sábado, 19 de maio de 2012

Terras Áridas


19 de Março de 2055

   Enfim, fui escolhido como o próximo sortudo com a importante missão de explorar o mundo exterior. Estamos vivendo já há uma década longe da luz do sol. Embaixo da terra, como os mortos. O mundo de antes, foi completamente remodelado. Com certeza, não é mais o mesmo, pelo menos pelo que ouço falar. Vida? Quem sabe ainda exista. Pelo que me contam, o Apocalipse ocorrido no ano de 2045 acabou com a mais remota possibilidade de haver seres vivos caminhando pela terra. Nós os seres humanos, antes cheios de si, crentes de possuírem o universo nas mãos, estamos fadados a viver para todo o sempre abaixo do solo, como vermes. Tudo por conta de nossa incontrolável ganância. Eu era apenas um garoto quando tudo aconteceu. A grande guerra. Uma violenta disputa nuclear, onde não houve vencedores. Por sorte, tinham pensando nas conseqüências dessa sangrenta batalha. Bunkers especiais foram construídos por toda a extensão do país, fortes o bastante para suportarem o desenrolar desse terrível confronto. Milhões de mortos. Sobreviventes? Algumas centenas, que assim como eu, se escondem nas trevas, mantendo a sanidade com as poucas lembranças que restam. Quem sabe ainda haja esperança, uma luz derradeira no fim do túnel...

 26 de Março de 2055

   O equipamento está preparado para minha jornada. Tenho certo receio. Faz seis meses desde que o último explorador retornou de seu passeio. Não voltou bem. Um tanto abalado posso dizer. Assustado. Creio que tenha visto algo um tanto perturbador. Acorda no meio da noite quase sempre gritando, berrando como um louco. Tem pesadelos recorrentes, os quais nunca têm coragem de contar. Diz ser besteira, apenas baboseira inventada de sua mente altamente imaginativa. Bom, pode ser. Isso me deixa um tanto amedrontado. Será que existe algo de perigoso no mundo exterior? O nosso maior inimigo creio, talvez seja o sol, o qual dizem estar dez vezes mais quente, devidas as mudanças climáticas significativas em nosso meio. Por sorte, a roupa protetora que irei usar nas semanas de investigação com certeza dará conta do recado. Evitará que eu tenha um câncer incurável de pele. Estou ansioso. Mal posso esperar para ver o mundo de cima.

4 de Abril de 2055

   A luz quase me cegou, assim que a enorme comporta do bunker foi aberta para minha passagem. Realmente, os raios solares parecem estar mais poderosos do que nunca foram. Sinto que conseguem quase que atravessar a pesada vestimenta de proteção que uso, ansiosos por perfurarem minha carne, queimá-la em questão de segundos. A paisagem não é muito animadora. Diria que é um tanto desolada. Areia para todos os lados, um imenso deserto. Não vejo um único arbusto, um mero remanescente de vegetação. Será difícil encontrar alimento em um lugar como esse. Tenho algumas boas provisões, que podem durar por semanas, e alguns litros de águas, retirados diretamente do solo freático, a única fonte em todo o planeta que não está contaminada por radiação. Me bastarão por certo tempo, o necessário para concluir meu trabalho. Não espero demorar-me demasiadamente. O mundo exterior não me agrada nem um pouco. Prefiro as profundezas isoladas do subsolo. 

9 de Abril de 2055

   Percorri alguns quilômetros, e devo dizer que estou completamente desanimado em relação a essa missão. Não encontrei sequer um único ser vivo durante esses quase intermináveis dias de exploração, nem mesmo um inseto. Até mesmo as baratas, consideradas no passado os seres mais resistentes do planeta, talvez os únicos capazes de sobreviver a um apocalipse nuclear, estão ausentes nesse cenário morto, vazio. Deserto. Apenas algumas poucas construções surgem no horizonte, restos da arquitetura do passado, lembranças de uma civilização extinta, de tempos distintos. Fico triste ao me deparar com uma imagem tão desanimadora. Não há mesmo esperança. Estamos marcados para todo o sempre, condenados a viver enclausurados no ventre da terra. 

15 de Abril de 2055

  Estou feliz. Minhas esperanças em um futuro de reconstrução ressuscitaram em meu peito. Encontrei no meio de todo esse imenso deserto, o qual nomeei de terras áridas com todo o máximo de carinho que consegui reunir, uma pequena flor, bem pequena, franzina, frágil e desprotegida. Está em uma pequena faixa de terra de coloração escura, a qual me parece ser bastante fértil, capaz talvez de dar origem a várias formas de vida vegetais. Recolhi essa pequena amostra de que há um Deus lá em cima ansioso por um desfecho feliz para a desgraça da história humana, e a guardei com afeição dentro de minha pesada vestimenta. Recolhi também uma amostra da terra. Será muito útil para os cientistas do bunker em que habito. Quem sabe, uma das soluções para o estado lastimável em que meu mundo se encontra. Minha viagem não será em vão. 

23 de Abril de 2055

  Nada de novo para contar. Minha jornada se aproxima de seu término. Não encontrei mais nada que pudesse me despertar a atenção. A única coisa que me cerca é a maldita poeira. Ainda bem que uso uma máscara, ou caso contrário, já estaria quase morto por uma violenta alergia. Minhas provisões estão quase no fim. O que me consola, é saber que estou bem próximo de minha morada. Logo estarei de volta, protegido no interior daquela enorme construção de aço inoxidável. Ainda penso nos motivos que levaram o último explorador a desenvolver aquele medo quase insano. Não encontrei nada de perturbador nas terras áridas. Não há vida neste lugar. Apenas solidão. Talvez essa seja a responsável por seus devaneios, seus sonhos angustiantes. Quem sabe. Não importa. A única coisa da qual quero saber, é de retornar são e salvo para meu doce e amado lar.
 
28 de Abril de 2055

   Ainda não sei como definir aquela coisa. Será que há mesmo definição para algo tão vil? Uma cria do inferno. Tenho muita sorte por ainda estar vivo. Tem alguém lá em cima que realmente gosta de mim. Maldita hora em que tive a brilhante idéia de investigar uma das dezenas de construções abandonadas. Adentrei no que no passado era uma delegacia de polícia, apenas por curiosidade. Queria me recordar mais vivamente de minha antiga vida, antes da grande guerra. Estava escuro. A lanterna que trago comigo, pouco iluminava, apenas o bastante para mostrar o caminho a ser tomado. Mobílias velhas se destacaram em meio às sombras, resquícios da obra humana. Nada de interessante. A única coisa que me chamava à atenção era um odor pestilento, que me trazia a cabeça a imagem nítida de restos mortais em decomposição. Um cheiro fortíssimo. Segui o seu rastro, controlando a minha ânsia de libertar de meu estômago o desjejum da tarde, que com esforço se mantinha em sua devida posição. Foi então, que escutei um movimento estranho em meio à escuridão. Um mover de membros silencioso, que produzia um som de rastejar irritante, e ao mesmo tempo assustador. Parecia a junção de várias patas em movimento. Ruído seguido de um sopro de uma respiração diferente de qualquer outra que já conheci. Poderia definir como esponjosa, que me dava à impressão de que a coisa que agora ocupava o mesmo espaço que o meu, tinha o pulmão tomado por alguma espécie de liquido viscoso, igual a catarro. Medo.

  Retrocedi alguns passos. Não tinha qualquer intenção de descobrir a aparência da coisa que no momento me espreitava. Antes que conseguisse começar a me movimentar, um guincho estridente se fez ouvir, agudo, capaz de explodir os tímpanos. Não era um ser vivo qualquer, disso tenho certeza. Uma forma de vida diferente de tudo que já caminhou sobre a terra. Uma criatura de origem desconhecida, furiosa, ansiosa por alimentar-se. Já teria experimentado o delicioso sabor da carne humana? Creio que não. Tenho certeza de que não, devido ao seu desespero, sua ânsia por me ter em meio as suas presas amareladas, afiadas como navalha, que saltaram da escuridão de repente, me pegando completamente desprevenido. Tentei me desvencilhar. Ótimo, salvei meu braço, mas perdi dois dedos de uma das mãos, que foram arrancados com a maior facilidade do mundo de meu corpo, como se fossem feitos de papel. Senti o que restou de minha mão tomada por algo grudento. Diante da luz de minha lanterna, tinha o aspecto repulsivo de catarro, diferindo apenas na coloração, que era amarelada. Aquilo queimou ao entrar em contato com minha pele, como ácido, me provocando uma dor angustiante, quase insuportável. Não deixei ser vencido pelas sensações desagradáveis que me açoitavam, e iniciei uma corrida desesperada, em meio aos corredores escuros da delegacia abandonada. A coisa, fosse o que fosse, me perseguia, ágil, fazendo ressoar sua milhares de pernas no chão de madeira do recinto, sons amplificados pelo eco produzido pelo lugar, o qual acreditava que seria o meu túmulo. Não sei como consegui, mas fugi da morte. Voltei para a proteção do sol, e me joguei de encontro à areia, banhado em suor, com o coração disparado, quase que arrancado do peito pela adrenalina poderosa que dominava meu corpo. 

  Estou vivo. Com a mão dilacerada, mais vivo. Não consegui ver a aparência de meu perseguidor. A única coisa da qual sei, é que não se trata de uma criatura normal, como as que existiam antes do mundo deixar de ser um lugar agradável. De onde veio? Não sei, e não tenho o menor interesse de descobrir. Algumas questões devem continuar insolúveis, para o próprio bem de muitos. Meu único desejo é o de voltar para meu abrigo, e nunca mais retornar as terras áridas. Creio que esse enorme deserto esconde muitos segredos, muitos deles, terríveis, capazes de enlouquecer o mais bravo dos homens. Uma parte de minha sanidade se foi. Nunca mais serei o mesmo. Não depois de confrontar a morte dessa maneira, na forma de uma besta assassina, sedenta por sangue. 

2 de Maio de 2055

  Parado diante da entrada do bunker por horas, com medo de anunciar minha chegada. Não serei aceito. Estou diferente. Algo em mim mudou. Não se trata de uma metáfora barata, mas sim da verdade plena. Meu corpo está se transformando. Minha pele parece estar mais escamosa, quebradiça, como que tomada por uma camada de muco seco. O contato com sua superfície é repulsivo. Uma dor lacerante toma minhas entranhas. Parece que algo cresce em meio as minhas vísceras, pronto para arrebentá-las, abrindo caminho até o lado de fora. Me faz pensar em um verme de proporções agigantadas, um verdadeiro monstro, alimentado pela minha carne, meus órgãos. Não irei durar muito. A morte me espera, ou talvez, algo novo. Uma transformação. Será que uma nova versão de meu ego está para desabrochar? Pensamento assustador, mas inevitável. Debato-me na areia das terras áridas, tomado por dores dignas das sentidas por uma mulher durante o parto. Creio que quando encontrarem meus escritos, já não farei mais parte desse mundo. Outro tomará para si meu corpo, como uma mera casca, preparada para propósitos maiores. Quais são? Tremo só de tentar imaginar. Melhor não pensar nisso. Melhor aguardar, até que o sofrimento não se faça mais sentir...





2 comentários:

  1. UAU... extremamente futurístico. Assustador. Achei que foram idéias legais, achar tipo um diário do protagonista. Vc escreve muito bem, praticamente impecável. Parabens pelo blog e com certeza segueirei. Adoro histórias de terror :D.

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