19 de Março de 2055
Enfim, fui escolhido como
o próximo sortudo com a importante missão de explorar o mundo exterior. Estamos
vivendo já há uma década longe da luz do sol. Embaixo da terra, como os mortos.
O mundo de antes, foi completamente remodelado. Com certeza, não é mais o
mesmo, pelo menos pelo que ouço falar. Vida? Quem sabe ainda exista. Pelo que
me contam, o Apocalipse ocorrido no ano de 2045 acabou com a mais remota
possibilidade de haver seres vivos caminhando pela terra. Nós os seres humanos,
antes cheios de si, crentes de possuírem o universo nas mãos, estamos fadados a
viver para todo o sempre abaixo do solo, como vermes. Tudo por conta de nossa
incontrolável ganância. Eu era apenas um garoto quando tudo aconteceu. A grande
guerra. Uma violenta disputa nuclear, onde não houve vencedores. Por sorte, tinham
pensando nas conseqüências dessa sangrenta batalha. Bunkers especiais foram
construídos por toda a extensão do país, fortes o bastante para suportarem o
desenrolar desse terrível confronto. Milhões de mortos. Sobreviventes? Algumas
centenas, que assim como eu, se escondem nas trevas, mantendo a sanidade com as
poucas lembranças que restam. Quem sabe ainda haja esperança, uma luz derradeira
no fim do túnel...
26 de
Março de 2055
O equipamento está
preparado para minha jornada. Tenho certo receio. Faz seis meses desde que o
último explorador retornou de seu passeio. Não voltou bem. Um tanto abalado
posso dizer. Assustado. Creio que tenha visto algo um tanto perturbador. Acorda
no meio da noite quase sempre gritando, berrando como um louco. Tem pesadelos
recorrentes, os quais nunca têm coragem de contar. Diz ser besteira, apenas
baboseira inventada de sua mente altamente imaginativa. Bom, pode ser. Isso me
deixa um tanto amedrontado. Será que existe algo de perigoso no mundo exterior?
O nosso maior inimigo creio, talvez seja o sol, o qual dizem estar dez vezes
mais quente, devidas as mudanças climáticas significativas em nosso meio. Por
sorte, a roupa protetora que irei usar nas semanas de investigação com certeza
dará conta do recado. Evitará que eu tenha um câncer incurável de pele. Estou
ansioso. Mal posso esperar para ver o mundo de cima.
4 de Abril de 2055
A luz quase me cegou, assim que a enorme comporta do bunker foi aberta
para minha passagem. Realmente, os raios solares parecem estar mais poderosos
do que nunca foram. Sinto que conseguem quase que atravessar a pesada
vestimenta de proteção que uso, ansiosos por perfurarem minha carne, queimá-la
em questão de segundos. A paisagem não é muito animadora. Diria que é um tanto
desolada. Areia para todos os lados, um imenso deserto. Não vejo um único
arbusto, um mero remanescente de vegetação. Será difícil encontrar alimento em
um lugar como esse. Tenho algumas boas provisões, que podem durar por semanas,
e alguns litros de águas, retirados diretamente do solo freático, a única fonte
em todo o planeta que não está contaminada por radiação. Me bastarão por certo
tempo, o necessário para concluir meu trabalho. Não espero demorar-me
demasiadamente. O mundo exterior não me agrada nem um pouco. Prefiro as
profundezas isoladas do subsolo.
9 de Abril de 2055
Percorri alguns
quilômetros, e devo dizer que estou completamente desanimado em relação a essa
missão. Não encontrei sequer um único ser vivo durante esses quase
intermináveis dias de exploração, nem mesmo um inseto. Até mesmo as baratas,
consideradas no passado os seres mais resistentes do planeta, talvez os únicos
capazes de sobreviver a um apocalipse nuclear, estão ausentes nesse cenário
morto, vazio. Deserto. Apenas algumas poucas construções surgem no horizonte,
restos da arquitetura do passado, lembranças de uma civilização extinta, de
tempos distintos. Fico triste ao me deparar com uma imagem tão desanimadora.
Não há mesmo esperança. Estamos marcados para todo o sempre, condenados a viver
enclausurados no ventre da terra.
15 de Abril de 2055
Estou feliz. Minhas esperanças em um futuro de reconstrução ressuscitaram
em meu peito. Encontrei no meio de todo esse imenso deserto, o qual nomeei de
terras áridas com todo o máximo de carinho que consegui reunir, uma pequena
flor, bem pequena, franzina, frágil e desprotegida. Está em uma pequena faixa
de terra de coloração escura, a qual me parece ser bastante fértil, capaz
talvez de dar origem a várias formas de vida vegetais. Recolhi essa pequena
amostra de que há um Deus lá em cima ansioso por um desfecho feliz para a
desgraça da história humana, e a guardei com afeição dentro de minha pesada
vestimenta. Recolhi também uma amostra da terra. Será muito útil para os
cientistas do bunker em que habito. Quem sabe, uma das soluções para o estado
lastimável em que meu mundo se encontra. Minha viagem não será em vão.
23 de Abril de 2055
Nada de novo para contar.
Minha jornada se aproxima de seu término. Não encontrei mais nada que pudesse
me despertar a atenção. A única coisa que me cerca é a maldita poeira. Ainda
bem que uso uma máscara, ou caso contrário, já estaria quase morto por uma
violenta alergia. Minhas provisões estão quase no fim. O que me consola, é
saber que estou bem próximo de minha morada. Logo estarei de volta, protegido
no interior daquela enorme construção de aço inoxidável. Ainda penso nos
motivos que levaram o último explorador a desenvolver aquele medo quase insano.
Não encontrei nada de perturbador nas terras áridas. Não há vida neste lugar.
Apenas solidão. Talvez essa seja a responsável por seus devaneios, seus sonhos angustiantes.
Quem sabe. Não importa. A única coisa da qual quero saber, é de retornar são e
salvo para meu doce e amado lar.
28 de Abril de 2055
Ainda não sei como definir aquela coisa. Será que há mesmo definição
para algo tão vil? Uma cria do inferno. Tenho muita sorte por ainda estar vivo.
Tem alguém lá em cima que realmente gosta de mim. Maldita hora em que tive a
brilhante idéia de investigar uma das dezenas de construções abandonadas. Adentrei
no que no passado era uma delegacia de polícia, apenas por curiosidade. Queria
me recordar mais vivamente de minha antiga vida, antes da grande guerra. Estava
escuro. A lanterna que trago comigo, pouco iluminava, apenas o bastante para
mostrar o caminho a ser tomado. Mobílias velhas se destacaram em meio às
sombras, resquícios da obra humana. Nada de interessante. A única coisa que me
chamava à atenção era um odor pestilento, que me trazia a cabeça a imagem nítida
de restos mortais em decomposição. Um cheiro fortíssimo. Segui o seu rastro,
controlando a minha ânsia de libertar de meu estômago o desjejum da tarde, que
com esforço se mantinha em sua devida posição. Foi então, que escutei um movimento
estranho em meio à escuridão. Um mover de membros silencioso, que produzia um
som de rastejar irritante, e ao mesmo tempo assustador. Parecia a junção de
várias patas em movimento. Ruído seguido de um sopro de uma respiração
diferente de qualquer outra que já conheci. Poderia definir como esponjosa, que
me dava à impressão de que a coisa que agora ocupava o mesmo espaço que o meu,
tinha o pulmão tomado por alguma espécie de liquido viscoso, igual a catarro. Medo.
Retrocedi alguns passos. Não tinha qualquer intenção de descobrir a
aparência da coisa que no momento me espreitava. Antes que conseguisse começar
a me movimentar, um guincho estridente se fez ouvir, agudo, capaz de explodir
os tímpanos. Não era um ser vivo qualquer, disso tenho certeza. Uma forma de
vida diferente de tudo que já caminhou sobre a terra. Uma criatura de origem
desconhecida, furiosa, ansiosa por alimentar-se. Já teria experimentado o
delicioso sabor da carne humana? Creio que não. Tenho certeza de que não,
devido ao seu desespero, sua ânsia por me ter em meio as suas presas
amareladas, afiadas como navalha, que saltaram da escuridão de repente, me
pegando completamente desprevenido. Tentei me desvencilhar. Ótimo, salvei meu
braço, mas perdi dois dedos de uma das mãos, que foram arrancados com a maior
facilidade do mundo de meu corpo, como se fossem feitos de papel. Senti o que
restou de minha mão tomada por algo grudento. Diante da luz de minha lanterna,
tinha o aspecto repulsivo de catarro, diferindo apenas na coloração, que era
amarelada. Aquilo queimou ao entrar em contato com minha pele, como ácido, me
provocando uma dor angustiante, quase insuportável. Não deixei ser vencido pelas
sensações desagradáveis que me açoitavam, e iniciei uma corrida desesperada, em
meio aos corredores escuros da delegacia abandonada. A coisa, fosse o que
fosse, me perseguia, ágil, fazendo ressoar sua milhares de pernas no chão de
madeira do recinto, sons amplificados pelo eco produzido pelo lugar, o qual
acreditava que seria o meu túmulo. Não sei como consegui, mas fugi da morte.
Voltei para a proteção do sol, e me joguei de encontro à areia, banhado em
suor, com o coração disparado, quase que arrancado do peito pela adrenalina
poderosa que dominava meu corpo.
Estou vivo. Com a mão dilacerada, mais vivo. Não consegui ver a
aparência de meu perseguidor. A única coisa da qual sei, é que não se trata de
uma criatura normal, como as que existiam antes do mundo deixar de ser um lugar
agradável. De onde veio? Não sei, e não tenho o menor interesse de descobrir.
Algumas questões devem continuar insolúveis, para o próprio bem de muitos. Meu
único desejo é o de voltar para meu abrigo, e nunca mais retornar as terras áridas.
Creio que esse enorme deserto esconde muitos segredos, muitos deles, terríveis,
capazes de enlouquecer o mais bravo dos homens. Uma parte de minha sanidade se
foi. Nunca mais serei o mesmo. Não depois de confrontar a morte dessa maneira,
na forma de uma besta assassina, sedenta por sangue.
2 de Maio de 2055
Parado diante da entrada do
bunker por horas, com medo de anunciar minha chegada. Não serei aceito. Estou
diferente. Algo em mim mudou. Não se trata de uma metáfora barata, mas sim da
verdade plena. Meu corpo está se transformando. Minha pele parece estar mais
escamosa, quebradiça, como que tomada por uma camada de muco seco. O contato com
sua superfície é repulsivo. Uma dor lacerante toma minhas entranhas. Parece que
algo cresce em meio as minhas vísceras, pronto para arrebentá-las, abrindo
caminho até o lado de fora. Me faz pensar em um verme de proporções
agigantadas, um verdadeiro monstro, alimentado pela minha carne, meus órgãos. Não
irei durar muito. A morte me espera, ou talvez, algo novo. Uma transformação.
Será que uma nova versão de meu ego está para desabrochar? Pensamento
assustador, mas inevitável. Debato-me na areia das terras áridas, tomado por
dores dignas das sentidas por uma mulher durante o parto. Creio que quando
encontrarem meus escritos, já não farei mais parte desse mundo. Outro tomará
para si meu corpo, como uma mera casca, preparada para propósitos maiores. Quais
são? Tremo só de tentar imaginar. Melhor não pensar nisso. Melhor aguardar, até
que o sofrimento não se faça mais sentir...
UAU... extremamente futurístico. Assustador. Achei que foram idéias legais, achar tipo um diário do protagonista. Vc escreve muito bem, praticamente impecável. Parabens pelo blog e com certeza segueirei. Adoro histórias de terror :D.
ResponderExcluirsuhaushaushaushuas! Vlw pelo apoio.
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