Precisava relaxar. Vinha trabalhando
exaustivamente há muito tempo, enfurnado em seu escritório, que ficava em um
prédio comercial no centro de New York, propriedade registrada em seu nome,
fruto de seus sucessos na carreira. Empresário renomado e conhecido no país,
conhecido por ser dono de uma grande franquia de telecomunicações, com filiais
espalhadas por todo o globo. Um homem realizado financeiramente. Com tanto
dinheiro em sua gorda conta bancária, a quem pense que esse sujeito afortunado
não precise de mais nada para sentir-se feliz. Ledo engano. A verdade é que
Robin vinha sendo perseguido por um intenso sentimento de frustração,
decorrente de problemas familiares que não era capaz de resolver.
A mulher o havia abandonado. Estava cansada de
ser ignorada pelo marido, trocada pelo trabalho, obrigação da qual Robin não
conseguia se desvencilhar. Tudo em sua rotina se resumia a apenas reuniões de
horas em seu gabinete, analise de resultados da empresa, além de outra dezena
de incumbências dignas de um homem de negócios. Restava-lhe pouco tempo para
passar junto à esposa. A última vez que haviam tido uma noite prazerosa já
fazia mais de oito meses, em uma viagem programada para a França. Depois disso,
Robin havia se metido em projetos complexos, planos para aumentar os alcances
de seu majestoso império. Para isso, havia praticamente deixado sua vida de
lado. A esposa, sedenta por carinhos que o cônjuge não podia oferecer, tinha
optado por aventuras amorosas as escuras, com rapazes bem mais novos e
habilidosos o bastante para saciar suas necessidades sexuais mais latentes. E o
veneno mais letal para uma relação nasceu a partir dai. Segredos.
Robin havia descoberto a traição ao chegar um
dia exausto do trabalho, tendo se deparado com a esposa jogada ao sofá junto de
um rapaz com seus vinte e poucos anos e muita vitalidade para cumprir com os
desejos explosivos da mulher. Não havia sido tomado pela raiva como se esperava
em uma situação dessas. Simplesmente ignorou a cena e foi para a rua, em busca
de um bar aberto no qual pudesse afogar suas magoas. Passou a noite toda se
embebedando, tentando esquecer-se da imagem de sua esposa sendo afagada por
mãos de um estranho qualquer, gemendo de prazer a cada caricia recebida. Voltou
bêbado para o apartamento e encontrou a mulher vestida em um roupão de veludo,
fumando um cigarro na sacada, relaxada pela noite animada que havia tido.
Discutiram por horas, aos gritos e berros,
que foram ouvidos por todos da vizinhança e que provocariam fofocas
desprezíveis assim que a manhã despontasse no céu. Sua esposa vestiu-se de suas
roupas mais caras, arrumou as malas e foi embora, sem dar qualquer satisfação.
Semanas depois, mandou de seu apartamento no centro da cidade, imóvel que por
acaso havia sido o presente que Robin lhe havia dado no quinto aniversário de
casamento, uma carta assinada por seu advogado, pedindo divórcio e divisão de
todos os bens. E ai começaram os encontros e audiências de julgamento,
chateações que Robin queria poder dispensar. No final de tudo, parte de seus
ganhos como empresário bem sucedido haviam lhe sido tirados, tomados por uma
vadia que um dia havia amado com tanta intensidade, que havia chegado a
acreditar que com ela passaria o resto da vida. Quanta ingenuidade!
Restavam-lhe muitos bens. Ainda possuia seu
prédio comercial no centro de New York, sua fonte de renda que ainda permitiria
que permanecesse rico até o dia de sua morte. Contava com uma lancha esportiva,
carros de luxo e uma casa na praia invejável, que havia comprado fazia dez
anos, mas que só tinha utilizado em duas ocasiões, em datas distantes e
sofríveis de serem relembradas, justamente em comemorações com a mulher, a
vadia que havia lhe apunhalado covardemente pelas costas e destroçado com sua
honra. De todas essas propriedades caras, havia uma pela qual tinha verdadeira
afeição. Tratava-se de seu bimotor.
Havia herdado o avião de seu pai, um artefato
de dois séculos. O veículo havia ficado guardado por bastante tempo, acumulando
poeira, enferrujando dentro de um galpão no meio de um deserto. Certo dia,
Robin havia visitado o local, para verificar os bens que ali estavam guardados,
isso um mês após ter perdido o pai, que tinha morrido em um catastrófico
acidente de trânsito, tendo sido esmagado por um caminhão desgovernado em uma
autoestrada solitária do país. Levado pela saudade de seu amado pai, Robin
havia se decidido por reformar o bimotor, como uma maneira simbólica de
preservar a memória de uma pessoa tão querida. Ainda não satisfeito, resolveu tirar
habilitação como piloto e entregou-se a uma paixão que até então era
desconhecida, a de desbravar os ares a bordo de seu barulhento bimotor.
Pelo menos em um final de semana do mês,
Robin se entregava a diversão de viajar em seu bimotor, voando pelos mares,
apreciando a vasta beleza do oceano. Gostava de sobrevoar o atlântico, por
conta das lendas que norteavam a região, boatos de desaparecimentos
inexplicáveis, que datavam de séculos de histórias fantasiosas e nunca
comprovadas. O famoso triangulo das bermudas. Robin nunca havia sido um homem
que se deixasse influenciar por lendas, coisas como gnomos ou fadas convivendo
harmoniosamente no mundo real. Não. Havia deixado esse tipo de mentira em sua
infância, esquecida em livros e histórias que ouvia antes de adormecer. Havia
crescido como um adulto cético. Comprou uma pequena ilha nas proximidades do
triângulo e de lá realizava seus voos, impassível às lendas.
E justamente em uma tarde de verão, com a
cabeça pesada pelos problemas que lhe rondavam, Robin decidiu-se por fazer um
breve passeio com seu bimotor, em uma tentativa de relaxar um pouco. Não tinha
filhos com os quais desfrutar essa diversão. Em seu casamento, não havia se
empenhado tanto para gerar um primogênito. Preferia investir em sua carreira
profissional, pensava apenas em amontoar mais dinheiro, tornar-se cada vez mais
rico e poderoso. Pena que alguns milhões de dólares não eram capazes de
amenizar a tristeza que sentia e o vazio solitário que se apoderava cada vez
mais intensamente de sua alma egoísta. Para inundar um pouco com alegria seu
coração ferido, Robin voava. Encontrava nos céus e entre as nuvens a paz
necessária para esquecer-se de suas aflições, sentir-se livre, alheio a tudo
como um pássaro em liberdade.
Alçou voo às três da tarde, após um almoço
angustiado e sem sabor. Seguiu na direção das Bahamas, alcançando altitude
considerável em questão de minutos, voando bem próximo de nuvens brancas como
algodão. O tempo estava ótimo e uma tempestade era algo impossível em dadas
condições, com a presença do sol a brilhar no horizonte para confirmar essa
afirmação. O barulho ressoante do motor era absorvido com prazer pelos ouvidos
de Robin, que o encarava como doce melodia, uma orquestra que só ele conseguia
compreender e adorar. Uma memória viva de seu falecido pai, uma oportunidade de
retornar a um período de seu passado em que havia sido feliz de fato.
Consultou a bússola para verificar se estava
seguindo pela direção certa, surpreendendo-se ao perceber que estava desregulada,
apontando para várias direções ao mesmo tempo, em uma dança louca e
incompreensível. Nuvens surgiram em seu campo de visão, envolvendo o bimotor em
uma camada branca, de onde nada podia ser distinguido. Robin procurou manter a
calma, mantendo o bico do avião inclinado, com a intenção de permanecer na
mesma altitude. Uma leve oscilação fez sentir-se, fazendo o veículo balançar de
maneira um tanto abrupta, como se estivesse preso em uma forte corrente de ar. Robin
aferrou o volante com as mãos, procurando estabilizar o voo, sentindo os seus
batimentos cardíacos acelerarem na medida em que o bimotor dava pulos descontrolados,
como um cavalo que resolve se rebelar contra seu dono.
O som do motor do avião tornou-se abafado,
quase nulo. As nuvens uniram-se e formaram um túnel cilíndrico, que seguia
infinitamente, por um horizonte cinzento. Robin manteve o avião em linha reta,
penetrando nesse caminho inusitado, clamando por ver uma saída o quanto antes e
visualizar adiante terra firme para pousar e terminar com o pesadelo que se
desenrolava. Minutos se passaram, e a sensação de ausência de som tornou-se
ainda mais presente, como se a sua audição estivesse se perdendo lentamente,
fazendo-o lembrar-se dos filmes mudos de Chaplin, em que os personagens eram
desprovidos da fala e comunicavam-se por meio de sinais. O ruído do motor
desapareceu e o silêncio tomou conta do ambiente, pesado e sólido como metal.
O túnel de nuvens se desfez e o bimotor
rasgou os ares por céus imersos em escuridão e coalhados de estrelas de brilho
vermelho e estranho. Uma lua amarelada surgiu no firmamento, de tamanho
monstruoso, uma bola de proporção desproporcional e diferente da que Robin era
acostumado a ver da sacada de seu apartamento de luxo, enquanto desfrutava do
doce sabor de um vinho francês. Não parecia pertencer ao céu do mundo ao qual
era habituado e sim de uma realidade anormal, originada da loucura de um homem
aprisionado em uma cela de um hospício. A lua amarela parecia lhe sorrir por
entre nuvens negras, convidando-lhe para a perdição da insanidade.
Sobrevoou uma faixa de terra obscurecida por
densa sombra de negritude. Avistou alguns pontos brilhantes no solo, distantes,
impossíveis de serem distinguidos. Arriscou-se em um rasante hábil e veloz,
acionando as rodas de aterrissagem do bimotor, aproximando-se assustadoramente do
que parecia ser uma pista de pouso. O contato ocorreu de forma violenta,
provocando um chocalhar incontrolável no avião, fazendo Robin bater a cabeça com
intrépido no painel, que resultou em um corte fundo em sua testa, que espirrou
sangue pelo vidro da frente e bloqueou a visão do que lhe espreitava do lado de
fora. Desesperado, pisou com força no pedal do freio, fazendo o bimotor
finalmente parar.
Caiu tonto do veículo, sentindo o contato do
solo com sua pele, agradecendo por ainda estar vivo e a salvo. Tirou sua camisa
e a amarrou na testa, que ajudou a estancar o sangue que escorria sem cessar, absorvendo-o
rapidamente. Levantou-se desorientado, caminhando com certa dificuldade,
fitando o céu de estrelas vermelhas com expressão abobada na face, como que
imerso em algum sonho nas profundezas de seu subconsciente. Não escutava sua
respiração ofegante, nem suas passadas no concreto da pista. O som estava
sufocado por uma atmosfera estranha, não identificável, não pertencente à
realidade morna de onde havia vindo.
De súbito, o ar ficou pesado, tão denso que
poderia até ser tocado. Tremores fizeram ser sentidos pelas solas de seus pés,
originários talvez de um terremoto de escala não ameaçadora ou da aproximação
de algo grande o bastante para engolir a própria existência. A escuridão já
presente tornou-se ainda mais palpável, espalhando sombras negras por todos os
cantos. Robin sentiu-se quase cego, andando a esmo, tentando localizar um ponto
onde pudesse apoiar o corpo fragilizado. O tremor aumentou de proporção, acompanhado
de um zumbido terrível, que adentrou em sua cabeça como forja incandescente,
provocando dores avassaladoras em seu crânio, como se algo estivesse rachando-o
ao meio.
Olhou para a direção do ruído, avistando uma
nuvem de criaturas negras e desprovidas de formas que pudessem ser detalhadas.
Eram massas escuras sem rosto e que emitiam o zumbido repugnante sem cessar,
com variações de intensidade, como se assim se comunicassem e articulassem um
plano maldoso contra o pobre homem, que manchado de sangue e em pranto
desesperado, tentava escapar do que parecia ser inevitável. Para seu azar,
havia uma pedra no meio do caminho e seu pé topou justamente com ela, fazendo-o
desabar como um boneco desarticulado ao chão. Arrastou-se dolorosamente no
solo, berrando sem conseguir escutar a própria voz, sufocado pelo ruído
infernal das aberrações, que em questão de segundos estavam em seus
calcanhares, devorando-o com milhares de dentes que pareciam serras afiadas, triturando
seus ossos como se fossem palitos frágeis de madeira. Sentiu uma dor lacerante
tomar-lhe os sentidos, tirar-lhe a capacidade de raciocinar e lhe lançar em um
mar de sofrimento carnal que nunca um dia imaginou que fosse sentir. No final
viu-se mergulhado em trevas, rumando para algum destino desconhecido. Agora
planava por ares de um mundo perdido em alguma dimensão de horror, livre como
um pássaro negro, que traz consigo mau agouro para onde quer que vá.
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