domingo, 27 de maio de 2012

Um convite desagradável


     O sol em um tom alaranjado anuncia a proximidade do fim de mais um dia. Carlos sai de sua casa sempre no mesmo horário, bem disposto, animado para uma revigorante caminhada. Desde que ficou sabendo do risco eminente de um ataque cardíaco, sua vida mudou drasticamente, da noite para o dia. Passou a praticar exercícios físicos mesmo que imensamente contrariado. Adorava um churrasco junto dos familiares nos fins de semana, e ficar sem essa diversão seria um verdadeiro tormento, mas já havia feito a promessa de que suportaria. Não poderia deixar seus filhos órfãos tão cedo. Tinha que cuidar de seu corpo por eles. Pelas pessoas que mais amava.

  Manter o ritmo de uma corrida era algo penoso para Carlos. O cansaço chegava rápido demais, tornando suas pernas pesadas como troncos de árvores. Após um mês de sacrifício, seu corpo já havia se acostumado, conseguindo se adequar ao tipo de exercício que praticava todas as tardes, que era uma caminhada acelerada acompanhada de uma corrida de leve, apenas para complementar a queima de calorias. Apesar de detestar ter de suar a camisa para manter a saúde, Carlos estava feliz pelos resultados alcançados. Havia perdido alguns quilos, que ausentes por pouco tempo, tinham inferido positivamente nos exames de rotina. Estava mais distante da morte, alguns passos, e planejava afastar-se ainda mais. 

  Sexta-feira, um dia em que Carlos costumava fazer um farto churrasco em sua casa, beber algumas cervejas geladas e participar de um divertido jogo de cartas com seus amigos do peito. Um passado memorável. Suas farras haviam terminado. Agora Carlos era um atleta, lutando contra a gordura, que há pouco tempo atrás, consumia seu coração como uma praga esfomeada, levando-o para o precipício sem volta da morte. Havia mesmo mudado. Sentia-se um tanto entristecido por ter deixado para trás seus adorados costumes, mas sabia que era por uma boa causa. Tinha uma família para sustentar, e não podia deixá-los sozinhos no mundo. Suportaria tranquilamente uma sexta tediosa somente por eles. Uma data que não seria tão penosa assim, não dessa vez. Carlos saborearia algumas emoções em doses recheadas de pura adrenalina. Emoções fortes até demais, a ponto de matar. 

   Havia uma avenida no trajeto que percorria em sua corrida. Um trecho não muito agradável de atravessar. Carlos já tinha visto muitas pessoas falecerem precocemente no local, de modo que carregava consigo um temor fundado, algo que não conseguia controlar. Mesmo assim, arriscava-se em enfrentar a avenida, pois justamente do outro lado, ficava um belo parque arborizado, onde praticava a grande maioria de suas atividades, animando-se até a malhar um pouco seu corpo gordo nas barras de aço. Não deixaria de ir até o agradável parque por causa de um risco irrisório. Atropelamentos aconteciam todos os dias ali, mas isso não queria dizer que pudesse ocorrer com ele também. Sua sorte o havia protegido durante muito tempo, e não iria abandoná-lo do nada. Foi com esse pensamento, que Carlos iniciou sua travessia na avenida. Então, simplesmente aconteceu. 

  Estava no meio da avenida, quando um guincho de um freio desgastado se fez ouvir. Uma carreta pesada tombou, capotando desgovernadamente por repetidas vezes, em alta velocidade, espalhando pedaços de metal por todas as direções. Carlos viu aquele monte de ferro retorcido indo em sua direção e sentiu seu corpo congelar. Não sabia o que fazer. Estava diante da morte, sem qualquer tipo de reação ou atitude para tomar. Apenas esperou, fechou os olhos, tentando imaginar como seria o outro lado, se no paraíso poderia fazer churrascos a vontade, isso se fosse mesmo para onde os bons e justos iam. Então, a imensa carreta, ou o que sobrou dela, passou bem ao seu lado, com intrépido, ruidosamente, fazendo seus ouvidos doerem no mais profundo. Abriu os olhos e viu-se são e salvo. Estava vivo, e com uma boa história para contar. 

   A única perda foi a do motorista, o homem que dirigia a carreta, que, diga-se de passagem, mereceu o destino, pois estava completamente embriagado. Carlos prestou socorro, chamando uma ambulância até o local, e logo partiu disposto a fazer seus exercícios diários. Havia quase morrido, mais isso não o tinha deixado nem um pouco amedrontado. Tinha que tratar de sua saúde, ou caso contrário, iria ter o mesmo destino do carreteiro, só que de uma maneira diferente. O relógio corria apressadamente, deixando-o sem alternativas. Não tinha tempo a perder. Um dia mal aproveitado e os riscos de um ataque cardíaco aumentavam consideravelmente. 

   Enfim, chegou ao parque. Iniciou sua caminha pelas trilhas de terra, apreciando a natureza e toda a sua estonteante beleza. Verdade que as únicas coisas que vinham em sua cabeça eram imagens tentadoras, como de carnes assando na grelha, uma cerveja tão gelada, que chegava a doer à cabeça, além de outros deliciosos pratos repletos da mais pura gordura. Seria um sonho se pudesse degustá-los novamente. Infelizmente tinha de correr pela vida. Afastou tais delícias de sua mente e apressou o passo. Com sorte, chegaria a tempo de acompanhar um jogo de futebol na televisão. Das suas diversões, essa era a única que tinha lhe restado. 

  Mais uma vez, o destino resolveu brincar com seus nervos. Carlos corria tranquilamente pela trilha de terra batida, quando sem perceber, pisou em falso em um trecho enlameado, completamente escorregadio. Caiu pesadamente no chão, despencando por um morro tortuoso, uma pequena colina que circundava todo o parque. Não tinha como reagir. Dava cambalhotas descontroladas em meio à relva, incapaz de diminuir a velocidade, de parar a descida horizontal, que acabaria lhe levando a morte. Bem próximo já estava o muro de concreto que cercava o local. Bater com a cabeça em algo tão duro seria como assinar um atestado de óbito. 

  Então, a sorte mais uma vez lhe salvou. Podemos chamar também de reação instintiva ao perigo. Acontece com todo mundo, necessariamente quando estamos em uma situação em que corremos sérios riscos de deixar a terra dos vivos. O fato é que Carlos agarrou-se em uma raiz fortemente presa ao solo, a responsável por refrear sua queda quase inevitável. A raiz se soltou, mas o tempo em que agüentou o peso de Carlos, (que não era nada leve só para constar) foi crucial. Parou bem em frente ao muro, respirando aliviado. Levantou-se, observando o quanto suas roupas estavam sujas, e a quantidade de sangue que escorria pelas escoriações que havia sofrido em seu infeliz incidente. Havia sobrevivido mais uma vez. 

   Fez o caminho de volta para casa com dificuldade. Seu corpo ardia terrivelmente. Sentia-se como um lutador de vale tudo, depois de ter tomado uma surra das boas de seu adversário. Apesar de tudo, estava feliz. Tinha sobrevivido por duas vezes no mesmo dia, em um intervalo de uma hora. Havia algum ser bondoso ao seu lado, lhe protegendo com certeza. Um sinal de que ainda teriam de suportá-lo por muito mais tempo. Como diz um velho provérbio, “vaso ruim não quebra”. Ainda bem, pensou Carlos, sentindo-se em um filme exagerado de ação, em que o personagem passa por poucas e boas e ainda sai inteiro para contar sobre suas desventuras. 

   Vale lembrar que o dia ainda não havia terminado. Restavam horas para isso acontecer, e bem se sabe que em questão de minutos, muita coisa desagradável pode acontecer. Lá estava Carlos, sorrindo para todos, sentindo-se um bravo guerreiro depois de uma sangrenta batalha, saldando sua sobrevivência com imensa felicidade. Inesperadamente, um estouro se fez ouvir, bastante próximo, carregado de um cheiro de pólvora venenoso, que se insinuava como um convite irrecusável para um encontro sem volta com a benevolente senhora morte. Carlos olhou na direção do projétil, tendo tempo para pular para trás de uma árvore. O tiro acertou-lhe o ventre, fazendo-o sangrar desesperadamente, como um saco de leite furado. Doía, mas de leve, sem torturá-lo. Carlos fechou os olhos, e esperou pelo momento em que diria adeus a tudo. Tinha sobrevivido por vezes demais. Dessa vez, nada poderia lhe salvar. Quem sabe, a sorte. Quem sabe. 

   Existem muitas pessoas boas nesse mundo. Uma delas estava bem próxima do incidente, observando atentamente a tudo. Chamou por uma ambulância, a qual chegou ao local rapidamente. Carlos foi socorrido e levado com vida para o hospital, onde conseguiu se recuperar. Pela terceira vez em um mesmo dia, sobreviveu. Poderia escrever um relato emocionante, dizendo o quanto Deus lhe amava. Já pensava em exigir uma canonização, afinal devia ser um santo depois de operar tantos milagres. O homem que driblou a morte. Um dos poucos capazes de enganar esse ser astuto, malandro, conhecedor de truques para ceifar com a existência de muitos. Carlos tinha sido superior a morte. 

   Alguns dias no hospital lhe deixaram completamente recuperado, pronto pra outra. Recebeu alta, e a admiração de todos os que ficaram sabendo de sua história. Não era fácil sobreviver depois de levar um tiro em uma parte tão frágil do corpo. Ficariam ainda mais assombrados se soubessem das suas outras duas façanhas. Essas Carlos guardaria consigo. Ninguém iria acreditar mesmo. Uma vantagem que deixaria para contar nas mesas de bar. Voltaria a beber, comer como um louco e a jogar carteado com os amigos. Não se privaria de tais diversões. Não mais. Poderia até continuar com os exercícios, mas o prazer tinha de vir em primeiro plano. Já havia encarado a morte por vezes demais e jurava ter entendido a lição deixada por tal experiência. Tinha de aproveitar a vida, ao máximo. 

   Com uma nova filosofia de vida, Carlos encaminhou-se até a saída do hospital, ansioso para voltar a sua rotina deliciosa de antigamente. Estava tão distraído e feliz, que não prestou atenção em uma inofensiva poça de água em seu trajeto, pequena, mas muito escorregadia. Seu pé firmou-se em sua composição líquida, perdendo o equilíbrio imediatamente. Não tinham lhe avisado sobre o quanto o piso era liso, como deslizava com facilidade. Carlos caiu como uma fruta podre. Um tombo normal. Com certeza machucaria o braço, quem sabe a perna. No entanto, havia uma quina no caminho. Sua nuca foi de encontro a ela. O ponto atingido rasgou-se com o baque, jorrando uma quantidade de sangue assustadora. Traumatismo craniano e morte cerebral na mesma hora. O homem que driblou a morte jazia sem vida no chão, sem o mesmo sorriso de antes. Que ironia. 

    Alguns correram em sua direção, na esperança de tentar prestar um último socorro. Não havia mais jeito. Carlos tinha falecido. Todos os que ali estavam lamentaram sua partida, inclusive sua família, filhos e mulher, que entraram em desespero assim que ficaram sabendo do terrível acidente. Coisas da vida. Enquanto todos cercavam seu cadáver imóvel no chão, um vulto se esgueirava até ele, tirando-lhe o seu sopro de vida, um presente dado por Deus aos seres viventes no início da existência. A sombra observou o desalento das pessoas que ali estavam e sorriu. O homem já ia tarde até demais. Havia conseguido escapar de suas armadilhas, mas não por muito tempo. Ninguém escapa de suas cruéis garras. Como costumam dizer, a única coisa certa nessa vida é a morte. Disso, podem ter certeza.


domingo, 20 de maio de 2012

Sangue

 
   Todas as noites mantenho-me no mesmo lugar, no alto de um prédio colossal, no centro da cidade de Belo Horizonte, apenas observando o movimento, admirando a lua, bela, um astro consagrado aos apaixonados, ou aos amaldiçoados. Faço parte desse segundo grupo. Não posso taxar minha sina apenas como uma maldição. Me concedeu alguns séculos prazerosos de vida. Vida também não é uma palavra muita correta para indivíduos que se encontram na minha situação. Em realidade, muitos me classificam como um morto vivo, amante da escuridão, ser das trevas, um demônio sanguinário. Talvez eu seja mesmo. Não me importo de ser chamado de nenhuma dessas coisas. Acabei me acostumando. Faz tempo desde que deixei ser humano, de maneira que nem ao mesmo me recordo de como era ser alguém normal. 

  Foi ainda no século 18, durante uma expedição francesa em terras brasileiras. Sou europeu. Fui parar nessas terras por um acaso do destino. Havia vindo apenas por curiosidade, disposto a conhecer a fauna rica desse lugar. Era um biólogo renomado no meu país. Respeitado por todos. Tinha uma família linda, uma bela mulher ao meu lado. Ela se chamava Rita. Tenho saudades dela. Nosso vínculo afetivo foi cruelmente destruído. Em nosso navio, havia um homem um tanto estranho. Ficava apenas no interior da embarcação. Dizia não ter um estômago muito preparado para encarar o balançar incessante das águas do mar. Pelo que me recordo o bendito não se arriscou a tomar sequer um banho de sol no convés. Tinha seus motivos o maldito.  Devo acrescentar que agora enfrento o mesmo problema. Que falta sinto de uma caminhada relaxante durante o entardecer. Bons tempos. 

  Fui sua primeira vítima. Na última noite de viagem, resolvi ir até a proa observar o mar. Era algo que me deliciava. O movimento suave das ondas se quebrando contra a madeira do navio. Algo demasiadamente comum, mas que me fascinava. Sempre fui muito ligado a natureza, sendo um observador nato dessa maravilha de Deus. Passava horas nessa diversão, acompanhado de uma boa bebida, velha parceira. Apesar de não ser mais um humano, ainda conservo o mesmo gosto pelo álcool. Delicioso. Meu paladar continua apurado, devo confessar que até mais do que o normal. Seria uma boa explicação para entender o motivo pelo qual seres como eu, sentem tanto prazer ao saborearem alguns goles de sangue. Que líquido maravilho. É a única coisa capaz de saciar minha fome e sede ultimamente. 

    Estava eu, absorto em milhares de pensamentos, tragado pela ansiedade em desembarcar nas terras brasileiras, defrontar-me com toda a sua beleza natural, sua imensidão verde, que como sempre ouvia falar e confirmei pessoalmente, é vasta e bela. Não percebi a aproximação do homem que mudaria a minha vida para todo o sempre. Não tive nem chance de reagir. Quando notei sua presença, seu par de presas reluzentes e extremamente afiadas, já penetravam em meu pescoço, fazendo um jato de sangue espirrar, manchando por completo as minhas vestimentas. Foi bastante rápido. Quando dei por mim, já estava caído no chão, manchado de vermelho da cabeça aos pés, a ponto de desmaiar. Me recordo bem da sensação inédita que experimentava em meus últimos momentos como humano. Era como se cada pedaço de meu ser queimasse, como um carvão em brasa. Uma febre poderosa, a qual nunca havia tido o desprazer de experimentar. Então, vieram as trevas. Quando despertei, já não era mais o mesmo. 

  Acordei em minha cabine, um tanto desorientado, perdido. Ao meu lado, estava Rita, minha amada. Tinha uma expressão preocupada em sua face, apreensiva. Assim que percebeu meus olhos aberto, abriu um sorriso brilhante nos lábios, e começou a me beijar, desesperada. Senti cheiro de medo em seu corpo. Um odor incômodo, repulsivo. Um outro aroma também se misturava a esse primeiro, doce, extremamente suave. Despertou em mim um desejo incontrolável, uma vontade insana de agarrar minha mulher e lhe rasgar a carne, como um animal selvagem, indomável. Senti-me torturado por esse cheiro, pela proximidade a qual estava sendo submetido a ela, uma aproximação perigosa, fatal. Não resisti aos meus novos instintos. Agarrei Rita com violência pelo cabelo, deixando o seu pescoço exposto, pronto para ser penetrado. O perfurei com minhas presas recém adquiridas e suguei o máximo de sangue que fui capaz, levado por uma fome insaciável, um prazer demoníaco, assustador. Quando voltei a pensar racionalmente, já era tarde demais. Rita estava branca como cera, e sangrava descontroladamente. Um arrependimento gélido dominou o pouco de emoções que ainda me restavam. Apesar de triste, arrasado por dentro, sequer uma lágrima rolou de meus olhos. Naquele momento, percebi que não era mais um biólogo cheio de ambições e com uma família feliz ao seu lado. Havia me tornado um monstro, para toda a eternidade. 

  Depois daquilo, desapareci, me misturei à multidão. Nunca mais ouviram falar em mim. Tornei-me um cidadão brasileiro. Vivo agora em um apartamento no centro de Belo Horizonte, de frente para o belo parque municipal. Que lugar maravilhoso. Fico observando aquelas belas árvores, e sinto falta da vida que levava no passado. As coisas poderiam ter sido bem diferentes. Infelizmente, nada acontece da maneira que esperamos. No entanto, me considero feliz, apesar do pesadelo que vivo desde muito tempo. Eu poderia já estar morto, mas ao contrário disso, sigo respirando como qualquer outra criatura. Sou apenas privado de caminhar livremente enquanto o sol não se por. Não me incômodo com isso. A vida noturna sempre foi mais interessante, divertida, mesmo em meus tempos de humano. Além disso, é nesse horário que posso vê-la, desprotegida, pronta para ser surpreendida. Um alvo fácil. Não me atrevo a feri-la. Pelo menos, enquanto ainda conseguir manter meu controle. 

  Bela mulher. Mora do outro lado da rua, também em um apartamento. Elegante, assim com Rita era. Foi paixão a primeira vista. Dizem que vampiros não tem sentimentos. Discordo. Devo ser uma exceção. Sentimos emoções de uma maneira diferente, inaceitável para os outros, mas não somos apenas um pedaço de carne ambulante. O que nos dá prazer é o desespero na expressão de uma pessoa no momento em que lhe surpreendemos, na hora em que estamos prestes a lhe tirar a vida. É muito gratificante. É o mesmo que os caçadores sentem quando partem em suas aventuras, com a diferença de que não somos tão bem compreendidos como eles. 

  É jovem, pelo que posso perceber. Tem cara de menina. Aposto que ainda não deixou a adolescência. Apesar disso, ostenta uma expressão digna de mulher feita, um olhar poderoso, sedutor. Me deixa enlouquecido. É uma pena que meus desejos carnais tenham se apagado após minha transformação. Queria poder ainda sentir o tesão humano. Deitar-se com mulheres estonteantes era minha rotina no passado, mas agora, contento-me apenas com alguns bons pescoços. Queria tanto poder voltar a ser vivo. Quem sabe, viver novamente uma paixão. Trataria essa garota como uma verdadeira dama, com muito carinho. Não me atrevo a me aproximar demasiadamente. Tenho medo de machucá-la. Gosto de observá-la enquanto dorme, é a maior satisfação de minhas noites. Perder essa distração seria terrível. Um golpe duro em minha tediosa eternidade.

  Continuo no alto desse prédio, observando a garota dormir em seu quarto, pela vidraça da janela. Por morar em um andar elevado, creio que ela não se preocupe com sua segurança. Um tanto improvável que algum louco adentre em seu quarto pela janela. Seria para um vampiro? Não. No entanto, nada faço. Permaneço no mesmo lugar, imóvel como uma estátua, apenas lhe admirando. A idéia de transformá-la me passou pela cabeça por diversas vezes, mas logo trato de esquecê-la. Não seria a mesma coisa. Ela perderia o seu charme, e, sobretudo, sua vivacidade, a saúde que ostenta em seu corpo. Deixaria de ser humana, para se tornar uma criatura da escuridão, com a única pretensão de sobreviver a cada dia, alimentando-se de sangue. Que coisa horrenda. Não quero um destino tão vil para uma mulher tão especial. Pelo menos por enquanto. Enquanto puder manter meu controle, assim o farei. Não creio que conseguirei por muito tempo. Seria maravilhoso vê-la gritar com minha chegada, amedrontada ao notar minhas presas afiadas em seu pescoço, a impossibilidade de uma fuga. Imensamente prazeroso. No entanto, eu ainda me seguro...


sábado, 19 de maio de 2012

Terras Áridas


19 de Março de 2055

   Enfim, fui escolhido como o próximo sortudo com a importante missão de explorar o mundo exterior. Estamos vivendo já há uma década longe da luz do sol. Embaixo da terra, como os mortos. O mundo de antes, foi completamente remodelado. Com certeza, não é mais o mesmo, pelo menos pelo que ouço falar. Vida? Quem sabe ainda exista. Pelo que me contam, o Apocalipse ocorrido no ano de 2045 acabou com a mais remota possibilidade de haver seres vivos caminhando pela terra. Nós os seres humanos, antes cheios de si, crentes de possuírem o universo nas mãos, estamos fadados a viver para todo o sempre abaixo do solo, como vermes. Tudo por conta de nossa incontrolável ganância. Eu era apenas um garoto quando tudo aconteceu. A grande guerra. Uma violenta disputa nuclear, onde não houve vencedores. Por sorte, tinham pensando nas conseqüências dessa sangrenta batalha. Bunkers especiais foram construídos por toda a extensão do país, fortes o bastante para suportarem o desenrolar desse terrível confronto. Milhões de mortos. Sobreviventes? Algumas centenas, que assim como eu, se escondem nas trevas, mantendo a sanidade com as poucas lembranças que restam. Quem sabe ainda haja esperança, uma luz derradeira no fim do túnel...

 26 de Março de 2055

   O equipamento está preparado para minha jornada. Tenho certo receio. Faz seis meses desde que o último explorador retornou de seu passeio. Não voltou bem. Um tanto abalado posso dizer. Assustado. Creio que tenha visto algo um tanto perturbador. Acorda no meio da noite quase sempre gritando, berrando como um louco. Tem pesadelos recorrentes, os quais nunca têm coragem de contar. Diz ser besteira, apenas baboseira inventada de sua mente altamente imaginativa. Bom, pode ser. Isso me deixa um tanto amedrontado. Será que existe algo de perigoso no mundo exterior? O nosso maior inimigo creio, talvez seja o sol, o qual dizem estar dez vezes mais quente, devidas as mudanças climáticas significativas em nosso meio. Por sorte, a roupa protetora que irei usar nas semanas de investigação com certeza dará conta do recado. Evitará que eu tenha um câncer incurável de pele. Estou ansioso. Mal posso esperar para ver o mundo de cima.

4 de Abril de 2055

   A luz quase me cegou, assim que a enorme comporta do bunker foi aberta para minha passagem. Realmente, os raios solares parecem estar mais poderosos do que nunca foram. Sinto que conseguem quase que atravessar a pesada vestimenta de proteção que uso, ansiosos por perfurarem minha carne, queimá-la em questão de segundos. A paisagem não é muito animadora. Diria que é um tanto desolada. Areia para todos os lados, um imenso deserto. Não vejo um único arbusto, um mero remanescente de vegetação. Será difícil encontrar alimento em um lugar como esse. Tenho algumas boas provisões, que podem durar por semanas, e alguns litros de águas, retirados diretamente do solo freático, a única fonte em todo o planeta que não está contaminada por radiação. Me bastarão por certo tempo, o necessário para concluir meu trabalho. Não espero demorar-me demasiadamente. O mundo exterior não me agrada nem um pouco. Prefiro as profundezas isoladas do subsolo. 

9 de Abril de 2055

   Percorri alguns quilômetros, e devo dizer que estou completamente desanimado em relação a essa missão. Não encontrei sequer um único ser vivo durante esses quase intermináveis dias de exploração, nem mesmo um inseto. Até mesmo as baratas, consideradas no passado os seres mais resistentes do planeta, talvez os únicos capazes de sobreviver a um apocalipse nuclear, estão ausentes nesse cenário morto, vazio. Deserto. Apenas algumas poucas construções surgem no horizonte, restos da arquitetura do passado, lembranças de uma civilização extinta, de tempos distintos. Fico triste ao me deparar com uma imagem tão desanimadora. Não há mesmo esperança. Estamos marcados para todo o sempre, condenados a viver enclausurados no ventre da terra. 

15 de Abril de 2055

  Estou feliz. Minhas esperanças em um futuro de reconstrução ressuscitaram em meu peito. Encontrei no meio de todo esse imenso deserto, o qual nomeei de terras áridas com todo o máximo de carinho que consegui reunir, uma pequena flor, bem pequena, franzina, frágil e desprotegida. Está em uma pequena faixa de terra de coloração escura, a qual me parece ser bastante fértil, capaz talvez de dar origem a várias formas de vida vegetais. Recolhi essa pequena amostra de que há um Deus lá em cima ansioso por um desfecho feliz para a desgraça da história humana, e a guardei com afeição dentro de minha pesada vestimenta. Recolhi também uma amostra da terra. Será muito útil para os cientistas do bunker em que habito. Quem sabe, uma das soluções para o estado lastimável em que meu mundo se encontra. Minha viagem não será em vão. 

23 de Abril de 2055

  Nada de novo para contar. Minha jornada se aproxima de seu término. Não encontrei mais nada que pudesse me despertar a atenção. A única coisa que me cerca é a maldita poeira. Ainda bem que uso uma máscara, ou caso contrário, já estaria quase morto por uma violenta alergia. Minhas provisões estão quase no fim. O que me consola, é saber que estou bem próximo de minha morada. Logo estarei de volta, protegido no interior daquela enorme construção de aço inoxidável. Ainda penso nos motivos que levaram o último explorador a desenvolver aquele medo quase insano. Não encontrei nada de perturbador nas terras áridas. Não há vida neste lugar. Apenas solidão. Talvez essa seja a responsável por seus devaneios, seus sonhos angustiantes. Quem sabe. Não importa. A única coisa da qual quero saber, é de retornar são e salvo para meu doce e amado lar.
 
28 de Abril de 2055

   Ainda não sei como definir aquela coisa. Será que há mesmo definição para algo tão vil? Uma cria do inferno. Tenho muita sorte por ainda estar vivo. Tem alguém lá em cima que realmente gosta de mim. Maldita hora em que tive a brilhante idéia de investigar uma das dezenas de construções abandonadas. Adentrei no que no passado era uma delegacia de polícia, apenas por curiosidade. Queria me recordar mais vivamente de minha antiga vida, antes da grande guerra. Estava escuro. A lanterna que trago comigo, pouco iluminava, apenas o bastante para mostrar o caminho a ser tomado. Mobílias velhas se destacaram em meio às sombras, resquícios da obra humana. Nada de interessante. A única coisa que me chamava à atenção era um odor pestilento, que me trazia a cabeça a imagem nítida de restos mortais em decomposição. Um cheiro fortíssimo. Segui o seu rastro, controlando a minha ânsia de libertar de meu estômago o desjejum da tarde, que com esforço se mantinha em sua devida posição. Foi então, que escutei um movimento estranho em meio à escuridão. Um mover de membros silencioso, que produzia um som de rastejar irritante, e ao mesmo tempo assustador. Parecia a junção de várias patas em movimento. Ruído seguido de um sopro de uma respiração diferente de qualquer outra que já conheci. Poderia definir como esponjosa, que me dava à impressão de que a coisa que agora ocupava o mesmo espaço que o meu, tinha o pulmão tomado por alguma espécie de liquido viscoso, igual a catarro. Medo.

  Retrocedi alguns passos. Não tinha qualquer intenção de descobrir a aparência da coisa que no momento me espreitava. Antes que conseguisse começar a me movimentar, um guincho estridente se fez ouvir, agudo, capaz de explodir os tímpanos. Não era um ser vivo qualquer, disso tenho certeza. Uma forma de vida diferente de tudo que já caminhou sobre a terra. Uma criatura de origem desconhecida, furiosa, ansiosa por alimentar-se. Já teria experimentado o delicioso sabor da carne humana? Creio que não. Tenho certeza de que não, devido ao seu desespero, sua ânsia por me ter em meio as suas presas amareladas, afiadas como navalha, que saltaram da escuridão de repente, me pegando completamente desprevenido. Tentei me desvencilhar. Ótimo, salvei meu braço, mas perdi dois dedos de uma das mãos, que foram arrancados com a maior facilidade do mundo de meu corpo, como se fossem feitos de papel. Senti o que restou de minha mão tomada por algo grudento. Diante da luz de minha lanterna, tinha o aspecto repulsivo de catarro, diferindo apenas na coloração, que era amarelada. Aquilo queimou ao entrar em contato com minha pele, como ácido, me provocando uma dor angustiante, quase insuportável. Não deixei ser vencido pelas sensações desagradáveis que me açoitavam, e iniciei uma corrida desesperada, em meio aos corredores escuros da delegacia abandonada. A coisa, fosse o que fosse, me perseguia, ágil, fazendo ressoar sua milhares de pernas no chão de madeira do recinto, sons amplificados pelo eco produzido pelo lugar, o qual acreditava que seria o meu túmulo. Não sei como consegui, mas fugi da morte. Voltei para a proteção do sol, e me joguei de encontro à areia, banhado em suor, com o coração disparado, quase que arrancado do peito pela adrenalina poderosa que dominava meu corpo. 

  Estou vivo. Com a mão dilacerada, mais vivo. Não consegui ver a aparência de meu perseguidor. A única coisa da qual sei, é que não se trata de uma criatura normal, como as que existiam antes do mundo deixar de ser um lugar agradável. De onde veio? Não sei, e não tenho o menor interesse de descobrir. Algumas questões devem continuar insolúveis, para o próprio bem de muitos. Meu único desejo é o de voltar para meu abrigo, e nunca mais retornar as terras áridas. Creio que esse enorme deserto esconde muitos segredos, muitos deles, terríveis, capazes de enlouquecer o mais bravo dos homens. Uma parte de minha sanidade se foi. Nunca mais serei o mesmo. Não depois de confrontar a morte dessa maneira, na forma de uma besta assassina, sedenta por sangue. 

2 de Maio de 2055

  Parado diante da entrada do bunker por horas, com medo de anunciar minha chegada. Não serei aceito. Estou diferente. Algo em mim mudou. Não se trata de uma metáfora barata, mas sim da verdade plena. Meu corpo está se transformando. Minha pele parece estar mais escamosa, quebradiça, como que tomada por uma camada de muco seco. O contato com sua superfície é repulsivo. Uma dor lacerante toma minhas entranhas. Parece que algo cresce em meio as minhas vísceras, pronto para arrebentá-las, abrindo caminho até o lado de fora. Me faz pensar em um verme de proporções agigantadas, um verdadeiro monstro, alimentado pela minha carne, meus órgãos. Não irei durar muito. A morte me espera, ou talvez, algo novo. Uma transformação. Será que uma nova versão de meu ego está para desabrochar? Pensamento assustador, mas inevitável. Debato-me na areia das terras áridas, tomado por dores dignas das sentidas por uma mulher durante o parto. Creio que quando encontrarem meus escritos, já não farei mais parte desse mundo. Outro tomará para si meu corpo, como uma mera casca, preparada para propósitos maiores. Quais são? Tremo só de tentar imaginar. Melhor não pensar nisso. Melhor aguardar, até que o sofrimento não se faça mais sentir...