sábado, 23 de junho de 2012

Carrasco

   Visão turva. Apenas imagens distorcidas, distante da realidade, sem forma definida. Sombras por todas as partes, lançadas como jatos de tintas descontrolados, manchando cada ponto diante de seus olhos. Enfim, a consciência se recobra. Charles força a vista. Sua cabeça dói angustiantemente, como se tivesse tomado um soco certeiro bem no meio da cara. Tem dificuldade para se manter de pé e se equilibrar tornar-se uma tarefa árdua. Sente-se doente. Um tanto perdido também. Não sabe exatamente aonde está. É um extenso corredor, escuro, sombrio e silencioso, de tal forma, que chega a assustar. Apenas isso. Um corredor, aparentemente, sem fim.

   Tenta se lembrar das coisas que havia feito antes de seu despertar inesperado. Lembranças disformes invadem sua mente como um estourar de uma garrafa de champanhe recentemente aberta, de leve, mas com certa agressividade. Uma cena forma-se diante de seus olhos. Um pequeno quarto em sua casa, fédido, apertado, ocupado apenas por uma cadeira de aço enferrujada. Em cima da mesma há uma grossa corrente, daquelas impossiveis de se quebrar. No chão uma pequena poça de sangue seco. Um pouco adiante no piso, um dente de algum desafortunado brilha diante das luzes fracas do cômodo, como que para alertar a todos de sua presença. Em uma pequena mesa ao lado da cadeira, há uma faca bem afiada, daquelas usadas pelos açougueiros. Está manchada de vermelho.

   Tal visão desaparece, e uma outra surge diante dos olhos assustados de Charles. Ele se vê em alguma época distante, vestido em seu uniforme tradicional de militar. É um polícial de respeito, um protetor dos fracos e oprimidos, dos homens de bem. Vive pela justiça, e tudo o que faz é em nome da mesma. Criminosos? Simplesmente os detesta. Se pudesse, faria uma limpa no mundo, acabando com todos eles, da maneira mais cruél que pudesse adotar. O motivo de tanta revolta? Em verdade, nenhum de grande relevância. Havia sido assaltado uma vez antes de seguir carreira como um oficial. Teve ódio pelo homem que lhe levou a carteira, e desde esse dia, resolveu que tinha de fazer algo pela humanidade. Um justiceiro às avessas. Justiça com as próprias mãos.

   Novamente o quarto apertado surge em sua mente. Dessa vez, na cadeira há um garoto de pele escura, repleto de ferimentos pelo corpo. Sua boca sangra, e um de seus dentes está no chão, reluzindo contra a luz fraca das lâmpadas. Charles está na sua frente, com uma faca em uma das mãos, uma expressão alucinada, própria de um desvariado. Havia visto o garoto roubando uma pobre senhora indefesa. Tinha sido tomado pelo mais puro ódio ao testemunhar o crime. Apreendeu o garoto, mas não o levou a uma instituição para recuperação de jovens. O destino era outro. O porão de sua casa. O local onde trataria de aplicar a devida lição ao deliquente juvenil, à sua própria maneira. Justiça.

   Julgamentos precipitados nos levam a cometer erros. Alguns de natureza gravíssima. Não que o garoto estivesse correto em roubar velhinhas indefesas. A vida tinha lhe ensinado a fazer isso, como uma forma de sobreviver ao caos do mundo, as desigualdades. Diante dos olhos de Charles, surgiu a modesta casa do garoto, um barraco pequeno de apenas dois cômodos, sendo um o quarto e o outro um banheiro, do tamanho de um ármario de vassouras. Havia uma cama no cenário, e nela uma mulher de aspecto desagradável. Estava adoentada, e muito próxima de sua morte. Doença quase fatal. Um câncer em estágio final. Não havia mais volta. Ao lado da cama estava o garoto aos prantos. Fazia milhares de promessas. Dizia que iria conseguir dinheiro, o necessário para pagar um tratamento decente para sua mãe, que já agonizava, sentindo a proximidade gélida da morte em seus calcanhares. Uma cena lastimável.

   Novamente o quarto onde Charles aplicava a justiça aos desregrados surgiu. O garoto jazia morto na cadeira, desfigurado pela faca de açougueiro. Em sua mão aberta, havia um pequeno retrato. Era de uma morena sorridente, de aparência simpática, abraçada a um garoto, o mesmo que naquele momento, tinha acabado de perder a sua vida em um porão imundo, na compania de ratos e de um louco que acreditava que estava livrando o mundo da perversidade. Charles viu o pequeno retrato. Sentiu um aperto no coração. Era como se um peso de dez toneladas houvesse se chocado contra seu orgão. Deixou algumas lágrimas de arrependimento rolarem por sua face. Em sua busca por justiça, um inocente, corrompido pelas adversidades da vida, tinha sido sacrificado. Charles estava arrependido. No entanto, já era tarde. Não havia mais como voltar atrás.

   As lembranças se desfizeram e o corredor interminável deu lugar há uma sala escura. Charles sentiu uma presença opressora tomando conta de todo o ambiente. Um cheiro de sangue velho se espalhou por todos os cantos, um aroma que Charles conhecia bem. Era o odor que tinha se impregnado em seu porão, após várias sessões de carnificina gratuita, em nome da imponente e irrevogável justiça. A cadeira onde os sacrificados costumavam ficar surgiu, dessa vez, ocupada por uma figura nova, um personagem diferente de todos os outros que Charles havia conhecido em sua vida. Tratava-se de um homem alto e forte. Tinha uma máscara de gás em seu rosto, que ocultava sua identidade, e usava um uniforme de sargento da polícia militar, empapado de sangue. Correntes tomavam completamente os seus braços, como uma segunda pele e em uma de suas mãos havia uma faca afiada, daquelas usadas por açougueiros. O desconhecido se levantou da cadeira, e olhou fixamente para Charles, encarando-o por trás de seus olhos vítreos.

   Se fitaram por alguns segundos. Charles tinha vontade de correr, desaparecer das vistas do homem, mas não conseguia. Estava tomado por um sentimento de arrependimento avassalador. Sentia que devia ser punido. Ajoelhou-se ao chão, abaixando sua cabeça, oferecendo seu pescoço desprotegido. O homem de máscara de gás se aproximou, parando há alguns centímetros de Charles. Ergueu seu braço o mais alto que podia, fazendo sua faca brilhar diante da pouca luz presente na sala. Antes de executar o ato final, disse, com uma voz abafada pela máscara, que a fazia soar desumana, incomum:
- Justiça.
 Acompanhada de tal palavra, veio um som de lâmina rasgando o ar, seguido de um ruído oco, de algo chocando-se contra o solo. Depois disso, nada mais se fez ouvir.
  

  
 

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