Fazia tempo que Jeff procurava por um apartamento para alugar. Havia
decidido morar sozinho, cansado de ficar sob o mesmo teto da mãe, mulher
neurótica que lhe cobrava um emprego decente, o que significaria abrir mão de
seu sonhos, por mais loucos que fossem. Não queria desistir de ser um ator de
renome, independente do quanto pudesse ser penosa a caminhada ao estrelato.
Verdade que o dinheiro que ganhava representando não cobria quase nada das suas
despesas, não servia nem para pagar a fatura alta do seu cartão de crédito, mas
mesmo sofrendo tanto para se manter, não descartaria seu dom para as artes para
pegar um emprego qualquer de telemarketing, condenando-se ao inferno de uma
central de atendimentos. Não. Preferia morrer de fome.
Sua teimosia irritava sua mãe profundamente, a ponto das brigas se
tornarem recorrentes, tão naturais quanto respirar. Assim que chegava em casa
após a apresentação noturna no teatro de amadores no centro de Belo Horizonte,
era recebido com uma saraivada de palavras afiadas como navalhas, alcunhas que
seriam terríveis até para um cão sarnento, a mais leve o apelido carinhoso de
vagabundo. Não conseguia nem mesmo responder as maldições de sua mãe, pois ela
falava tão rápido, que não restava brecha para retrucar. Não é de se espantar
que o rapaz quisesse um porto seguro para se ver livre das garras da megera,
antes que um dia perdesse as estribeiras e fizesse algo do qual acabasse por se
arrepender.
Não é preciso dizer que Jeff ficou eufórico ao ver nos anúncios do jornal,
um apartamento disponível em um bairro próximo do centro, mais do que bem
localizado. Não pode conter a ansiedade e se dispôs a visitar o local no mesmo
dia, o coração batendo acelerado, vitimado pela animação explosiva do seu
senhor. A manhã nem terminou e já estava sentado em uma das cadeiras da
imobiliária que havia feito o anúncio, tomado por uma expectativa nervosa que
poderia mata-lo se não tomasse cuidado.
Um senhor baixo e com barriga inchada de cerveja lhe recebeu em seu
escritório, o contrato de aluguel preso embaixo de seus dedos gordos, esperando
para ser assinado. Jeff o faria, claro, não lhe restava dúvidas de que queria o
apartamento, na verdade nunca houve a mínima indecisão. Mesmo se o lugar fosse
marcado pelo sangue de crimes antigos, não mudaria de ideia. Tudo para se ver
longe da megera.
— É um lugar muito bem localizado, ponto
de ônibus na porta de casa, comércio a minutos de caminhada. O que acha? Não
vai perder essa chance, certo?
— É mesmo um apartamento e tanto! O
problema é que tenho orçamento apertado, e dependendo do valor do aluguel, será
impossível firmarmos um acordo. – respondeu Jeff, desanimado ao recordar-se da
pilha de contas que ainda tinha que pagar.
— Não se preocupe com isso! Temos os
melhores preços do mercado, duvido que vá achar apartamento tão bom e barato em
qualquer outro lugar. Trezentos reais está bom para você?
— Sério? Ótimo! Onde eu assino?
— Muito bem, adoro pessoas decididas,
que sabem o que querem. Assine na linha pontilhada e vai ser feliz, meu amigo!
— falou o vendedor gorducho, sorriso aberto nos lábios, os dentes
impecavelmente brancos expostos e brilhando sob a luminosidade amarelada de
lâmpadas elétricas.
Assinou sem nem mesmo ler o contrato e com
os papeis em mãos, pegou um táxi e foi sem perder tempo para o apartamento que
passaria a chamar de lar. O metal da chave da porta de entrada surgia
reconfortador em sua pele, com uma frieza que tocava fundo em sua alma, a
espada que ergueria para declamar sua independência e assim cortar as correntes
que lhe prendiam ao reinado de ignorância da megera. Sentia-se livre como um
pássaro, a felicidade brilhando em seus olhos, que esquadrinhavam sua nova
vizinhança com inquietante curiosidade, ansiosos por conhecerem as ruas que lhe
cercariam e os rostos com os quais passaria a trombar em seus passeios de
rotina.
Nada a reclamar do prédio. Era uma construção de cinco andares, pintada
em tons amarelos que não mostravam desgaste e nem mesmo o mofo decorrente da
chuva. Dispunha de um porteiro de feições gentis, que ficava no turno da manhã
e tarde, e outro para a noite, sujeito que em sua primeira visita não pode
conhecer. O que falar do apartamento? Ora, melhor impossível. Espaçoso, dois
quartos e uma sala de estar que causaria inveja a muita gente. As janelas em
sua maioria davam para a vista de uma praça adorável, enfeitada por arvoredos
frondosos e flores da estação em constante desabrochar. Do que poderia
reclamar? De nada, aparentemente.
Combinou que uma carreta fosse buscar seus pertences no dia seguinte e
antes que uma discussão amarga com a mãe pudesse ganhar proporções, já estava
indo embora, sem se dar ao trabalho de olhar uma vez que fosse para trás. A
megera tentou lhe agarrar e impedir que fosse, chegando a derramar lágrimas,
que para Jeff soaram falsas, mais mentirosas do que as de um crocodilo. Sabia
que era só cena da mãe, furiosa por ter perdido a batalha, incapaz de aceitar a
derrota. Ignorou a interpretação digna de Oscar dela e foi viver sua vida,
sentindo-se leve como nunca antes em sua curta existência.
Os móveis foram dispostos na sala de estar do apartamento, um pequeno
amontoado de bens materiais que havia acumulado em seu tempo de moradia com a
mãe, o suficiente para um jovem rapaz. Na sala de estar colocou sua televisão
de LCD de quarenta polegadas, que no cômodo vazio pareceu estranha, como que
deslocada, dando a impressão de não pertencer ao lugar. Contava com poucos
móveis para encher a sala, um deles uma estante com alguns livros, que só não
levou para o quarto por achar que ficaria melhor ali, complementando a paisagem
sem muitos detalhes. Uma poltrona velha que pertencia ao falecido pai surgiu
também como um bom acréscimo, mesmo que estivesse desgastada, com buracos em
seus braços, o recheio escapando em fiapos enegrecidos de algodão. Fora esses
três móveis, nada mais havia. Percebeu logo que em breve teria de ir as compras
e fazer ainda mais contas em seu cartão de crédito quase estourado. Eis o preço
que se paga ao se declarar independente.
Arredou a poltrona de couro negro para perto da parede da direita e seus
olhos acabaram captando uma coloração escurecida na tinta branca, uma mancha
com perfeitos contornos humanos. Abaixou-se para poder enxergá-la melhor e
percebeu que a figura se assemelhava bastante a sombra de uma pessoa que
tivesse se sentado recostada bem junta à parede, os braços caídos flacidamente
ao lado do corpo e a cabeça tombada para a frente, como um boneco de juntas
flexíveis. A curvatura dos ombros estava muito relaxada, dando a impressão de
que o sujeito representado ali estava desacordado ou talvez... morto. Um frio
percorreu a espinha de Jeff ante a esse pensamento e seu olhar se desviou da
misteriosa forma da parede. Talvez fosse paranoia da sua cabeça. Tratou de
ignorá-la e cuidar de sua vida.
Saiu para o teatro e nessa noite apresentou-se para um público pequeno,
um bando de adolescentes inquietos em um canto e um casal de idosos que
dormiram do início ao fim da peça. Foi embora desgostoso para casa, o pouco
dinheiro ganho no dia guardado em sua carteira, míseras quatro notas de cinco
reais. No caminho comprou uma garrafa de vinho que correspondia a metade desse
valor, bebida de procedência duvidosa, que com toda a certeza lhe daria uma
ressaca terrível na manhã seguinte, mas isso não lhe importava. Precisava
relaxar um pouco, nem que para isso tivesse que despertar expelindo jatos de
vômitos malcheirosos de sua boca. Tudo para afastar as vozes da megera de sua
cabeça, ecoando desgraças para o filho rebelde e os seus sonhos de liberdade.
Adentrou em seu apartamento quase vazio e foi logo apertando o
interruptor para acender a lâmpada elétrica. Colocou a garrafa de vinho na
bancada de mogno da pequena cozinha ao lado da sala de estar e empenhou-se em
procurar por um abridor, vasculhando as gavetas do seu armário embutido, um dos
poucos móveis que havia comprado em seus longos anos de estadia com a mãe. Não
encontrou o que queria, e sim uma mancha negra nos azulejos, mais ao canto do
cômodo, a forma perfeita de uma pessoa estirada ao chão de braços e pernas abertas,
cada um apontando para uma direção diferente, como uma bússola que houvesse
enlouquecido. Olhou para a silhueta tão assustadoramente humana e sentiu o seu
coração acelerar no peito, vítima de uma arritmia que poderia não terminar bem. “O que diabos será essa coisa?”,
pensou Jeff, incapaz de encontrar uma resposta boa o suficiente para explicar a
origem das misteriosas silhuetas em seu apartamento.
De súbito, o ruído estrondoso de um tiro ecoou por todo o apartamento,
entrando fundo em seus tímpanos e arrancando um grito agudo de sua garganta.
Seguido ao primeiro disparo vieram muitos outros, uma saraivada de explosões
que deixaram o odor característico de pólvora no ar, além de levantar poeira de
reboco, como se os projéteis da arma houvessem trespassado a massa da parede e a
esfarelado com o impacto. Jogou-se ao chão por instinto e esperou que os tiros
cessassem, fazendo orações que acreditava terem sido deixadas em seus tempos de
infância. Assim que o silêncio se apossou do apartamento, Jeff se levantou
cambaleante, os olhos injetados, esquecido de sua garrafa de vinho, que jazia
estourada por cima da bancada de mogno, um alvo infeliz do atirador
desconhecido. Só queria saber o que havia acabado de acontecer.
Foi para a sala de estar e
estancou de imediato ao ver uma poça de sangue escorrendo do ponto exato onde
estava gravada a silhueta humana na parede. Jeff fechou os olhos, a respiração
irregular, sentindo o terror assomando em seu íntimo, uma criaturinha de focinho
longo e presas pontiagudas mordiscando sua mente e estraçalhando com sua
serenidade. Por fim abriu os olhos, atemorizado de deparar-se novamente com o
sangue brilhoso a escorrer, infiltrando-se nas tábuas de madeira do apartamento
e indo gotejar nos andares inferiores, quem sabe na mesa de jantar de uma
família reunida e em seus pratos cheios de sopa. Pensamento terrível, que
continuou mesmo depois de comprovar com seus olhos que nada havia no piso da
sua sala. Limpo como antes. Decidiu que era melhor se deitar.
***
Despertou na manhã seguinte crente de
ter sonhado com os acontecimentos estranhos da última noite e antes de sair da
cama, decidiu que não ficaria pensando nessas coisas absurdas e por certo
fantasiadas por sua mente cansada. Arrumou-se e logo já estava nas ruas da
cidade, absorto nos problemas que teria de resolver ao longo do dia. Lá para as
oito da noite retornou para o apartamento, as lembranças do estranho ocorrido
cuspidas de sua cabeça e momentaneamente esquecidas. Tinha coisas melhores nas
quais pensar, uma delas a garota morena de belas coxas que havia conhecido na
fila do banco e da qual havia ganhado o número de telefone. Estava eufórico
demais com o possível encontro para ficar refletindo a respeito do que deveria
ter sido mero devaneio.
Assim que colocou os pés em seu apartamento, decidiu que precisava tomar
um banho e tirar o cheiro desagradável de rua. Encheu a banheira e se jogou na
água morna perfumada por sais. Deixou o corpo relaxar, o queixo tocando a
espuma branca, os músculos amolecidos pelo contato refrescante da água, capaz
de curar dores. Fechou os olhos e entrou em um estado de sonolência que ameaçou
lhe arrastar para um sono profundo, nas maravilhosas Terras do Sonhos. Quando
estava perto de realmente adormecer, a percepção de ter um dos braços agarrado
por dedos lhe fez abrir os olhos de uma única vez, arregalados em um desespero
mudo que não pode sequer ser manifestado, pois no segundo seguinte já estava
submerso na água cheirosa, se afogando como uma criança que é deixada sozinha
na banheira. Entregou-se a uma luta sofrível pela vida, os braços se debatendo
furiosamente, derramando água por todos os cantos e tentando escapar do aperto
invisível da entidade desconhecida. Nesse momento, Jeff acreditou que morreria
e viu suas memórias passando feito um filme por sua cabeça.
Em uma desesperada demonstração de força, Jeff pulou para fora da
banheira e caiu esparramado no piso de azulejos do banheiro, cuspindo água e
tossindo dolorosamente, ansiando por ar como um peixe que teve azar de ser
pescado. Vomitou o líquido em excesso do seu estômago e levantou-se tonto,
procurando entender o que havia acabado de lhe ocorrer. Enfiou a mão na
banheira com medo de ser agarrado novamente, e como isso não ocorreu, tirou o
tampão para a água escoar pelo ralo, até que ela ficasse vazia e o seu fundo
pudesse ser visto. Na superfície de pedra branca dela havia outras das
silhuetas humanas, a forma de uma pessoa com os membros voltados para uma mesma
direção, como que inertes, endurecidos pela violência de uma morte cheia de
sofrimento. Ficou zonzo ao deparar-se com a imagem inesperada e o desejo de
tomar um banho deixou de ser uma prioridade. Abandonou o banheiro se decidindo
por encher a cara no boteco mais próximo.
Foi para um bar chamado “Louras Geladas”, onde pediu logo de cara uma
dose de cachaça, planejando ficar bêbado o suficiente e cair em um estado de
letargia que o impossibilitasse até mesmo de sofrer de alucinações. Mal o copo
foi depositado na sua frente, a bebida já descia por sua garganta, a queimando
de forma tranquilizadora, ajudando-o a afirmar que ainda estava lúcido,
inserido na realidade. Após a terceira dose, os pensamentos mostravam-se turvos
e o episódio da banheira começava a ficar distante, uma recordação agourenta
imersa nas profundezas do lago negro de sua mente angustiada. Quando partia para a quarta dose, um homem
encurvado e de bigode mexicano no rosto sentou-se ao seu lado, pedindo uma
cerveja com um tímido erguer de mão. Virou-se para Jeff, e como se o conhecesse
de longa data, foi puxando assunto com a maior naturalidade do mundo.
— Você é o novo morador do apartamento
323 do edifício Cervantes?
— Sim. — respondeu Jeff, olhando
desconfiado para o estranho. — Como sabe disso?
— Me contaram. Sabe como o pessoal
costuma ser fofoqueiro, ainda mais em se tratando da vida alheia. — disse o
sujeito com bigode mexicano, bebericando um gole da cerveja que foi colocada na
sua frente. — Gostou do apartamento?
— É agradável. — respondeu Jeff, recordando-se
do episódio da banheira e sentindo uma tremedeira alucinada varar seu corpo de
alto a baixo.
— Não parece estar muito certo disso.
Aconteceu algo estranho?
— Talvez... bem, eu não sei explicar e
mesmo se tentasse, você provavelmente me chamaria de louco. Não vai acreditar
em mim.
— Pode tentar companheiro. — disse o homem
do bigode, com um sorriso enigmático na face. — Não me surpreendo com nenhuma
estória que me contarem sobre aquele apartamento. Nada mesmo.
— O que você quer dizer com isso?
— Não sabe dos suicídios? — perguntou o
sujeito do bigode, notando o quanto os olhos do Jeff saltaram nas órbitas, em
completa surpresa. — Pelo visto não. Bom, já que comecei o assunto vou
termina-lo. Foram mais ou menos uns cinco ocorridos dentro do apartamento, e me
atrevo a arriscar que cada um dos cômodos foi palco de pelo menos uma morte. Um
afogado no banheiro, outro com a cabeça estourada por uma bala na sala de
estar, uma com o pescoço cortado no quarto... se aquelas paredes falassem,
contariam coisas terríveis para quem quisesse ouvir.
— Está brincando comigo? — questionou Jeff,
inquietude gritante em suas feições perturbadas.
— E eu brincaria com um negócio desses?
Por acaso tenho cara de palhaço?
— Acho melhor eu ir embora. Não estou me
sentindo bem. — disse Jeff, tomando o copinho de cachaça a sua frente de um só
gole e se levantando apressado, sem preocupar-se em despedir-se do importuno
companheiro.
— Tudo bem. Nós vemos por ai, pelo menos
assim espero.
Foi para o apartamento desesperado por cair em sua cama e de lá não sair
até o raiar da próxima manhã. Nada de ficar pensando em baboseiras, lendas
urbanas que por certo eram mentiras inventadas por um sujeito bêbado e com as
ideias desconexas na cabeça. O episódio da banheira? Um delírio criado por sua
mente cansada, sedenta por um adormecer de horas para se recuperar da fadiga da
nova rotina que havia escolhido para si. Tinha que ser essa a explicação para
os fenômenos que vinha enfrentando ultimamente. Quem sabe, talvez estivesse
ficando louco, precisando de férias no hospício mais próximo. Agora, encarar o
ocorrido como real, não, isso já era demais. Nunca acreditou no sobrenatural, e
não começaria a fazer isso de uma hora para a outra.
Jogou-se na cama e fechou os olhos de imediato, sentindo-se acolhido
pela escuridão do quarto. Estava um pouco bêbado pela quantidade de cachaça
ingerida e em questão de minutos estava ressoando ruidosamente, feito uma
turbina defeituosa de avião. Sua consciência foi tragada para a irrealidade de
um sonho, no qual se via sentado na beira da cama olhando para uma mulher
sentada em uma cadeira à sua frente, uma jovem de cabelos negros e vestida em
uma camisola quase transparente, que se grudava a silhueta do seu corpo e dava
destaque aos seus contornos delicados, aos seios pequenos. Ela olhava pela
janela com as feições entristecidas, vislumbrando o nada na esperança de
enxergar um sentido em sua vida miserável. Na mão direita segurava uma faca
cuja lâmina afiada brilhava ao toque do luar que se infiltrava pelas frestas da
janela. O reflexo era rubro, da cor do sangue que verte de uma ferida recente.
Ela olhou por um segundo para Jeff, com sorriso lunático despontando em
seus lábios vermelhos, o batom borrado, dando a impressão de que tivesse
acabado de se empanturrar com amoras. Levantou a faca na altura do ombro e a
cravou com todas as forças no próprio pescoço, fazendo um jato de sangue
explodir pelo corte aberto e tingir as paredes mais próximas, por onde
escorreram até empoçar no chão. Jeff gritou ante a essa cena, o horror
crescendo em suas entranhas ao notar a maneira como a cabeça dela caia para
trás, em um ângulo torto, impossível de ser imitado, as dobras da pele se
separando e os ossos perdendo contato, até a espinha se quebrar com um ruído
seco que lhe lembrou um galho se partindo sob a pressão de mãos musculosas. A
cabeça da mulher caiu rolando pelo carpete do quarto, indo se perder na
escuridão debaixo da cama. O corpo dela levantou-se e caminhou desnorteado de
um lado para o outro, feito uma barata decepada que ainda corre pelos cantos
pelo efeito dos seus últimos espasmos de vida. O cadáver veio com os braços
estendidos na direção do Jeff, que berrava como uma criança aterrorizada, ansiosa
por se ver livre da trama sombria de seus próprios pesadelos.
Acordou com um berro sufocado na garganta. Sentou-se na cama suando
frio, olhando ao redor com medo de deparar-se com a jovem decepada. Ficou
aliviado ao ver que o quarto estava vazio a não ser por... levantou-se da cama,
o coração disparado no peito, apertando os olhos para tentar enxergar melhor a
vaga forma na parede próxima da janela, uma mancha escura que tinha a exata
forma de uma pessoa sentada com a cabeça tombada para o lado, uma terrível
caricatura da jovem que havia visto em seu pesadelo noturno. Sentiu-se sem ar e
saiu correndo do quarto, escorregando em algo viscoso no chão e se estatelando
pesadamente, o ombro batendo na quina da cama e explodindo em galáxias inteiras
de dor. Olhou para o piso e viu sangue vindo de debaixo da cama, uma poça
grande o bastante para cobrir a sola inteira de seus pés. Gritou como nunca e
saiu dali com a calça marcada na frente por um círculo úmido de urina.
Da sala foi direto para a porta de entrada do apartamento, decidido em
retornar para a casa da mãe, mesmo que tivesse que continuar pagando os
aluguéis firmados por contrato por alguns bons meses. Se amaldiçoou por ter
sido tão precipitado em suas decisões e mais ainda por ter sido um péssimo
filho. Talvez sua mãe tivesse mesmo razão, a carreira de ator era um erro,
nunca seria capaz de lhe dar o dinheiro suficiente para se sustentar
futuramente, para ser um homem independente como sempre sonhou. Quem sabe deixasse
o teatro de lado e conseguisse um emprego sério, algo que desse grana. Ninguém
vive de sonhos, eis a frase mais famosa da megera, que agora lhe faz todo o
sentido do mundo. No futuro pode ser que retome sua carreira de artista, mas
por hora, a única coisa que quer é sua antiga vida de volta e estar a
quilômetros de distância do maldito apartamento.
Colou a mão direita na maçaneta da entrada e tentou girá-la para o lado,
surpreendendo-se ao notar que ela mal saia do lugar, afixada no mesmo ponto por
alguma força contrária desconhecida. Chutou a madeira da porta furioso, como um
animal enjaulado que resolvesse querer recuperar a vida selvagem que lhe foi
roubada. A golpeou freneticamente, mas a única coisa que conseguiu em troca foi
ferir os dedos e desgastar-se. Deixou a porta de lado, forçando a mente a
trabalhar em alta velocidade, as engrenagens girando rápido demais, a ponto de
levar os circuitos mentais a um curto irreparável. Suor escorria por suas
axilas, pela fronte, uma espécie de nervosismo pisoteava sua tranquilidade e o
colocava muito perto de um ataque de insanidade. Lembrou-se do seu falecido tio
Carlos, morto por um momento estressante que rompeu todos os vasos sanguíneos
do seu cérebro. Não seria um absurdo pensar que pudesse ter o mesmo destino.
O som ensurdecedor de um tiroteio surgiu do vazio de sua sala e entrou
fundo em seus ouvidos, fazendo-o gritar de surpresa e terror. Olhou para a
direção do ruído e viu a forma de um homem parada no centro da sala, um vulto
vago com um dos braços levantados na altura da cabeça, a forma de uma arma
calibre 32 despontando do que parecia ser uma de suas mãos. O dedo da aparição
apertava o gatilho sem parar, fazendo soar a cada vez que o pressionava o som
de um disparo, que explodia a cabeça sombria dele e espalhava pelos arredores sangue
feito de sombra, que escorria pelos poucos móveis e se concentrava no chão na
forma de grandes poças. Para Jeff esse foi o limite do que sua consciência
sempre realista e descrente de fantasias poderia aguentar. Saiu correndo da
sala para o quarto, com um plano de fuga desesperado já articulado em sua mente.
No corredor que ligava a sala ao banheiro e ao quarto, trombou com a
forma cambaleante de um homem encharcado, gotejando água pelo piso e deixando
marcas de suas passadas por onde pisava. As feições da aparição estavam
enegrecidas, os olhos envoltos por uma camada amarelada semelhante a pus seco.
A coisa abriu a boca e vomitou um jato de água negra e malcheirosa, que foi se
perder nos pés de Jeff, que com um grito, passou correndo pela aparição e
adentrou em seu quarto, os olhos fixos na janela escancarada, lhe convidando
para um pulo no abismo, a um voo rápido até a calçada lá embaixo. Por um momento
não teve certeza do queria fazer, mas ao vislumbrar a jovem com a faca
ensanguentada sentada na cadeira ao lado da cama, suas convicções voltaram com
força total. Tinha que pular. Era isso ou enlouquecer dentro do circo de
horrores em que seu apartamento havia se transformado.
Passou pela jovem no exato momento em que ela cortava o pescoço com a
faca e fazia esguichar sangue pelo quarto, um véu vermelho que tingia a tudo
que tocava. Jeff subiu no umbral da janela e olhou de esguelha para baixo. Quatro
andares, alguns metros até o chão. Deixou um pé tocar o vazio, retornando logo
em seguida com ele para dentro, o corpo tremendo descontroladamente, a boca
seca pelo medo de altura. Olhou para trás e viu a cena do pesadelo se
repetindo, o pescoço da mulher tombando para o lado, os tecidos da pele perto
de se romperem e a vértebra se quebrar, deixando a cabeça rolar livre para
algum canto escuro qualquer, onde talvez nunca mais pudesse ser encontrada. Não
precisava ver o resto. Na verdade, não queria ver mais nada. Pulou de olhos
fechados, ao encontro da sua salvação.
O zumbido do vento lhe ensurdeceu e não houve sequer tempo para pensar
em qualquer coisa. A única imagem que surgiu em sua mente foi a da sua mãe lhe
gritando impropérios, um filme rápido dos melhores momentos da megera, que
conseguiram encher seu coração de raiva e saudades ao mesmo tempo. Por fim ela
lhe surgiu chorosa, pedindo em meio ao pranto para que o filho não lhe
abandonasse, não virasse as costas e a deixasse sozinha, fadada a aguentar os
próximos anos de sua vida em constante e incômoda solidão. Lembrou-se de a ter
ignorado e seguido em frente, mal escutando as maldições que ela lhe atirava.
Dizem que praga de mãe pega e nada no mundo é capaz de salvar um homem delas. Jeff
chegou a pensar que tudo o que lhe acontecia era fruto de uma praga das boas,
um feitiço odioso da velha bruxa que havia lhe dado à luz, porém antes que seu
raciocínio pudesse continuar, seu crânio chocou-se com o concreto e tudo o que
se seguiu foi profunda escuridão.