quinta-feira, 15 de novembro de 2012

O armário

  Correu como nunca havia corrido antes em toda a sua vida. Em seu encalço vinham os desprezíveis seres malcheirosos, de bocarras abertas, mostrando suas fileiras de dentes podres e decrépitos. Exibiam feições selvagens, uma fome avassaladora nos olhos, uma necessidade urgente de mastigar algo macio e suculento, um delicioso bife humano, cru mesmo, sem tempero. Criaturas que antes de se tornarem feras eram pessoas normais como quaisquer outras, donas de vidas pacatas e tediosas, com hábitos rotineiros, muito distantes dos que haviam desenvolvido após o declínio da sociedade e do que era conhecido antes como mundo.
 Tudo havia começado a desmoronar há dois dias, durante uma tarde quente de verão. Calvin estava ocupado consertando o carro de um de seus clientes. Estava coberto por graxa da cabeça aos pés e suava feito um porco, mesmo estando sem a camisa, com a barriga de fora e seus braços musculosos a mostra para quem se interessasse a ver. Ocultava-se em baixo do carro, tentando recolocar uma peça teimosa que se recusava a tornar-se parte do veículo, como que se tivesse vida própria e muita revolta em seus pedaços de aço.
  Trabalhava sempre muito concentrado. Nada era capaz de lhe tirar a atenção do trabalho, nem mesmo um acidente que ocorresse na frente de sua oficina. Sempre tinha sido bem distraído, aquele cara que só percebe um buraco no caminho quando já está praticamente em cima dele e quase sem chance de salvação. Mas nesse dia, algo de diferente aconteceu, fazendo-o perder interesse quase instantâneo na tarefa que realizava. Um grito agudo e terrivelmente apavorado penetrou em seus ouvidos, vindo de dentro de um mercado próximo. Parecia uma mulher sendo atacada impiedosamente por algum marginal covarde. Calvin saiu de debaixo do carro e colocou-se de pé, correndo em direção à origem do berro, com uma chave de fenda nas mãos e o coração acelerado no peito, sentindo-se tomado pela adrenalina.
 Entrou no mercado decidido a colocar fim na injustiça que parecia estar ocorrendo no recinto. O local estava vazio e estranhamente silencioso. Calvin caminhou por entre dezenas de estantes cheias de gêneros alimentícios, olhando cuidadosamente para todos os lados, começando a acreditar ter imaginado o grito. A solidão na qual se encontra lhe chama a atenção. São apenas duas da tarde, horário em que a rua e as redondezas costumam estar apinhadas de pessoas, seguindo apressadas em seus rumos, cheias de preocupações em mente. No entanto nada disso se vê. Ninguém surge do lado de fora do mercado e nenhum ruído se faz ouvir, para denunciar a presença de um único ser vivo que seja.
  De súbito, o barulho de algo sendo rasgado se faz ouvir. É algo bem semelhante a pano sendo partido, a diferença é que soa um pouco molhado, como que encharcado por algum líquido pastoso e grudento. Calvin segue a origem do som, imaginado diversas coisas em sua tempestuosa mente. Recorda-se do grito aflito ouvido de sua oficina, repleto de puro terror. Sem perceber, suas pernas começam a se mover velozmente, levando-o inconscientemente para o depósito do mercado, de onde os ruídos continuam surgindo, mais frequentes que há minutos atrás e carregados de certa violência, dando a impressão de que a mulher que antes havia gritado está sendo partida em duas. Calvin tentou afastar essa ideia da cabeça e conseguiu, pois algo muito pior inundou seus pensamentos, ficando eternamente gravado em seu subconsciente.
  O chão do depósito estava tomado por sangue, que escorria lentamente pelo piso e empoçava debaixo das botas de Calvin. Havia um homem ajoelhado diante de um cadáver que antes poderia ter sido uma mulher, mas que agora em nada lembrava uma pessoa. O corpo estava com face destruída por mordidas que não eram nada parecidas a de um animal e tinham o formato exato da arcada dentária de um ser humano, se é que a coisa ajoelhada diante da morta poderia ser chamada assim. O ventre do cadáver estava aberto, espalhando vísceras por todos os lados, impregnando o ar do ambiente com o cheiro acre de sangue coagulando.
  O homem ajoelhado levanta-se com certa dificuldade, esforçando-se para não perder o equilíbrio e cair no chão. Fica um momento olhando para o vazio, como que perdido, desprovido de inteligência, até que solta um gemido fraco e que soa um tanto sofrido, carregado de dor. Calvin dá dois passos para trás, sentindo gotas de suor gélidas escorrerem por seu rosto e controlando com um esforço tremendo sua bexiga, que ameaça afrouxar e liberar toda a urina estocada em seu corpo. Então, o homem vira-se para encará-lo e Calvin acaba cedendo a força da natureza, sendo abatido pelo terror, que o faz esguichar um jato quente de mijo na cueca e o obriga a gritar desesperado, diante da visão de uma face disforme lhe encarando, um rosto onde não se vê nariz, apenas um buraco enorme onde o mesmo deveria estar, de olhos brancos como a neve e fileiras de dentes manchados de sangue e repletos de fiapos pequenos de carne, de procedência nada agradável. 
  Diante de uma cena tão grotesca, Calvin soltou todo o ar de seus pulmões, em um grito aterrorizado e carregado de certa loucura. O homem de face esfrangalhada move-se lentamente em sua direção, estendendo os braços, ansioso por um abraço amigável, por uma chance de poder fincar seus dentes na carne macia de Calvin, que percebendo a aproximação da coisa vira-se e corre para fora do mercado, berrando pelo socorro de alguém que possa livrá-lo do pesadelo no qual acredita estar envolvido. Ganha as ruas de seu bairro, parando surpreso e atemorizado na calçada. Uma multidão de homens e mulheres de rostos pálidos aproxima-se, como um exercito saído das profundezas do inferno. A primeira da multidão é uma idosa, que se arrasta com dificuldade pelo chão, puxando junto de si os pedaços de seu estômago grosso, que pendem de maneira bizarra por um buraco avermelhado no centro de sua barriga. Calvin corre para longe da turba de mortos, berrando como um louco e sem o controle de suas próprias emoções, desejando mais do que tudo jogar-se de um penhasco bem alto e mergulhar na escuridão da morte, onde poderia descansar em paz.
  No fim das contas, conseguiu escapar da multidão de mortos. Tinha se escondido em um pequeno prédio comercial, mais precisamente, no segundo andar da construção. Fez um amigo no local, outro individuo que também estava perdido, ainda tentando assimilar a nova e terrível realidade do mundo, que tentava ser explicada por todos como o juízo final, o grande julgamento que levaria os justos ao céu e deixaria na terra para apodrecer todo e qualquer pecador.
  Passou dois dias de relativa tranquilidade no local, olhando a quase todo o momento nervosamente pela janela, fitando os mortos que tentavam adentrar no prédio pela entrada da frente, que estava obstruída por móveis pesados e pedaços de madeira batidos com prego, que impossibilitavam que a porta pudesse ser aberta tanto por fora como por dentro. Fez um esforço tremendo para fingir que estava bem, já capaz de lidar com a desgraça em que o mundo havia se transformado. Aproveitou sua reclusão forçada dentro do prédio para conhecer seu novo amigo, que se chamava Albert, contador de uma época em que tudo ainda era normal. Era um homem de falar pouco. Por causa da natureza evasiva do companheiro, as conversas costumavam durar meros minutos, os quais eram gastos em debates que tentavam compreender a origem do apocalipse regido pelos mortos, as vezes se desviando desse assunto para se perder em planejamentos para o futuro sombrio que lhes aguardava. Sabiam que não poderiam ficar no prédio por muito tempo. Contavam com poucas provisões e logo não teriam sequer um grão de comida para colocar na boca e calar o maldito estômago que protestava a quase todo momento, reclamando das refeições escassas e raras que recebia.
 Na metade do segundo dia, algo de muito errado aconteceu. Nem Calvin e tampouco Albert sabiam da existência de uma saída de incêndio na parte de trás do prédio. Não haviam nem se dado ao trabalho de explorar todos os cantos do lugar. Ficavam apenas no segundo andar, esperando o tempo passar e esperando a multidão de mortos diminuir, dando-lhes a oportunidade de escapar e buscar por outros locais que lhes oferecessem mais chances de sobrevivência. Sendo assim, acabaram não descobrindo que a saída de incêndio estava destrancada, tornando-se um acesso fácil para a multidão de canibais, que adentraram no prédio sem cerimônia, subindo as escadas vagarosamente, fazendo seus passos arrastados ecoarem por todos os corredores, despertando Calvin de um sono agitado e o arrastando para um muito pior, a realidade nua e crua que continua a lhe parecer um pesadelo, daqueles que temos quando nos deitamos de barriga cheia.
 Quando percebeu o que havia acontecido já era tarde demais. A multidão de cadáveres ambulantes, alguns com braços faltando, outros com a cara tão amassada que nem pareciam mais ter rostos, já tinham subido as escadas que levavam ao segundo andar e avançavam velozmente em direção ao escritório que Calvin e Albert usavam como abrigo. Não havia para onde fugir. Estavam cercados, tendo apenas a morte como opção. Poderiam escolher por se jogarem da janela e terem algumas costelas fraturadas ou por serem almoçados vivos, sentindo os pedaços de seus corpos serem arrancados à força e destroçados por dentes pútridos e tomados de pus. No entanto, uma terceira opção logo surgiu, chamando a atenção dos olhos atentos de Calvin. Era um apertado armário de vassouras, para o qual ele correu e se trancou junto de seu recente amigo.
  Ficaram dentro do pequeno armário pelas 10 horas seguintes, sendo lembrados a todo o momento de que deviam perder todas as esperanças logo e se entregarem para os canibais, que arranhavam a porta com as unhas e gemiam do lado de fora, irritados por terem a hora do almoço adiada por seus bifes com pernas, que teimosamente insistiam em lutar pela vida, mesmo sabendo que não conseguiriam resistir por muito tempo. Dentro do armário não havia alimentos nem sequer água, apenas produtos de limpeza e vassouras.
  Assim que se completaram 24 horas de confinamento no armário, Calvin foi acometido por uma necessidade quase que vital de beber pelo menos um copo de água ou mastigar qualquer coisa que recordasse um pedaço de comida. Viu uma barata passando e a agarrou com força pelos dedos, fazendo a barriga do bicho explodir e espirrar um caldo branco e fétido. Levou a coisa à boca, fazendo um esforço tremendo para ignorar o odor insuportável que partia das entranhas do inseto, esforçando-se para controlar as náuseas que lhe acometiam. Enfiou o bicho entre os dentes e o mastigou vigorosamente, sentindo um gosto amargo e asqueroso se espalhar por toda a extensão de sua língua. Não resistiu. Abriu a boca, e dela esguichou um jato de vômito que voou na perna de Albert, fazendo-o protestar em meio a palavrões e maldições. Calvin mal o ouviu. Apenas ajoelhou-se com as mãos na barriga, pedindo clemencia a qualquer coisa no universo que aceitasse ser chamada de Deus e que pudesse se apiedar de sua condição deplorável.
  Outras quinze horas se passaram. O armário estava fedendo a merda e urina, além de vômito, que já secava em alguns pontos, exalando um cheiro ainda pior do que as outras duas coisas juntas. Os monstros continuavam arranhando a porta do lado de fora, gemendo, praticamente ordenando que abrissem a porta do armário para que pudessem se banquetear dos dois homens que jaziam no meio de toda a porcaria espalhada pelo chão, quase que desmaiados, derrotados pela fome e sede. Albert estava pior do que Calvin. Em sua ânsia por diminuir a aridez de sua língua e a secura da boca, Albert havia virado um frasco de desinfetante, bebendo-o vigorosamente, como se fosse um refresco gelado e delicioso. Após engolir meio litro do produto, Albert desabou inconsciente no chão.
Cinco horas mais tarde, Calvin acorda de seu desmaio com a cabeça doendo e uma dor no estômago lacerante, provocada pela fome que parece ter resolvido se alimentar de suas vísceras. Senta-se no chão imundo, sentindo uma pontada de dor a cada batida na porta, a cada arrastar de pernas vindo do lado de fora. Os grunhidos das coisas que um dia foram humanas continuam ecoando nos corredores do prédio, anunciando que não pensam em ir embora tão cedo e dizendo que é melhor os dois covardes desistirem de sua resistência estúpida e saírem do armário para se entregarem ao destino ingrato que lhes aguarda.
 Calvin sente seu corpo fraco, bambo pela falta de nutrientes e alimentação adequada. Olha para o lado e vê seu amigo caído no chão de olhos fechados, respirando com dificuldade, lutando para sobreviver à intoxicação que já afeta parte de seu organismo, levando-o lentamente para a morte. Calvin vê o frasco de desinfetante pela metade e rapidamente deduz mentalmente o que aconteceu. Sabe que precisa aliviar o sofrimento de seu companheiro. Não deve deixa-lo sofrer.
  Ainda carrega consigo a chave de fenda, uma reminiscência de sua vida passada, antes do mundo ser envolvido pelo apocalipse inexplicável. Levanta a arma na altura da cabeça e desfere um golpe certeiro, que acerta o crânio de Albert, fazendo ressoar no armário o som de ossos se partindo junto de um ruído molhado, o do sangue espalhando-se pelo chão. Calvin golpeia mais uma vez, selando o fim trágico de Albert. Mais sangue respinga. Uma pequena gota cai no lábio de Calvin, que passa a língua pelo líquido vermelho lentamente, saboreando-o, sentindo um leve salgar na boca, que faz sua fome protestar como um leão irritado. É uma delícia a sensação de sentir o gosto de algo na língua, após tanto tempo de inanição. Ele quer mais. Muito mais.
 Apunhalado pela selvageria da fome, Calvin se debruça sobre o corpo de Albert e lhe morde o braço, arrancando um generoso pedaço que lhe lembra um bife mal passado. Mastiga com gosto o pedaço do seu falecido amigo, sentindo o sangue descer lentamente por sua garganta, limpando-a, livrando-lhe da secura de horas sem tomar nada, e purificando a sua alma. O gosto é realmente maravilhoso. É como churrasco, sem a carne estar assada é claro. Empolgado pelo alimento oferecido, Calvin arranca um pedaço da bochecha de Albert e o mastiga lentamente, sentindo o sabor que faz sua língua estremecer, dando-lhe água na boca e o fazendo exigir por mais. Muito mais.
  Entregue ao desejo monstruoso de seu estômago e levado por um instinto animal, Calvin mergulha com vontade seus dentes na barriga do companheiro, arrancado pedaços ainda maiores de carne. Engole sem cerimônia, como um cachorro desesperado, que não se preocupa em sentir o gosto do alimento, mas apenas em livrar-se da maldita fome. Estraçalha nervos na boca, engole porções generosas de articulações, morde músculos e tecidos violentamente, rasgando e triturando, como uma fera. Do lado de fora os mortos protestam em meio a grunhidos e gemidos. Eles também querem um pouco.










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