e rolou em pedaços pelo piso de madeira da funerária, junto de
pingos de sangue fresco. Os que haviam comparecido para o enterro de Rita se
dispersaram rapidamente, uma parte fazendo sinal de cruzes com medo real
despontando nas feições e alguns poucos se afastando para providenciar a
remoção do segundo morto. Choro se ouvia vindo de todas as direções, mulheres
gritavam histéricas, o inferno havia se incorporado ao funeral, quebrando a
aura de despedida que antes por ali residia. Jorge se afastava dali junto da
mãe, o rosto uma máscara de medo. O tio também a havia visto abrir os olhos,
então... não tinha sofrido de uma alucinação. Havia sido real, mais até do que
a percepção que se tem da própria respiração em momentos de solidão, em que
nada mais se revela importante. Teve certeza de que teria pesadelos ao cair
desacordado nessa noite.
Semanas se passaram depois do evento, e Jorge não conseguiu se livrar
das recordações do bizarro funeral. O episódio era lembrado principalmente em
pesadelos, quando se via abandonado em um enorme salão repleto de candelabros, uma
mesa negra atirada no centro do recinto, onde tia Rita descansava inerte, tal o
cadáver que deveria ser após ter sido tocada pela morte. Então, ela abria os
olhos tingidos pelo verde assustadoramente cor de esmeralda, e lhe fitava
demoradamente, provando com um sorriso divertido no rosto, que afinal não era a
louca, que sim, era imortal como uma deusa, não perecível aos efeitos predatórios do tempo. Imortal. Maldita palavra que pairava pela mente de Jorge
feito folha seca desprendida de uma árvore, rodopiando de um lado para o outro,
sem nunca abandoná-lo em definitivo.
Foi assim por muito tempo. O trauma chegou a se arrastar por sua adolescência,
atrapalhando suas experiências sociais. Lembrava-se da face da tia no caixão
quando estava sozinho, mesmo quando rodeado de pessoas, por vezes até
caminhando pelas ruas da sua cidade, a vendo em vidraças de loja a lhe sorrir
zombeteiramente, os lábios tingidos por um vermelho cor de sangue que fazia a
vista doer em resposta. Jurava que podia escutar ela lhe gritando, “sou imortal! Pra mim nada é impossível!”e
ao ouvir a voz da defunta lhe tocando os ouvidos um grito era algo complicado
de conseguir se segurar na garganta, onde deveria ficar sem soar, contido para
não denunciar para Deus e o mundo o grau preocupante da loucura que se
desenvolvia incubada em sua mente feito um parasita.
Seus pais perceberam o esforço que fazia para se manter afastado das
pessoas, isolado no casulo que havia construído para si, em uma tentativa falha
de interromper o processo perigoso de irracionalidade que vinha lhe tomando o espírito.
Preocupados com o filho problemático, o encaminharam para ser tratado por um
psicológo bem conhecido na região, um profissional tido por todos como capaz de
fazer milagres, fazer sumir neuroses em seus pacientes com poucas consultas e o minimo de desgaste possível. Jorge ia para as consultas desacreditado, mas teve
de dar o braço a torcer com o passar dos meses. O psicólogo, um homem de meia idade chamado Ramon, era bom de lábia e após ouvir o relato do garoto,
conseguiu fazê-lo acreditar que tinha imaginado o episódio, isso sem desprender maiores empenhos nessa façanha. No ano seguinte Jorge era uma nova pessoa,
curado completamente do seu passado, pronto para viver como um indivíduo
normal. Mal sabia que antigos fantasmas não costumam desaparecer por completo. A
coisa ainda sobrevivia em seu cerne, apenas esperando pelo momento oportuno de
retornar à superfície.
***
Jorge tornou-se um adulto comum como qualquer outro, e construiu família
com a esposa Selma, com quem teve três filhos, separados por poucos anos de
idade em ordem de nascimento. Estava feliz, nada parecia capaz de abalar seu
mundo sustentado em puro realismo, moldado por sua mente prática, educada para
recusar qualquer conceito que pudesse dar margem à fantasias desvairadas. Nem
mesmo religião lhe chamava a atenção, apesar de ter crescido em família cristã.
Depois das inúmeras consultas com o psicólogo na infância, qualquer coisa que
ameaçasse ir para o lado do sobrenatural era suficiente para lhe causar
repulsa. Amadureceu como um cético dos mais radicais que se pode haver.
É natural que se tornasse um homem infértil para qualquer fantasia.
Julgava sua experiência quando criança como um devaneio dos mais extremos,
daqueles que acometem um sujeito que use drogas pesadas. Passou a acreditar que
naquele dia esteve demasiadamente perto da loucura, a um passo para tropeçar e
cair no abismo da insanidade. Temendo perder a linha apenas com o ato de pensar
a respeito do assunto, Jorge evitou ruminar a maldita lembrança, mesmo quando
os gritos de seu tio alucinado pela visão do impossível, ressoavam com toda a
força em sua mente, a prova incontestável do que preferia negar até a morte. O
medo era a barreira que o segurava e o impedia de adentrar na densa escuridão
da memória. Pelo menos foi por um tempo, até que um dia o dique se rompeu e a
corrente poderosa antes retida veio ao seu encontro, sem que nada pudesse fazer
para evitá-la.
Foi em uma noite de verão, em que o sono não vinha, dificultado pela
alta temperatura e pela sinfonia infernal dos pernilongos a atormentá-lo.
Fechava os olhos e esperava impaciente que adormecesse sem aviso, desejando cair
o mais fundo possível no veio de seus sonhos, mas isso lhe era negado e as
horas iam passando, em um ritmo vertiginoso, terrível de se suportar. Em certo
momento cansou-se de esperar e
levantou-se para tomar um copo de água gelada. Saiu de fininho do quarto, com
todo o cuidado possível para não interromper o descanso da esposa.
Pegou sua água e foi para a janela da sala, e lá ficou observando o
quintal da sua casa, dando goles em meio a longos intervalos, sem pressa
nenhuma de voltar para a cama. Já eram três horas da manhã e dali há outras
três horas teria que sair para trabalhar. Que diferença faria se continuasse
acordado? Para ele nenhuma, visto que havia perdido a noite inteira acordado.
Não queria nem se imaginar no serviço, se forçando a permanecer desperto para
cumprir com suas obrigações. Que longo dia teria!
Terminou sua água e antes que pensasse em retornar para o quarto, um
zumbido saiu das trevas da noite e infestou seus ouvidos. De súbito, a sua sala
de estar se desfez como uma cena montada em um palco de teatro, e o que lhe
surgiu ante aos olhos foi um portão gradeado escancarado, açoitado por uma
chuva furiosa. Uma estradinha de terra perpassava pelo portão e seguia em linha
reta por prados de verde escuro, coalhados aqui e ali por flores de várias
cores, a maioria cabisbaixa sob o intenso temporal. Criptas terminavam de
enfeitar o cenário, junto de imagens de anjos de mãos unidas, em mudas orações
que nunca seriam pronunciadas por seus lábios de pedra. Era um cemitério, aliás
bem conhecido por Jorge, como o descanso derradeiro de sua tia Rita.
Quando deu por si, estava novamente na sala da sua casa, e os raios
solares se infiltravam descaradamente pelas janelas, iluminando os vãos antes
escurecidos pelas sombras profundas da noite passada. Olhou para o relógio
pendurado na parede oposta e assustou-se ao perceber que estava uma hora
atrasado para o trabalho. Sentou-se no sofá desnorteado, tentando entender o
ocorrido, esforçando-se para desvendar o mistério por trás do desaparecimento
de horas inteiras durante sua louca alucinação. Lembrou-se de ter parado ali
para desfrutar do seu copo de água e de ter sido envolvido pelo delírio, sentindo-se
após ele como que saído de um sonho que dura toda uma madrugada, e só termina
com um abrir de olhos impressionado, uma pergunta sendo formulada pela boca
mesmo que ela por vezes não desfira as tais palavras no ar, tamanha a perplexidade
diante da situação: “— Como o tempo pode
ter passado tão rápido?”
No serviço não conseguia se concentrar. A experiência lhe voltava vivida demais, com a trilha de terra seguindo por entre paragens gramadas e os túmulos contrastando macabramente ao serem tocados pelo brilho ameaçador de raios
faiscando em um firmamento negro e sem vida. De fato, era o cemitério onde sua
tia havia sido enterrada, em uma época que antes acreditava ter sido renegada ao
esquecimento de um passado detestável, que voltava a bater em sua porta,
trazendo consigo os seus juros exorbitantes. Desejava do fundo do seu coração,
que isso não se tornasse rotina, que todas as noites não se visse de frente
para o que queria ter deixado para trás em definitivo. Por mais que clamasse em
silêncio para esses fantasmas se manterem afastados, Jorge ao mesmo tempo sabia
que isso seria impossível. Não conseguiria continuar fugindo eternamente de
seus terrores.
Semanas se passaram e os delírios se tornaram mais enunciados. Em certa
ocasião viu-se arrancado de uma reunião de trabalho e atirado no cemitério,
vagando por entre criptas com os nomes desgastados de seus ocupantes,
arruinados pela passagem esfomeada do tempo. A surpresa da alucinação não durou
muito, pois segundos depois havia retornado para a sala, cercado por homens
engravatados a lhe fitarem em busca de respostas para a sua expressão de
assombro que nada condizia com a situação. Sorriu amarelo e pediu licença para
ir ao banheiro. O que poderia dizer? Que estava enlouquecendo? Sem chance. Com
uma família inteira para sustentar, não podia se dar ao luxo de ser afastado do
emprego por estar sofrendo de transtornos inexplicáveis.
Pensou em visitar psicólogos para falar sobre o seu novo problema, mas
preferiu guardar o segredo para si mesmo. Não queria compartilhar algo tão íntimo
para ninguém, nem mesmo para sua querida esposa, que vinha estranhando seu
comportamento assustadiço e por vezes desligado, como se vagasse por outras
realidades. Ela não poderia imaginar que pudesse estar tão próxima da verdade. Apesar
das desconfianças da mulher, Jorge fazia um esforço anormal para continuar
ocultando o que lhe ocorria, mesmo que isso lhe fizesse se sentir solitário,
abandonado em terras estrangeiras onde era visto exclusivamente como inimigo. O
que poderia dizer? “Querida, ando tendo
visões estranhas sabe, coisa de louco, de biruta sem eira nem beira. Isso não é
sensacional? O que você acha de
espalhar a novidade para as crianças? Elas vão adorar saber que papai delas está
doido da cabeça!” Não. Não queria assustar as pessoas que amava com algo
que talvez fosse besteira, apenas uma crise de idade que pudesse passar em breve.
Manteria-se em silêncio, pelo bem de todos.
O fim do caminho chegou em uma noite de mormaço terrível, que antecipava
uma tempestade, ameaçando a todos por entre nuvens negras a soltarem raios de
intenso brilho, que iluminavam a tudo com um único rasgão no firmamento. Jorge
estava acordado, pois tinha medo de dormir. Sempre que fechava os olhos via o
portão enferrujado do cemitério rangendo em suas dobradiças, o vento soprando
continuadamente, perpassando por seus ouvidos como doce melodia, uma canção
soprada por alguma criatura além da mortalidade simplória dos pobres humanos. Era
uma voz fatal, de atração arrebatadora, que lhe fazia desejar seguir seu rastro
sem pestanejar, desconsiderando as consequências perigosas de obedecer o perigoso
chamado. E por Deus, Jorge queria mesmo ir ao encontro da dona da voz,
independente de estar rumando para sua própria perdição. Chega de fugir.
Percebeu que era a hora de aceitar seu destino e enfrentá-lo de braços abertos.
***
Foi em um sábado. Levantou-se bem cedo e saiu de casa em seu chevett 98,
indo para o pequeno município de Pontas, onde havia nascido e passado
praticamente toda a infância com a família, o lugar onde sua tia Rita havia
sido enterrada, confiada ao seu descanso final. Tinha uma ótima desculpa para
empreender a viagem, criada a quatro dias atrás, uma antecedência que não
deixava espaço para que duvidassem de suas palavras. Havia dito à esposa que
iria para uma reunião em Poços de Caldas, coisa da empresa, que queria espalhar
mais filiais pelo restante do estado. Acrescentou ainda que não queria ir, que
não suportaria ficar longe da mulher, mas... o dever vem em primeiro lugar, e não
pode ser simplesmente desprezado. Ela engoliu a estória direitinho e não falou
mais nada a respeito do assunto.
Enquanto dirigia, as lembranças do passado retornavam sem cessar por sua
mente tumultuada, principalmente as do dia do enterro da tia, dos olhos
assustadoramente verdes dela, esbugalhados quando tinham de estar fechados para
todo o sempre, apagados pela foice imperdoável da morte. Em seu íntimo desejava
que nunca tivesse presenciado aquela cena irreal, que por algum azar que não
conseguia explicar havia escapulido do terreno frágil dos sonhos para se
insinuar no mundo real, ficar gravada em sua cabeça como um hematoma arroxeado
que não some por inteiro, mesmo que anos inteiros se passem. Fato ou devaneio?
Não tinha certeza de mais nada, e por isso esperava encontrar a resposta para
suas angústias no terreno sagrado do cemitério.
A viagem assombrada por fantasmas de um passado que preferia ter
enterrado em definitivo, terminou após longas três horas, que pareciam que não queriam
passar, em teimosia que causava aflição ao espírito já abalado de Jorge. Para
seu alívio, no horizonte parcialmente coberto por nuvens escuras de chuva,
surgiram os pequenos prédios da cidade de Pontas, edifícios em sua maioria de
pequeno porte, antigos por estarem ali desde os primórdios da região, mas nem
por isso decadentes e perto de ruírem em colunas de poeira e pedras empilhadas.
Jorge sentiu o coração disparar no peito ante essa ansiada visão, e pressionou
o acelerador com força, desesperado por chegar ao seu destino o quanto antes e
encarar a coisa da qual vinha fugindo desde tenra idade.
Parou antes em uma loja de construção, comprando com algumas notas uma pá
de cabo de madeira. Jogou-a no porta-malas do carro e olhou pensativo para o céu,
percebendo o quanto ele estava escuro, ameaçador quando cuspia seus ocasionais
relâmpagos, urros de fúria da tempestade que logo assolaria os arredores. Entrou
no carro e acelerou para a sua última parada, as mãos aferradas violentamente
no volante, a ponto de deixar nele as marcas do aperto nervoso. Foram apenas
quatro minutos até alcançar a rua onde se podia ver o antiquado portão gradeado
de ferro, enferrujado por seu longo período de existência, movendo-se em ritmo ensandecido,
ao gosto do vento gélido que soprava vindo das colinas próximas da cidade. Era
o cemitério de volta à sua vida, após tanto tempo.
Estacionou o carro e assim que colocou os dois pés para fora do veículo,
a força dos ventos aumentou e soou como o uivo agonizante de algum animal que
estivesse ferido e abandonado em uma clareira escura de uma floresta
ensombreada. A chuva irrompeu das alturas, em gotas pesadas, que batiam nos
ombros de Jorge e os faziam ceder alguns centímetros, como que galgados por anões
brincalhões, de humores duvidosos. O homem prosseguiu pela cortina de água
gelada, que aumentava de intensidade rapidamente, enquanto raios cintilavam
pelos céus acinzentados, explodindo em árvores próximas e inaugurando o caos,
que não tinha hora certa para terminar. Debaixo do aguaceiro Jorge agia
metodicamente, como se estivesse à passeio em um dia de sol luminoso. Pegou a pá
calmamente em seu porta-malas e atravessou o portão do cemitério. Tarde demais
para se arrepender e voltar.
Refez o passeio que vinha fazendo em sonhos e delírios regularmente, a
caminhada por túmulos de pedra cinza e criptas enfeitadas por imagens de anjos,
guardiões silenciosos dos mortos que ali descansavam. Foi caminhando
penosamente pela estradinha sulcada de terra, escorregando no barro formado
pela tempestade, que continuava a cair impiedosamente dos céus, como que
furiosa com todos os que caminhavam pelo mundo, talvez jurada de fazê-los pagar
por alguma ofensa antiga. Jorge estava com as roupas encharcadas, a pele tomada
por arrepios decorrentes do frio, mas não
dava mostras de que recuaria. Estava decidido a ir até o fim, mesmo que
tivesse muito a perder com isso. Além disso, a voz magnética já lhe soava pelos
ouvidos, irrompendo pelo ar pesado de chuva e lhe convidando a ir em frente, a
ignorar o resto e obedecer ao chamado. E foi isso mesmo que ele fez.
Não teve de andar muito. Logo, estava de frente para o túmulo da tia, de
onde subia da terra amolecida de chuva, o cantarolar da voz irresistível, que
lhe pedia para começar a cavar, fazer seu serviço sem reclamar. Jorge assim o
fez, metendo a pá em golpes seguidos no solo, cavando em bom ritmo, assobiando
pelos lábios mesmo que nada pudesse ouvir de sua própria canção, tamanha a
barulheira infernal da tempestade que continuava a cair, irredutível em parar. Meia
hora se passou e a sepultura estava aberta, o caixão de madeira revelado,
inchado por culpa da umidade decorrente, o longo período de reclusão nas
entranhas da terra. Jorge o apreciou, os floreios talhados em sua superfície
que um dia havia sido lustrosa, até seus olhos caírem em cheio em suas
extremidades, os lugares onde seus dedos deviam se encaixar para que a tampa
fosse arrancada e o interior dele revelado. A voz gritava em seus ouvidos, e exigia
que terminasse logo com o que tinha de ser feito. Ele atendeu ao pedido.
Agarrou com firmeza a tampa do caixão e após quatro tentativas infrutíferas
de arrancá-la, na quinta alcançou seu intento e a tirou de um puxão, jogando-a
para um canto qualquer da sepultura aberta. Olhou para o interior dele e viu a
forma assustadoramente conservada de uma mulher, a pele pálida, mas nem por
isso desprezível, carregada de uma beleza mística que ninguém seria capaz de
explicar. Os cabelos molhados eram do mesmo tom negro que Jorge recordava-se da
infância e os lábios da tia surgiam em um vermelho escuro, cor de sangue. Os
olhos estavam abertos e eram verdes esmeraldas, tão vivos como os de qualquer
outra pessoa. Lhe encaravam com real racionalidade, inteligência que morto
nenhum poderia esbanjar. Jorge gritou ao sentir-se tocado por eles, apalpado
como alguém que sofre de terrível abuso sexual.
Ela lhe segurou pelos pulsos, sorriso de víbora despontando em sua face
pálida. Os olhos verdes continuavam fixos nos de Jorge, que aprisionado em um rompante
de loucura inconsolável, berrava a plenos pulmões, as veias saltadas em sua
pele, os músculos retesados pelo puro terror que corria livre por sua corrente
sanguínea. A tia mantinha o contato visual e como se não bastasse, sussurrou por
entre os lábios a frase pela qual tanto ficou conhecida e eternizada no seio de
sua família. “Eu sou imortal! Para mim
nada é impossível, sobrinho querido. Não é uma alegria nos vermos de novo? Dê
um beijinho gostoso na sua tia. Estava com saudades”. Disse ela, colando a
sua boca na testa de Jorge, que não conseguia parar de gritar, desvairado,
perdido nos campos desolados da insanidade, dos quais nunca mais seria capaz de
retornar. Acabou perdendo os sentidos, caindo desacordado por cima do ventre da
mulher imortal, que gargalhava em intensa alegria, satisfeita por seu retorno
triunfal.
Foi encontrado horas depois, tremendo sentado no caixão, mergulhado até
as coxas em água barrenta de chuva. Gemia baixinho, de vez em quando soltava
palavras ininteligíveis, que faziam os outros pensarem que estivesse falando em
outra língua. A verdade é que ficava parado na mesma posição, olhos fechados,
como que temendo deparar-se com o próprio
diabo ao abri-los para o mundo. Os moradores das redondezas que vieram lhe
tirar dali, disseram que ele não se cansava de repetir a mesma coisa, como uma
vitrola quebrada, que não consegue mais terminar o verso da música. “Imortal, imortal, imortal, imortal,
imortal...”
Jorge não pode mais ter uma vida normal. Entrou em um estado de
constante catatonia, abandonado sem identidade, pois ninguém da cidade soube de
que família pertencia ou de onde havia vindo. Dele não conseguiam arrancar
nenhuma informação, pois seus lábios teimavam em falar frases sem coerência,
despidas de qualquer racionalidade, carregadas apenas da loucura que havia
constituído morada em sua alma ferida. Sem entes queridos na cidade, acabou
sendo internado no hospício local, bancado pelo município junto de tantos
outros loucos. Vive agora em um quarto apertado, repetindo sem cessar a palavra
que lhe assombra, os braços cruzados no corpo, como uma estátua que represente
a decadência a que um homem pode chegar quando desprovido da sanidade. E ele
por vezes também grita durante noites que se revelam eternas, quando escuta o
arranhar de unhas na janela do seu quarto, olhos verdes cor de esmeralda se
destacando no negrume da noite, lembrando-o de coisas que prefere esquecer. Entre
sussurros escuta, “imortal...”
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