Escuridão. Coberta por
dezenas de pontos luminosos, brilhantes como pequenos grãos de açúcar. Véu
negro, rasgado por uma enorme nave espacial, a chamada Apollo II, uma revolução
no ramo das explorações intergalácticas, um veículo capaz de viajar grandes
distâncias em questão de segundos, em uma velocidade impressionante, próxima a
da luz. Coisa que Maicon só havia visto em filmes de ficção cientifica, e que
tinha se transformado na mais pura realidade, a sua por assim dizer. Maicon é
astronauta e encara a sua terceira viagem espacial.
Para se tornar apto a exercer uma carreira tão fascinante, Maicon
dedicou metade da sua vida em estudos nessa área. Conhece tudo acerca do
universo, pelo menos o que já foi catalogado e visto pelos olhos humanos. Mesmo
assim, não deixa de se surpreender ao olhar pela escotilha do Apollo II e
avistar as milhares de estrelas que cobrem o vazio negro e a imensidão do
espaço sideral. Pequenos pontos ofuscantes, espalhados por todas as direções,
que podem se tratar dos mais diversos corpos celestes. Meteoritos, planetas,
satélites, ou até mesmo estrelas enormes como o sol do amado planeta azul
chamado terra. Convites sugestivos para prolongar a viagem, que já duras longos
sete meses.
Não está em um simples passeio. Tem a missão de investigar a falta de
comunicação em uma das dezenas de estações espaciais espalhadas pela galáxia,
as chamadas Darwin I, incubidas de reunir informações dos planetas nos quais em
tempos remotos, foram capazes de abrigar seres vivos. Planam por suas órbitas,
utilizando-se de equipamentos de última geração que possibilitam um estudo a
distância, evitando-se assim os riscos de se aventurar em solo firme, em uma
atmosfera desconhecida, carregada de bactérias ainda mais perigosas dos que as
conhecidas na terra. Um projeto desenvolvido pelo governo americano, avaliado
em bilhões de dólares. Uma estação fora do jogo significava grande prejuízo aos
envolvidos. Uma verificação imediata seria de vital importância. Trabalho dado
a Maicon.
O piloto do Apollo iniciou o processo de aterrissagem da nave. Não
tentou contato com os integrantes da estação espacial e nem seria preciso.
Pareciam estar cientes da chegada dos visitantes, visto que o hangar de entrada
estava com o acesso liberado. Enquanto a aterrissagem se desenrolava, Maicon
observava concentradamente um enorme planeta alaranjado no horizonte, de
proporções assustadoras. Já tinha ouvido falar do mesmo por várias vezes.
Tinham lhe dito que havia sido recentemente descoberto e nomeado como Tanatos,
por sua aparência morta, por seu ecossistema formado quase que apenas por
desertos. Um lugar incapaz de abrigar vida, mas que no passado, segundo as
pesquisas da estação espacial, havia sido como o planeta terra, um enorme
berçário de raças.
Maicon não conseguia despregar os olhos do planeta Tanatos. Imaginava
que um dia a terra teria o mesmo fim trágico, devido à ignorância humana, sua
sede incontrolável por desenvolvimento, desprezando nessa busca desenfreada a
fragilidade da natureza. Tinham escolhido esse planeta para estudar a esperança
de se evitar um destino tão sombrio e nefasto. Planejavam descobrir a causa da
destruição de Tanatos, para mudar os rumos da terra e levá-la a um futuro
melhor, de prosperidade. Maicon duvidava que a história de uma sociedade falida
seria capaz de mudar a maneira de pensar de outra, mas mesmo assim, tentava se
manter otimista e esperançoso.
A Apollo II aterrissou no interior da estação espacial, que seguindo sua
programação de segurança, lacrou a entrada do hangar, para que o oxigênio
voltasse a circular no ambiente. Maicon deixou o interior da nave junto de dois
companheiros, observando atentamente o local em que se encontrava. Não havia
ninguém lhes esperando. A única coisa que se via eram os veículos de exploração,
usados para visitas ao planeta estudado, o que no caso era demasiadamente raro,
devido aos riscos altíssimos que tal operação comportava. Maicon observou que
um deles estava em falta, tendo em vista que normalmente havia três unidades
para cada estação espacial e diante de seus olhos estavam apenas dois. Um fato
curioso, que lhe deixou um tanto inquieto. Apesar de sua preocupação, Maicon
nada comentou com os seus colegas.
Adentraram no setor de pesquisa da nave. O
lugar estava completamente vazio, tomado por um silêncio opressivo, tão pesado
e presente que poderia até ser tocado. Não havia uma única alma viva, fato que
assustou Maicon, que sabia muito bem da rotina de uma estação espacial, sempre
movimentada por cientistas e especialistas na área biológica. Preocupado e
confuso, tentando imaginar onde estariam todas as pessoas, Maicon virou-se para
um de seus companheiros e disse:
- Não é comum uma estação
espacial ficar tão abandonada. Alguma coisa séria deve ter acontecido.
- Estou tentando imaginar para
onde esse pessoal foi. Não há muitos lugares para se esconder aqui. – Disse um
dos colegas de Maicon, um branquelo de cabelos longos e ondulados, que lhe dava
um ar de rockeiro.
- Será que decidiram visitar
Tanatos? Notei que um dos veículos de exploração não estava no hangar de
entrada. – Disse outro homem, moreno e forte, de feições duras, próprias de um
militar.
- Duvido que tenham feito essa
loucura. Seria arriscado se aventurar em um planeta desconhecido. A equipe
científica não permitiria. Os riscos de infecção são muito elevados em um
ambiente hostil. – Disse o “rockeiro”.
- Vamos nos separar. Cada um
vai para um canto. Quem encontrar algo entra em contato pelo walkie-talkie. –
Disse o moreno com banca de militar, afastando-se em seguida.
- Boa sorte. – Disse o homem
de cabelos longos, afastando-se também.
Maicon ficou completamente sozinho, mais uma
vez acompanhado do silêncio. Não se sentia incomodado pela solidão. Em verdade,
a tinha como uma parceira solidária, que lhe ajudava a pensar, reorganizar as
idéias, enxergar os fatos com clareza. Com a mente focada, surgiu a decisão de
investigar a seção científica da estação espacial. Uma área restrita da
espaçonave, proibida para meros astronautas como Maicon, até mesmo em situações
de emergência. Hora de ignorar as regras.
Adentrou no setor científico, que como o
resto do lugar, estava completamente abandonado, tomado por uma escuridão
sufocante. Maicon acendeu sua lanterna, inundando o ambiente com um facho de
luz potente, que revelou cada ponto antes obscurecido do local. Um maquinário
impressionante a aparentemente avançado se destacou diante de seus olhos. Já
havia ouvido falar de tal maravilha tecnológica. Tratava-se de um super
telescópio, capaz de visualizar corpos celestes com uma clareza sem igual, como
uma bactéria vista por um microscópio. Ideal para o estudo de terrenos
impossíveis de ser visitados, como o de Aidós.
Maicon se deixou levar pela curiosidade e
colocou-se em frente ao super telescópio. Encaixou seus olhos no orifício
indicado e se surpreendeu ao ver os desertos de Tanatos tão próximos. Uma areia
alaranjada tomava toda a extensão do planeta, impossibilitando a existência de
qualquer ser vivo. Apenas um interminável nada em tom de laranja. Rochas e
areia apenas.
Maicon deixou-se levar pelo laranja berrante
de Tanatos, tentando imaginar qual seria o objetivo de se estudar um planeta
desprovido de qualquer resquício de vida. Foi então que um ruído estrondoso lhe arrancou
de suas dúvidas de volta para a realidade. Apontou a lanterna na direção do
barulho, deparando-se com a figura arqueada de um homem, que berrou com
angústia, afetado pela luz brilhante que lhe cegavam os olhos. O desconhecido
saltou em direção à escuridão como um macaco selvagem, fugindo do campo de
visão de Maicon, que permaneceu imóvel, atônito pela cena que havia acabado de
se desenrolar.
Girou a lanterna para todos os lados,
tentando localizar o insano fugitivo. Antes que pudesse localizá-lo, algo lhe
agarrou pelas pernas, puxando-o com uma força desigual, desumana. Caiu de
barriga no chão, deixando sua lanterna escapar entre os dedos, ao mesmo tempo
em que deixava um grito misto de dor e medo escapar por entre os seus lábios. Virou-se
na direção do seu agressor e assustou-se com o que viu. O rosto de um homem se
destacava em meio ao facho de luz perdido da lanterna. Estava completamente
desfigurado, tomado por feridas infeccionadas, cobertas por um líquido branco,
que parecia se tratar de pus. Cheirava terrivelmente, espalhando no ambiente um
odor pestilento, de carne podre a beira da decomposição.
O pior de tudo eram os seus olhos. Estavam
negros, desprovidos de qualquer vestígio de humanidade. O homem parecia não ter
uma alma capaz de lhe prover sentimentos. Uma besta selvagem, tomada pela mais
pura irracionalidade. Respondia ao instinto mais básico dos seres vivos, o de
sobrevivência. Maicon era uma ameaça e teria de ser eliminado.
No entanto, Maicon não havia feito uma
viagem de longos sete meses para simplesmente perder a sua vida em um canto
esquecido do espaço. Tinha se esforçado muito para tornar-se um astronauta
respeitado e não deixaria sua reputação ser sepultada por um demente intergaláctico.
Reanimado por uma força fora do comum, Maicon se desvencilhou de seu
adversário, atirando-o para longe. Agarrou-se a uma cadeira de aço e a
utilizando como arma afundou-a na cabeça do homem com todas as suas forças,
derrubando-o no chão. Correu até sua lanterna e a segurou, respirando
aceleradamente, como um maratonista depois de uma prova quase interminável.
Mirou o facho de luz na direção em que o
homem de feições disformes havia caído. Ele já estava de pé, encarando Maicon
de uma maneira assassina, com uma ânsia por brutalidade em seus olhos negros e
sem expressão. Sua cabeça estava partida em dois e jorrava um sangue amarelado,
tomado por uma substância desconhecida, fétida. Maicon deu alguns passos
vacilantes para trás, observando um tentáculo sair do meio do crânio do homem,
tomado por um terror incontrolável, o qual nunca havia experimentado antes em
sua vida. O tentáculo estava tomado por globos oculares negros, e cada um deles
fitava Maicon atentamente, como um animal preparando-se para o ataque.
Maicon não esperou para ver o próximo ato da
aberração. Virou-se e correu como um louco, guiado pela luz inquieta de sua
lanterna, que pulava de um lado para o outro no ritmo de sua fuga desesperada. Escutava
com horror os passos da criatura ressoando no piso, ruídos que foram se
tornando cada vez mais presentes. Era como se a coisa que lhe perseguia estivesse
crescendo de tamanho, expandindo-se, tornando-se uma verdadeira monstruosidade
digna de um filme de terror dos mais assustadores.
Enquanto fugia, Maicon escutou um grito ao
longe, carregado de dor e desespero. Parecia ser de seu companheiro de viagem
James, o moreno cismado à oficial de alto escalão. Ignorou o fato e continuou a
correr, alcançando o hangar de entrada. A criatura tentou atravessar a abertura
de acesso, mas não conseguiu. Havia realmente crescido de tamanho,
transformando-se em um pedaço de carne gigante e podre, com milhares de olhos
negros esbugalhados em sua extensão corporal.
A imensa cabeça do monstro entalou no acesso
do hangar. A criatura berra alucinadamente, exibindo presas amareladas de
proporções desiguais. Maicon foi em direção a sua nave, disposto a fugir o mais
rápido possível da estação espacial. No entanto, logo mudou de idéia. Dezenas
de pessoas de aparência moribunda surgiram em seu caminho, de dentes
arreganhados, dispostos a dilacerar a carne de Maicon ao primeiro sinal de
movimento. Não havia alternativa. Estava condenado.
Não morreria ali, entregue à bestas sedentas
por sangue, mordido e dividido ao meio por presas podres e pustulentas. Terminaria
como herói e de maneira digna, junto a sua maior paixão. Unindo o restante de
suas energias, Maicon disparou em uma corrida alucinada, a última de sua
existência. Alcançou uma alavanca em um canto da sala, puxando-a com toda a sua
força. A entrada do hangar se abriu, dando espaço a pressão poderosa do vácuo
espacial. Todos os moribundos foram tragados pelo infinito do universo, se
espalhando por todas as direções, como folhas secas em uma ventania, inclusive
Maicon.
O vácuo espacial lhe lançou no meio da
escuridão infinita do universo. Não havia mais volta. Seu oxigênio estava
chegando ao fim, levando junto de si sua vitalidade e os sentidos, já
fragilizados pela proximidade ameaçadora da boa senhora morte. Olhou para o
vazio, disposto a encarar sua tragédia. Fixou seu olhar em um ponto brilhante
no céu. Era uma estrela, bela, luminosa, iluminada como a alvorada de um novo
dia. Fechou as pálpebras, com a imagem da estrela gravada em sua mente, como a
derradeira recordação de sua existência. Então, a escuridão enfim prevaleceu.
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