sábado, 27 de abril de 2013

Na cama com A Coisa


  Conheceu um rapaz diferente dos outros. Esse era o seu sonho e diga-se de passagem, o de muitas outras mulheres. Ao contrário do cafajeste que havia lhe traído com metade das que se diziam suas “amigas”, esse era um sujeito responsável, sério o bastante para querer um compromisso. Se conheceram em uma balada da faculdade e o romance de uma noite germinou e tornou-se algo especial. Gostava do jeito que Sebastião lhe tratava. Sabia ser atencioso e lhe escutava sempre, pronto para oferecer conselhos valiosos e cariciais em pontos estratégicos, que despertavam em Carla toda a sua malicia sexual mais faminta. Em outras palavras era um expert na cama.

  Não demoraram a marcarem um encontro em um motel e darem inicio a fase sexualmente ativa da relação. Todos os finais de semana, reservavam um quarto em um motel razoável do centro de Belo Horizonte e passavam a madrugada acordados, desfrutando das habilidades sexuais de cada um, em um jogo que se prolongava por horas a fio, sem cessar. Sebastião aprendeu a leva-la ao delírio de milhares de formas diferentes, surpreendendo-a a cada novo encontro. Em dado momento, Carla começou a sentir-se dependente do parceiro. Não servia apenas o sexo de final de semana. Precisava do vigor incansável de Sebastião, todos os dias. Era como estar viciada em uma droga pesada, extremamente sedenta pelos prazeres de seu uso.

  Nunca havia sido adepta do sexo anal. Havia experimentado uma vez, tendo saído bem dolorida da experiência, com dificuldades para se sentar durante quase uma semana inteira. Ao lado de Sebastião, tinha se encorajado a tentar de novo. Não sabia explicar a gama de sensações que lhe envolveram, após o ato com seu fantástico parceiro. Ao ser cavalgada, penetrada impiedosamente pelo insaciável parceiro, Carla havia sentido um prazer estonteante, impossível de ser descrito em palavras. Ao terminar, deitou-se suada na cama e após alguns breves minutos de descanso, pediu por mais, ainda mais fogosa do antes. Em uma única noite, transou tantas vezes que acabou perdendo a conta.

  Quando estava no trabalho, a mente viajava para longe, voltando para o quarto de hotel no centro de Belo Horizonte, que havia se tornado a sua segunda casa. Ansiava sempre por mais. Longe de Sebastião, seus pensamentos vagavam pela incoerência de um desejo que nunca morria. A rotina de seu cotidiano era tediosa, e Carla via-se contando as horas para um novo encontro. Sentia-se como que presa em um daqueles romances eróticos de banca de jornal, no qual esperava nunca chegar ao fim. Pena que nada é eterno. Em certa noite enluarada, recebeu uma mensagem de texto de seu parceiro, convidando-a para mais uma noite de sexo desenfreado, dessa vez, em novo endereço. Se encontrariam na casa de Sebastião. Foi animada para o destino, tentando imaginar que tipo de surpresas lhe estariam sendo reservadas.

  Sebastião morava em um bairro distante do centro, em uma região bastante inóspita, um conjunto de casas cuja maioria estava abandonada.  Era um casebre pequeno, não muito confortável. Estava imerso em sombras quando Carla chegou. Bateu na porta um tanto receosa, temendo ter errado de endereço. Tal temor desapareceu assim que viu Sebastião parado junto à porta, sorrindo-lhe de maneira maliciosa. Convidou-a para entrar, e antes que qualquer palavra pudesse ser trocada, já lhe tirava a roupa sem cerimônia, atirando-a na cama com tanta intensidade, que chegou a lhe machucar as costas. Tentou reagir diante da brutalidade do parceiro, mas seus braços foram imobilizados e as pernas abertas. Estava à mercê de Sebastião. Foi penetrada com tamanha violência, que ao invés de sentir prazer, berrou como se estivesse sendo espancada. Ninguém ouviu seus gritos desesperados. Estava em uma vizinhança fantasma, onde não havia uma única alma viva para lhe socorrer.

 Ao término do ato, Carla escorregou lentamente para a inconsciência. Antes da escuridão lhe envolver, ela ainda sentiu o contato das mãos do parceiro em sua pele. Era como algo viscoso lhe tocando, uma superfície amolecida, que a fazia pensar em esponja molhada apodrecida.  Olhou para o rosto de Sebastião e o que enxergou foi apenas um vulto verde, uma face grotesca, que dava a impressão de estar escorrendo, como cera derretida de uma vela a arder. O parceiro tinha olhos vermelhos cor de sangue. Acreditou estar delirando e fechou os olhos com força, perdendo-se no negrume do desmaio que lhe acometeu em seguida.

  Despertou no dia seguinte com os raios solares incidindo diretamente em seu rosto, fazendo os seus olhos arderem incomodamente. Estava jogada na cama como uma boneca maltrapilha, com as vestes rasgadas e manchadas de sangue; os cabelos desgrenhados, dando a ela um aspecto de foragida do hospício. Sua virilha doía terrivelmente, como se tivesse sido espancada com um pedaço de pau. Lembrou-se da noite anterior, da maneira como Sebastião havia lhe penetrado com selvageria, como se estivesse tendo relações sexuais com um pedaço de carne qualquer. Levantou-se sofridamente, percebendo o quanto o quarto onde estava era pequeno e escuro. Deixou o cômodo, procurando o parceiro desesperadamente, constatando que havia sido simplesmente abandonada. Desabou no sofá, em um choro incontido.

 Ficou entregue ao seu pranto doloroso por alguns minutos, até que percebeu uma ardência estranha em seu ventre. Era como se algo estivesse lhe chutando de dentro do corpo, forçando passagem para libertar-se do cárcere da carne. Olhou para sua barriga e assustou-se ao vê-la grande e redonda, como a de uma gestante de pelo menos quatro meses. Correu até o banheiro, olhando-se no espelho com assombro. Como algo assim poderia ter acontecido? Estava grávida? Nunca havia ouvido falar sobre um feto que se desenvolvesse com tanta velocidade. Enquanto pensamentos desordenados passavam por sua mente aterrorizada, uma pancada acometeu seu ventre com violência, fazendo-a trincar os dentes e soltar um grito atormentado. Algo estava tremendamente errado.

 A dor era tanta, que seu corpo desabou ao chão fragilizado, adotando uma posição fetal, como se assim o sofrimento pudesse ser controlado e amenizado. Berrou com todas as forças, clamando por uma ajuda que nunca viria. Sangue escorreu de sua vagina, ensopando o assoalho gasto do banheiro. A pele por sobre o ventre repuxou-se, como se algo estivesse tentando rompê-la. Uma dor lacerante acometeu-lhe o útero, privando-lhe de forças para gritar. Desmaiou, deixando-se envolver pela escuridão.

  Acordou no sofá da sala. A noite já seguia alta do lado de fora da casa. Sentou-se desnorteada, alisando distraidamente a barriga. Parecia ter crescido um pouco mais, apresentando-se estufada, como a de alguém que acaba de empanturrar-se com comida pesada. Passou os dedos pelos lábios e notou sangue seco. Levantou-se com dificuldade, caminhando como uma quase inválida até o banheiro, sentindo pontadas violentas acometerem o seu ventre. No caminho tropeçou em algo que estava caído no chão. Olhou para baixo e viu vísceras espalhadas, ossos e o crânio de um gato rachado ao meio, ainda com pelo grudado em sua superfície alva. Gritou aterrorizada e antes que pudesse fazer qualquer coisa, desmaiou novamente, perdendo-se em um vagalhão de inconsciência.

  Despertou durante a manhã no chão da sala. Onde haviam vísceras, nada mais restava. Alguns ossos viam-se espalhados pela casa, mas o crânio do gato havia desaparecido. Sentou-se no sofá, sendo tomada por imagens desconexas, de um sonho distante, que talvez houvesse surgido durante seu sono tumultuado após o desmaio. Viu-se caminhando por ruas escuras, seguindo o rastro que vagueava pelo ar na forma de um cheiro doce, irresistível às suas narinas. Parou diante da janela de uma casa as escuras, adentrando no recinto como um experiente gatuno. Havia um berço no quarto iluminado por luzes coloridas, na forma de personagens de desenhos infantis. Nele repousava um pequenino bebê. Agarrou-o pelo pescoço, impedindo-o de gritar, e arrancou-o do aconchego da casa dos pais, que só mais tarde foram perceber que o filho havia sido levado. Nesse ponto, o sonho de Carla se perdia em completa negritude.

 Esbugalhou os olhos, aterrorizada pela compreensão que tarde chegava. Correu pela casa, a procura de algo que não queria ver. Adentrou na cozinha e viu por sobre a mesa roupas pequenas, manchadas de sangue, vestes do tamanho das usadas por bebês. Um sapatinho jazia caído ao chão, com um pezinho cortado na altura do calcanhar preenchendo-o, uma lembrança desagradável da noite anterior. Carla gritou ensandecida, ajoelhando-se e vomitando um jato amarelado e fétido. Desfaleceu, mergulhando em um sono sem sonhos.

  Abriu os olhos, piscando diante dos raios alaranjados da tarde que morria. Tentou se levantar, mas não conseguiu nem mesmo se mexer. O ventre despontava enorme, tensionado a ponto de explodir. Uma dor lacerante lhe envolveu de imediato, arrancando-lhe berros de verdadeiro sofrimento. Cuspiu uma golfada de sangue, que foi se perder no metal branco da geladeira, escorrendo até o assoalho da cozinha lentamente. Um ruído de carne sendo subitamente rasgada irrompeu pelo cômodo, seguido de um grito estridente, que ressoou por cada parede da vizinhança fantasma. Sua barriga abriu-se ao meio e dela saiu uma criatura de aproximadamente sessenta centímetros de altura, de olhos vermelho escarlate e pele esverdeada. A coisa arrastou-se por cima de Carla, aproximando-se de seu rosto, fitando-a com curiosidade. Lambeu sua face contraída pelas dores dos minutos finais de vida, e lhe mordeu a bochecha, arrancando um pedaço generoso de carne. Carla não mais gritou. O banquete estava servido.


quinta-feira, 25 de abril de 2013

Vórtice Negro


  Precisava relaxar. Vinha trabalhando exaustivamente há muito tempo, enfurnado em seu escritório, que ficava em um prédio comercial no centro de New York, propriedade registrada em seu nome, fruto de seus sucessos na carreira. Empresário renomado e conhecido no país, conhecido por ser dono de uma grande franquia de telecomunicações, com filiais espalhadas por todo o globo. Um homem realizado financeiramente. Com tanto dinheiro em sua gorda conta bancária, a quem pense que esse sujeito afortunado não precise de mais nada para sentir-se feliz. Ledo engano. A verdade é que Robin vinha sendo perseguido por um intenso sentimento de frustração, decorrente de problemas familiares que não era capaz de resolver.

 A mulher o havia abandonado. Estava cansada de ser ignorada pelo marido, trocada pelo trabalho, obrigação da qual Robin não conseguia se desvencilhar. Tudo em sua rotina se resumia a apenas reuniões de horas em seu gabinete, analise de resultados da empresa, além de outra dezena de incumbências dignas de um homem de negócios. Restava-lhe pouco tempo para passar junto à esposa. A última vez que haviam tido uma noite prazerosa já fazia mais de oito meses, em uma viagem programada para a França. Depois disso, Robin havia se metido em projetos complexos, planos para aumentar os alcances de seu majestoso império. Para isso, havia praticamente deixado sua vida de lado. A esposa, sedenta por carinhos que o cônjuge não podia oferecer, tinha optado por aventuras amorosas as escuras, com rapazes bem mais novos e habilidosos o bastante para saciar suas necessidades sexuais mais latentes. E o veneno mais letal para uma relação nasceu a partir dai. Segredos.

  Robin havia descoberto a traição ao chegar um dia exausto do trabalho, tendo se deparado com a esposa jogada ao sofá junto de um rapaz com seus vinte e poucos anos e muita vitalidade para cumprir com os desejos explosivos da mulher. Não havia sido tomado pela raiva como se esperava em uma situação dessas. Simplesmente ignorou a cena e foi para a rua, em busca de um bar aberto no qual pudesse afogar suas magoas. Passou a noite toda se embebedando, tentando esquecer-se da imagem de sua esposa sendo afagada por mãos de um estranho qualquer, gemendo de prazer a cada caricia recebida. Voltou bêbado para o apartamento e encontrou a mulher vestida em um roupão de veludo, fumando um cigarro na sacada, relaxada pela noite animada que havia tido.

  Discutiram por horas, aos gritos e berros, que foram ouvidos por todos da vizinhança e que provocariam fofocas desprezíveis assim que a manhã despontasse no céu. Sua esposa vestiu-se de suas roupas mais caras, arrumou as malas e foi embora, sem dar qualquer satisfação. Semanas depois, mandou de seu apartamento no centro da cidade, imóvel que por acaso havia sido o presente que Robin lhe havia dado no quinto aniversário de casamento, uma carta assinada por seu advogado, pedindo divórcio e divisão de todos os bens. E ai começaram os encontros e audiências de julgamento, chateações que Robin queria poder dispensar. No final de tudo, parte de seus ganhos como empresário bem sucedido haviam lhe sido tirados, tomados por uma vadia que um dia havia amado com tanta intensidade, que havia chegado a acreditar que com ela passaria o resto da vida. Quanta ingenuidade!

  Restavam-lhe muitos bens. Ainda possuia seu prédio comercial no centro de New York, sua fonte de renda que ainda permitiria que permanecesse rico até o dia de sua morte. Contava com uma lancha esportiva, carros de luxo e uma casa na praia invejável, que havia comprado fazia dez anos, mas que só tinha utilizado em duas ocasiões, em datas distantes e sofríveis de serem relembradas, justamente em comemorações com a mulher, a vadia que havia lhe apunhalado covardemente pelas costas e destroçado com sua honra. De todas essas propriedades caras, havia uma pela qual tinha verdadeira afeição. Tratava-se de seu bimotor.

  Havia herdado o avião de seu pai, um artefato de dois séculos. O veículo havia ficado guardado por bastante tempo, acumulando poeira, enferrujando dentro de um galpão no meio de um deserto. Certo dia, Robin havia visitado o local, para verificar os bens que ali estavam guardados, isso um mês após ter perdido o pai, que tinha morrido em um catastrófico acidente de trânsito, tendo sido esmagado por um caminhão desgovernado em uma autoestrada solitária do país. Levado pela saudade de seu amado pai, Robin havia se decidido por reformar o bimotor, como uma maneira simbólica de preservar a memória de uma pessoa tão querida. Ainda não satisfeito, resolveu tirar habilitação como piloto e entregou-se a uma paixão que até então era desconhecida, a de desbravar os ares a bordo de seu barulhento bimotor.

  Pelo menos em um final de semana do mês, Robin se entregava a diversão de viajar em seu bimotor, voando pelos mares, apreciando a vasta beleza do oceano. Gostava de sobrevoar o atlântico, por conta das lendas que norteavam a região, boatos de desaparecimentos inexplicáveis, que datavam de séculos de histórias fantasiosas e nunca comprovadas. O famoso triangulo das bermudas. Robin nunca havia sido um homem que se deixasse influenciar por lendas, coisas como gnomos ou fadas convivendo harmoniosamente no mundo real. Não. Havia deixado esse tipo de mentira em sua infância, esquecida em livros e histórias que ouvia antes de adormecer. Havia crescido como um adulto cético. Comprou uma pequena ilha nas proximidades do triângulo e de lá realizava seus voos, impassível às lendas.

  E justamente em uma tarde de verão, com a cabeça pesada pelos problemas que lhe rondavam, Robin decidiu-se por fazer um breve passeio com seu bimotor, em uma tentativa de relaxar um pouco. Não tinha filhos com os quais desfrutar essa diversão. Em seu casamento, não havia se empenhado tanto para gerar um primogênito. Preferia investir em sua carreira profissional, pensava apenas em amontoar mais dinheiro, tornar-se cada vez mais rico e poderoso. Pena que alguns milhões de dólares não eram capazes de amenizar a tristeza que sentia e o vazio solitário que se apoderava cada vez mais intensamente de sua alma egoísta. Para inundar um pouco com alegria seu coração ferido, Robin voava. Encontrava nos céus e entre as nuvens a paz necessária para esquecer-se de suas aflições, sentir-se livre, alheio a tudo como um pássaro em liberdade.

  Alçou voo às três da tarde, após um almoço angustiado e sem sabor. Seguiu na direção das Bahamas, alcançando altitude considerável em questão de minutos, voando bem próximo de nuvens brancas como algodão. O tempo estava ótimo e uma tempestade era algo impossível em dadas condições, com a presença do sol a brilhar no horizonte para confirmar essa afirmação. O barulho ressoante do motor era absorvido com prazer pelos ouvidos de Robin, que o encarava como doce melodia, uma orquestra que só ele conseguia compreender e adorar. Uma memória viva de seu falecido pai, uma oportunidade de retornar a um período de seu passado em que havia sido feliz de fato.

  Consultou a bússola para verificar se estava seguindo pela direção certa, surpreendendo-se ao perceber que estava desregulada, apontando para várias direções ao mesmo tempo, em uma dança louca e incompreensível. Nuvens surgiram em seu campo de visão, envolvendo o bimotor em uma camada branca, de onde nada podia ser distinguido. Robin procurou manter a calma, mantendo o bico do avião inclinado, com a intenção de permanecer na mesma altitude. Uma leve oscilação fez sentir-se, fazendo o veículo balançar de maneira um tanto abrupta, como se estivesse preso em uma forte corrente de ar. Robin aferrou o volante com as mãos, procurando estabilizar o voo, sentindo os seus batimentos cardíacos acelerarem na medida em que o bimotor dava pulos descontrolados, como um cavalo que resolve se rebelar contra seu dono.

  O som do motor do avião tornou-se abafado, quase nulo. As nuvens uniram-se e formaram um túnel cilíndrico, que seguia infinitamente, por um horizonte cinzento. Robin manteve o avião em linha reta, penetrando nesse caminho inusitado, clamando por ver uma saída o quanto antes e visualizar adiante terra firme para pousar e terminar com o pesadelo que se desenrolava. Minutos se passaram, e a sensação de ausência de som tornou-se ainda mais presente, como se a sua audição estivesse se perdendo lentamente, fazendo-o lembrar-se dos filmes mudos de Chaplin, em que os personagens eram desprovidos da fala e comunicavam-se por meio de sinais. O ruído do motor desapareceu e o silêncio tomou conta do ambiente, pesado e sólido como metal.

  O túnel de nuvens se desfez e o bimotor rasgou os ares por céus imersos em escuridão e coalhados de estrelas de brilho vermelho e estranho. Uma lua amarelada surgiu no firmamento, de tamanho monstruoso, uma bola de proporção desproporcional e diferente da que Robin era acostumado a ver da sacada de seu apartamento de luxo, enquanto desfrutava do doce sabor de um vinho francês. Não parecia pertencer ao céu do mundo ao qual era habituado e sim de uma realidade anormal, originada da loucura de um homem aprisionado em uma cela de um hospício. A lua amarela parecia lhe sorrir por entre nuvens negras, convidando-lhe para a perdição da insanidade.

  Sobrevoou uma faixa de terra obscurecida por densa sombra de negritude. Avistou alguns pontos brilhantes no solo, distantes, impossíveis de serem distinguidos. Arriscou-se em um rasante hábil e veloz, acionando as rodas de aterrissagem do bimotor, aproximando-se assustadoramente do que parecia ser uma pista de pouso. O contato ocorreu de forma violenta, provocando um chocalhar incontrolável no avião, fazendo Robin bater a cabeça com intrépido no painel, que resultou em um corte fundo em sua testa, que espirrou sangue pelo vidro da frente e bloqueou a visão do que lhe espreitava do lado de fora. Desesperado, pisou com força no pedal do freio, fazendo o bimotor finalmente parar.

  Caiu tonto do veículo, sentindo o contato do solo com sua pele, agradecendo por ainda estar vivo e a salvo. Tirou sua camisa e a amarrou na testa, que ajudou a estancar o sangue que escorria sem cessar, absorvendo-o rapidamente. Levantou-se desorientado, caminhando com certa dificuldade, fitando o céu de estrelas vermelhas com expressão abobada na face, como que imerso em algum sonho nas profundezas de seu subconsciente. Não escutava sua respiração ofegante, nem suas passadas no concreto da pista. O som estava sufocado por uma atmosfera estranha, não identificável, não pertencente à realidade morna de onde havia vindo.

  De súbito, o ar ficou pesado, tão denso que poderia até ser tocado. Tremores fizeram ser sentidos pelas solas de seus pés, originários talvez de um terremoto de escala não ameaçadora ou da aproximação de algo grande o bastante para engolir a própria existência. A escuridão já presente tornou-se ainda mais palpável, espalhando sombras negras por todos os cantos. Robin sentiu-se quase cego, andando a esmo, tentando localizar um ponto onde pudesse apoiar o corpo fragilizado. O tremor aumentou de proporção, acompanhado de um zumbido terrível, que adentrou em sua cabeça como forja incandescente, provocando dores avassaladoras em seu crânio, como se algo estivesse rachando-o ao meio.

  Olhou para a direção do ruído, avistando uma nuvem de criaturas negras e desprovidas de formas que pudessem ser detalhadas. Eram massas escuras sem rosto e que emitiam o zumbido repugnante sem cessar, com variações de intensidade, como se assim se comunicassem e articulassem um plano maldoso contra o pobre homem, que manchado de sangue e em pranto desesperado, tentava escapar do que parecia ser inevitável. Para seu azar, havia uma pedra no meio do caminho e seu pé topou justamente com ela, fazendo-o desabar como um boneco desarticulado ao chão. Arrastou-se dolorosamente no solo, berrando sem conseguir escutar a própria voz, sufocado pelo ruído infernal das aberrações, que em questão de segundos estavam em seus calcanhares, devorando-o com milhares de dentes que pareciam serras afiadas, triturando seus ossos como se fossem palitos frágeis de madeira. Sentiu uma dor lacerante tomar-lhe os sentidos, tirar-lhe a capacidade de raciocinar e lhe lançar em um mar de sofrimento carnal que nunca um dia imaginou que fosse sentir. No final viu-se mergulhado em trevas, rumando para algum destino desconhecido. Agora planava por ares de um mundo perdido em alguma dimensão de horror, livre como um pássaro negro, que traz consigo mau agouro para onde quer que vá.