O sol em um tom alaranjado anuncia a
proximidade do fim de mais um dia. Carlos sai de sua casa sempre no mesmo
horário, bem disposto, animado para uma revigorante caminhada. Desde que ficou
sabendo do risco eminente de um ataque cardíaco, sua vida mudou drasticamente,
da noite para o dia. Passou a praticar exercícios físicos mesmo que imensamente
contrariado. Adorava um churrasco junto dos familiares nos fins de semana, e
ficar sem essa diversão seria um verdadeiro tormento, mas já havia feito a
promessa de que suportaria. Não poderia deixar seus filhos órfãos tão cedo.
Tinha que cuidar de seu corpo por eles. Pelas pessoas que mais amava.
Manter o ritmo de uma corrida era algo penoso para Carlos. O cansaço
chegava rápido demais, tornando suas pernas pesadas como troncos de árvores.
Após um mês de sacrifício, seu corpo já havia se acostumado, conseguindo se
adequar ao tipo de exercício que praticava todas as tardes, que era uma
caminhada acelerada acompanhada de uma corrida de leve, apenas para
complementar a queima de calorias. Apesar de detestar ter de suar a camisa para
manter a saúde, Carlos estava feliz pelos resultados alcançados. Havia perdido
alguns quilos, que ausentes por pouco tempo, tinham inferido positivamente nos
exames de rotina. Estava mais distante da morte, alguns passos, e planejava
afastar-se ainda mais.
Sexta-feira, um dia em que Carlos costumava fazer um farto churrasco em
sua casa, beber algumas cervejas geladas e participar de um divertido jogo de
cartas com seus amigos do peito. Um passado memorável. Suas farras haviam
terminado. Agora Carlos era um atleta, lutando contra a gordura, que há pouco
tempo atrás, consumia seu coração como uma praga esfomeada, levando-o para o precipício
sem volta da morte. Havia mesmo mudado. Sentia-se um tanto entristecido por ter
deixado para trás seus adorados costumes, mas sabia que era por uma boa causa.
Tinha uma família para sustentar, e não podia deixá-los sozinhos no mundo.
Suportaria tranquilamente uma sexta tediosa somente por eles. Uma data que não
seria tão penosa assim, não dessa vez. Carlos saborearia algumas emoções em
doses recheadas de pura adrenalina. Emoções fortes até demais, a ponto de
matar.
Havia uma avenida no trajeto que percorria em sua corrida. Um trecho não
muito agradável de atravessar. Carlos já tinha visto muitas pessoas falecerem
precocemente no local, de modo que carregava consigo um temor fundado, algo que
não conseguia controlar. Mesmo assim, arriscava-se em enfrentar a avenida, pois
justamente do outro lado, ficava um belo parque arborizado, onde praticava a
grande maioria de suas atividades, animando-se até a malhar um pouco seu corpo
gordo nas barras de aço. Não deixaria de ir até o agradável parque por causa de
um risco irrisório. Atropelamentos aconteciam todos os dias ali, mas isso não
queria dizer que pudesse ocorrer com ele também. Sua sorte o havia protegido
durante muito tempo, e não iria abandoná-lo do nada. Foi com esse pensamento,
que Carlos iniciou sua travessia na avenida. Então, simplesmente aconteceu.
Estava no meio da avenida, quando um guincho de um freio desgastado se
fez ouvir. Uma carreta pesada tombou, capotando desgovernadamente por repetidas
vezes, em alta velocidade, espalhando pedaços de metal por todas as direções.
Carlos viu aquele monte de ferro retorcido indo em sua direção e sentiu seu
corpo congelar. Não sabia o que fazer. Estava diante da morte, sem qualquer
tipo de reação ou atitude para tomar. Apenas esperou, fechou os olhos, tentando
imaginar como seria o outro lado, se no paraíso poderia fazer churrascos a vontade,
isso se fosse mesmo para onde os bons e justos iam. Então, a imensa carreta, ou
o que sobrou dela, passou bem ao seu lado, com intrépido, ruidosamente, fazendo
seus ouvidos doerem no mais profundo. Abriu os olhos e viu-se são e salvo.
Estava vivo, e com uma boa história para contar.
A única perda foi a do motorista, o homem que dirigia a carreta, que,
diga-se de passagem, mereceu o destino, pois estava completamente embriagado.
Carlos prestou socorro, chamando uma ambulância até o local, e logo partiu
disposto a fazer seus exercícios diários. Havia quase morrido, mais isso não o
tinha deixado nem um pouco amedrontado. Tinha que tratar de sua saúde, ou caso
contrário, iria ter o mesmo destino do carreteiro, só que de uma maneira
diferente. O relógio corria apressadamente, deixando-o sem alternativas. Não
tinha tempo a perder. Um dia mal aproveitado e os riscos de um ataque cardíaco aumentavam
consideravelmente.
Enfim, chegou ao parque. Iniciou sua caminha pelas trilhas de terra,
apreciando a natureza e toda a sua estonteante beleza. Verdade que as únicas
coisas que vinham em sua cabeça eram imagens tentadoras, como de carnes assando
na grelha, uma cerveja tão gelada, que chegava a doer à cabeça, além de outros
deliciosos pratos repletos da mais pura gordura. Seria um sonho se pudesse
degustá-los novamente. Infelizmente tinha de correr pela vida. Afastou tais
delícias de sua mente e apressou o passo. Com sorte, chegaria a tempo de
acompanhar um jogo de futebol na televisão. Das suas diversões, essa era a
única que tinha lhe restado.
Mais uma vez, o destino resolveu brincar com seus nervos. Carlos corria
tranquilamente pela trilha de terra batida, quando sem perceber, pisou em falso
em um trecho enlameado, completamente escorregadio. Caiu pesadamente no chão,
despencando por um morro tortuoso, uma pequena colina que circundava todo o
parque. Não tinha como reagir. Dava cambalhotas descontroladas em meio à relva,
incapaz de diminuir a velocidade, de parar a descida horizontal, que acabaria
lhe levando a morte. Bem próximo já estava o muro de concreto que cercava o
local. Bater com a cabeça em algo tão duro seria como assinar um atestado de
óbito.
Então, a sorte mais uma vez lhe salvou. Podemos chamar também de reação
instintiva ao perigo. Acontece com todo mundo, necessariamente quando estamos
em uma situação em que corremos sérios riscos de deixar a terra dos vivos. O
fato é que Carlos agarrou-se em uma raiz fortemente presa ao solo, a
responsável por refrear sua queda quase inevitável. A raiz se soltou, mas o
tempo em que agüentou o peso de Carlos, (que não era nada leve só para constar)
foi crucial. Parou bem em frente ao muro, respirando aliviado. Levantou-se,
observando o quanto suas roupas estavam sujas, e a quantidade de sangue que
escorria pelas escoriações que havia sofrido em seu infeliz incidente. Havia
sobrevivido mais uma vez.
Fez o caminho de volta para casa com dificuldade. Seu corpo ardia
terrivelmente. Sentia-se como um lutador de vale tudo, depois de ter tomado uma
surra das boas de seu adversário. Apesar de tudo, estava feliz. Tinha
sobrevivido por duas vezes no mesmo dia, em um intervalo de uma hora. Havia
algum ser bondoso ao seu lado, lhe protegendo com certeza. Um sinal de que
ainda teriam de suportá-lo por muito mais tempo. Como diz um velho provérbio, “vaso
ruim não quebra”. Ainda bem, pensou Carlos, sentindo-se em um filme exagerado
de ação, em que o personagem passa por poucas e boas e ainda sai inteiro para
contar sobre suas desventuras.
Vale lembrar que o dia ainda não havia terminado. Restavam horas para
isso acontecer, e bem se sabe que em questão de minutos, muita coisa
desagradável pode acontecer. Lá estava Carlos, sorrindo para todos, sentindo-se
um bravo guerreiro depois de uma sangrenta batalha, saldando sua sobrevivência com
imensa felicidade. Inesperadamente, um estouro se fez ouvir, bastante próximo,
carregado de um cheiro de pólvora venenoso, que se insinuava como um convite
irrecusável para um encontro sem volta com a benevolente senhora morte. Carlos olhou
na direção do projétil, tendo tempo para pular para trás de uma árvore. O tiro
acertou-lhe o ventre, fazendo-o sangrar desesperadamente, como um saco de leite
furado. Doía, mas de leve, sem torturá-lo. Carlos fechou os olhos, e esperou
pelo momento em que diria adeus a tudo. Tinha sobrevivido por vezes demais.
Dessa vez, nada poderia lhe salvar. Quem sabe, a sorte. Quem sabe.
Existem muitas pessoas boas nesse mundo. Uma delas estava bem próxima do
incidente, observando atentamente a tudo. Chamou por uma ambulância, a qual
chegou ao local rapidamente. Carlos foi socorrido e levado com vida para o
hospital, onde conseguiu se recuperar. Pela terceira vez em um mesmo dia,
sobreviveu. Poderia escrever um relato emocionante, dizendo o quanto Deus lhe
amava. Já pensava em exigir uma canonização, afinal devia ser um santo depois
de operar tantos milagres. O homem que driblou a morte. Um dos poucos capazes
de enganar esse ser astuto, malandro, conhecedor de truques para ceifar com a
existência de muitos. Carlos tinha sido superior a morte.
Alguns dias no hospital lhe deixaram completamente recuperado, pronto
pra outra. Recebeu alta, e a admiração de todos os que ficaram sabendo de sua
história. Não era fácil sobreviver depois de levar um tiro em uma parte tão
frágil do corpo. Ficariam ainda mais assombrados se soubessem das suas outras
duas façanhas. Essas Carlos guardaria consigo. Ninguém iria acreditar mesmo. Uma
vantagem que deixaria para contar nas mesas de bar. Voltaria a beber, comer
como um louco e a jogar carteado com os amigos. Não se privaria de tais
diversões. Não mais. Poderia até continuar com os exercícios, mas o prazer
tinha de vir em primeiro plano. Já havia encarado a morte por vezes demais e
jurava ter entendido a lição deixada por tal experiência. Tinha de aproveitar a
vida, ao máximo.
Com uma nova filosofia de vida, Carlos encaminhou-se até a saída do hospital,
ansioso para voltar a sua rotina deliciosa de antigamente. Estava tão distraído
e feliz, que não prestou atenção em uma inofensiva poça de água em seu trajeto,
pequena, mas muito escorregadia. Seu pé firmou-se em sua composição líquida,
perdendo o equilíbrio imediatamente. Não tinham lhe avisado sobre o quanto o
piso era liso, como deslizava com facilidade. Carlos caiu como uma fruta podre.
Um tombo normal. Com certeza machucaria o braço, quem sabe a perna. No entanto,
havia uma quina no caminho. Sua nuca foi de encontro a ela. O ponto atingido
rasgou-se com o baque, jorrando uma quantidade de sangue assustadora.
Traumatismo craniano e morte cerebral na mesma hora. O homem que driblou a
morte jazia sem vida no chão, sem o mesmo sorriso de antes. Que ironia.
Alguns correram em sua direção, na
esperança de tentar prestar um último socorro. Não havia mais jeito. Carlos
tinha falecido. Todos os que ali estavam lamentaram sua partida, inclusive sua
família, filhos e mulher, que entraram em desespero assim que ficaram sabendo
do terrível acidente. Coisas da vida. Enquanto todos cercavam seu cadáver
imóvel no chão, um vulto se esgueirava até ele, tirando-lhe o seu sopro de
vida, um presente dado por Deus aos seres viventes no início da existência. A
sombra observou o desalento das pessoas que ali estavam e sorriu. O homem já ia
tarde até demais. Havia conseguido escapar de suas armadilhas, mas não por
muito tempo. Ninguém escapa de suas cruéis garras. Como costumam dizer, a única
coisa certa nessa vida é a morte. Disso, podem ter certeza.
NOSSA! Que coisa não! Mas coisas assim me aterrorizam, essas série de eventos que não coseguimos controlar. Me fez lembrar do filme Premonição, quando chega nossa hora, não teremos controle. Belo conto Rafs.
ResponderExcluirushaushaushausha! Vlw. Bom saber que eu já tenho uma fá. Já é um começo.
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