sábado, 30 de junho de 2012

Entidade

   Meu nome é Roberto. Sou de origem muito simples, um caipira que saiu do interior para tentar a sorte na cidade grande. Não fui bem sucedido, como a maioria. Terminei casado com uma garota que engravidei nos meus primeiros meses como cidadão belorizontino, sendo obrigado a aceitar a primeira proposta de emprego oferecida. Aceitei o cargo de caseiro em uma bela residência na região da pampulha. Uma mansão maravilhosa, algo que eu jamais terei em minha vida. É propriedade de um empresário de renome no país, dono de uma das empresas de autómoveis mais populares que se tem conhecimento. Apesar de sua riqueza, o infeliz me paga um salário minímo, que mau dá para sustentar meu amado filho. O mundo é injusto, mas não reclamo. Sou feliz apesar dos problemas. Não convivo com uma maldição, assim como o meu amável patrão.

   Meu patrão tem uma família com um histórico um tanto trágico. Tinha seis irmãos, dos quais apenas dois estão vivos. Os outros morreram de forma misteriosa. Não foram acometidos por doença, fatalidade, ou até mesmo por alguma ironia do destino, quase sempre zombador conosco, os pobres e frágeis mortais. Simplesmente faleceram, como se tivessem decidido por conta própria. Juro que não se suicidaram. Foram todos encontrados em seus leitos de morte da mesma maneira, com olhos esbugalhados, expressões de puro e inexplicável terror, como se tivessem tido um encontro em particular com o próprio diabo. Mortos de pavor. O que teria lhes assustado tanto? Não faço idéia, mas tenho certa desconfiança. A coisa que lhes tirou a vida parece habitar a velha mansão há muitos anos. Não gosta de visitantes indesejados. Como podem perceber, não costuma tratá-los com o devido carinho.

   Perderam a vida no mesmo dia. Estavam passando férias na mansão, com todo o conforto possível fornecido por meu patrão, um homem bondoso com os de seu sangue. Lembro-me bem da estadia curta daqueles malditos, que não me deixaram dormir por uma noite sequer enquanto aqui permaneceram. Faziam festas até as altas horas, sempre com o som ligado na maior altura, uma barulhada infernal, que seguia sem cessar até o dia amanhecer. Convidavam todo tipo de prostituta para essas confraternizações, mulheres vulgares, o tipo que só serve para dar uma noite de prazer, sendo descartada logo após o uso. Transformaram a propriedade de alto nível em um lugar deplorável, quase em um mótel de beira de estrada em tamanho família. Mesmo assim, o castigo que receberam foi um tanto pesado demais. Detestava aqueles sujeitos, mas nunca desejaria um fim tão trágico para qualquer um deles.

   Trabalho nesse lugar há cinco anos, e já vi muita coisa estranha acontecer por aqui. Tive muito medo no ínicio, mas acabei por me acostumar. O ser humano é capaz de se adaptar a qualquer situação, a perder a sensibilidade diante de atrocidades, fatos anormais. De vez em quando me deparo com cenas um tanto inesperadas, acontecimentos surreais, que em algumas épocas, foram as responsáveis por noites intensas, recheadas de pesadelos. Minha mulher mora comigo na pequena casa de caseiro, que fica apenas há alguns metros da mansão, e pode confirmar sem sombra de dúvidas tudo o que já vivenciei por aqui. Inclusive ela mesma, passou por poucas e boas nesse lugar. Deixou de ter fé inclusive, quando encontrou a sua imagem preferida de Santa Maria jorrando sangue descontroladamente, em jatos fortes, como se a pequena estatueta tivesse alguma artéria perfurada, um coração em seu interior capaz de bombear sangue. Minha amada esposa quase enlouqueceu. Me pediu para irmos embora, mas eu a detive. Não podemos ser livres. Temos a responsabilidade de manter um filho no mundo, e isso custa caro. Estamos atados por um erro do passado, presos nesse inferno, por tempo indeterminado.

   Os irmãos de meu patrão passaram por situações um tanto incomuns na primeira noite. Luzes inquietas, que se apagavam pela casa do nada, como se fossem donas de si, capazes de articular pensamentos, atitudes. Reclamaram por várias vezes do problema, cobrando de mim alguma solução, a qual como bem sabem, eu não poderia prover. Chamei eletricistas para conferirem o quadro de luz, mas nada encontraram. E foi assim durante todo o restante de noite. As luzes apagavam, acendiam, explodiam em milhares de fragmentos. Perturbavam minha paz, pois sempre que isso acontecia, eu tinha de fazer a reposição das lâmpadas. Tinha de adentrar no interior da mansão. Sinto calafrios quando entro naquele lugar. Sinto-me observado por uma presença opressora, pesada como chumbo, algum ser invisível, perigoso. Os avisos de sua presença surgiam por toda a residência, mas os irmãos de meu patrão preferiam ignorar. Estavam entregues aos efeitos avassaladores do alcóol. Cegos de sanidade. Era tarde demais. Não poderiam escapar ao que já havia sido traçado pela mãos hábeis da morte.

   As coisas foram piorando. Na terceira noite, janelas e portas batiam com estrondo, quase que a todo momento. Juravam ser obra do vento. Estranho que na região da pampulha, não costuma haver intensas ventanias. Os irmãos pareciam não estar cientes desse fato, ou preferiam pelo menos ignorá-lo. Claro, a diversão era mais importante do que preservar suas próprias vidas. Interromper a festa pelo simples fato de que o chafariz está jorrando sangue de maneira inexplicável? Nunca! Havia explicação para um fenômeno desse tipo. Alguém tinha passado mau e vomitado tanto, que na falta de algo a ser expulso do estomâgo, começou a gorfar sangue. O problema é que ninguém assumia a autoria de tal obra. Colocavam a culpa nas putas que frequentavam a casa durante a madrugada. Permaneciam céticos, enquanto a entidade ia ganhando espaço, adquirindo mais força, tornando-se fatal. Então, a data trágica chegou. Foi ai que aconteceu.

   Tinham terminado a bagunça da noite. Estavam todos dormindo profundamente. Eu me ocupava de dar uma geral no jardim, que não era capinado há bastante tempo. Estava absorto em tal tarefa, quando escutei vários gritos vindos do interior da mansão. Estavam carregados de dor e de um medo indomável, daquele que nos acomete quando nos vemos presos em um pesadelo que retarda nosso despertar. Fui até a porta da frente, disposto a verificar o que de fato ocorria. A pesada porta de mármore se fechou com estrondo, trancando-se por conta própria. Não desisti. Tentei entrar por uma das janelas, mas assim que toquei sua superfície, minhas mãos queimaram como se tivessem entrado em contato com brasa. Senti minha pele se descolando do corpo, como borracha derretida. Ardia muito, mas ignorei meu sofrimento, disposto a socorrer o quarteto de irmãos, que continuavam a berrar, como loucos desvariados. Agarrei-me a um pedaço de ferro, jogando-o contra uma das janelas. A barra parou no ar, e ficou flutuando, balançando de um lado para o outro, como se fosse movida por algum ser invisível. De súbito, voou em minha direção, acertando-me em cheio no meio da cabeça. Cai inconsciente.

   Quando me recuperei, não havia mais nada a ser feito. A pesada porta de mármore estava aberta, me convidando a adentrar na mansão. Entrei naquele maldito lugar, e logo fui tomado por um cheiro horrível que tomava conta de todo o ambiente. Parecia carne apodrecida. Segui o rastro deixado pelo odor, até que cheguei ao quarto onde antes dormiam os irmãos. Continuavam em suas camas. Estavam imóveis, duros como concreto, e exibiam uma careta de horror perturbadora, com a boca aberta de maneira desproporcional, em um ângulo impossível de ser imitado por lábios normais sem que os mesmos se rasgassem. Estavam com a pele tomada por uma cor negra, vista apenas em cadáveres em um estágio avançado de decomposição. Sangravam pelos olhos, em um choro de agonia, um pedido de clêmencia que parecia não ter sido atendido.

   Deixei o interior da mansão abalado. Minha vontade era pedir demissão no mesmo dia, abandonar meu emprego, fugir desse lugar amaldiçoado. Não posso. Ninguém quer me contratar. Já tentei procurar por trabalho em outros locais, mas fui veemente recusado. Me acham ignorante pelas minhas origens. Caipiria não tem espaço na cidade grande. Sou obrigado a permanecer como caseiro, tomando conta dessa terra macabra, desprovida da benção de Deus. Temo por minha família. Não sei do que a entidade que convive conosco é capaz. Não teremos para onde fugir quando ela resolver nos procurar. Estamos a mercê da coisa. Entregues as suas cruéis vontades, como cordeiros, aguardando apenas pelo derradeiro momento do abate.
  
  

 

 

 

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Estrelas



  Escuridão. Coberta por dezenas de pontos luminosos, brilhantes como pequenos grãos de açúcar. Véu negro, rasgado por uma enorme nave espacial, a chamada Apollo II, uma revolução no ramo das explorações intergalácticas, um veículo capaz de viajar grandes distâncias em questão de segundos, em uma velocidade impressionante, próxima a da luz. Coisa que Maicon só havia visto em filmes de ficção cientifica, e que tinha se transformado na mais pura realidade, a sua por assim dizer. Maicon é astronauta e encara a sua terceira viagem espacial.

   Para se tornar apto a exercer uma carreira tão fascinante, Maicon dedicou metade da sua vida em estudos nessa área. Conhece tudo acerca do universo, pelo menos o que já foi catalogado e visto pelos olhos humanos. Mesmo assim, não deixa de se surpreender ao olhar pela escotilha do Apollo II e avistar as milhares de estrelas que cobrem o vazio negro e a imensidão do espaço sideral. Pequenos pontos ofuscantes, espalhados por todas as direções, que podem se tratar dos mais diversos corpos celestes. Meteoritos, planetas, satélites, ou até mesmo estrelas enormes como o sol do amado planeta azul chamado terra. Convites sugestivos para prolongar a viagem, que já duras longos sete meses. 

   Não está em um simples passeio. Tem a missão de investigar a falta de comunicação em uma das dezenas de estações espaciais espalhadas pela galáxia, as chamadas Darwin I, incubidas de reunir informações dos planetas nos quais em tempos remotos, foram capazes de abrigar seres vivos. Planam por suas órbitas, utilizando-se de equipamentos de última geração que possibilitam um estudo a distância, evitando-se assim os riscos de se aventurar em solo firme, em uma atmosfera desconhecida, carregada de bactérias ainda mais perigosas dos que as conhecidas na terra. Um projeto desenvolvido pelo governo americano, avaliado em bilhões de dólares. Uma estação fora do jogo significava grande prejuízo aos envolvidos. Uma verificação imediata seria de vital importância. Trabalho dado a Maicon. 

  O piloto do Apollo iniciou o processo de aterrissagem da nave. Não tentou contato com os integrantes da estação espacial e nem seria preciso. Pareciam estar cientes da chegada dos visitantes, visto que o hangar de entrada estava com o acesso liberado. Enquanto a aterrissagem se desenrolava, Maicon observava concentradamente um enorme planeta alaranjado no horizonte, de proporções assustadoras. Já tinha ouvido falar do mesmo por várias vezes. Tinham lhe dito que havia sido recentemente descoberto e nomeado como Tanatos, por sua aparência morta, por seu ecossistema formado quase que apenas por desertos. Um lugar incapaz de abrigar vida, mas que no passado, segundo as pesquisas da estação espacial, havia sido como o planeta terra, um enorme berçário de raças. 

  Maicon não conseguia despregar os olhos do planeta Tanatos. Imaginava que um dia a terra teria o mesmo fim trágico, devido à ignorância humana, sua sede incontrolável por desenvolvimento, desprezando nessa busca desenfreada a fragilidade da natureza. Tinham escolhido esse planeta para estudar a esperança de se evitar um destino tão sombrio e nefasto. Planejavam descobrir a causa da destruição de Tanatos, para mudar os rumos da terra e levá-la a um futuro melhor, de prosperidade. Maicon duvidava que a história de uma sociedade falida seria capaz de mudar a maneira de pensar de outra, mas mesmo assim, tentava se manter otimista e esperançoso. 

   A Apollo II aterrissou no interior da estação espacial, que seguindo sua programação de segurança, lacrou a entrada do hangar, para que o oxigênio voltasse a circular no ambiente. Maicon deixou o interior da nave junto de dois companheiros, observando atentamente o local em que se encontrava. Não havia ninguém lhes esperando. A única coisa que se via eram os veículos de exploração, usados para visitas ao planeta estudado, o que no caso era demasiadamente raro, devido aos riscos altíssimos que tal operação comportava. Maicon observou que um deles estava em falta, tendo em vista que normalmente havia três unidades para cada estação espacial e diante de seus olhos estavam apenas dois. Um fato curioso, que lhe deixou um tanto inquieto. Apesar de sua preocupação, Maicon nada comentou com os seus colegas. 

  Adentraram no setor de pesquisa da nave. O lugar estava completamente vazio, tomado por um silêncio opressivo, tão pesado e presente que poderia até ser tocado. Não havia uma única alma viva, fato que assustou Maicon, que sabia muito bem da rotina de uma estação espacial, sempre movimentada por cientistas e especialistas na área biológica. Preocupado e confuso, tentando imaginar onde estariam todas as pessoas, Maicon virou-se para um de seus companheiros e disse:
- Não é comum uma estação espacial ficar tão abandonada. Alguma coisa séria deve ter acontecido.
- Estou tentando imaginar para onde esse pessoal foi. Não há muitos lugares para se esconder aqui. – Disse um dos colegas de Maicon, um branquelo de cabelos longos e ondulados, que lhe dava um ar de rockeiro. 
- Será que decidiram visitar Tanatos? Notei que um dos veículos de exploração não estava no hangar de entrada. – Disse outro homem, moreno e forte, de feições duras, próprias de um militar.
- Duvido que tenham feito essa loucura. Seria arriscado se aventurar em um planeta desconhecido. A equipe científica não permitiria. Os riscos de infecção são muito elevados em um ambiente hostil. – Disse o “rockeiro”.
- Vamos nos separar. Cada um vai para um canto. Quem encontrar algo entra em contato pelo walkie-talkie. – Disse o moreno com banca de militar, afastando-se em seguida.
- Boa sorte. – Disse o homem de cabelos longos, afastando-se também.

   Maicon ficou completamente sozinho, mais uma vez acompanhado do silêncio. Não se sentia incomodado pela solidão. Em verdade, a tinha como uma parceira solidária, que lhe ajudava a pensar, reorganizar as idéias, enxergar os fatos com clareza. Com a mente focada, surgiu a decisão de investigar a seção científica da estação espacial. Uma área restrita da espaçonave, proibida para meros astronautas como Maicon, até mesmo em situações de emergência. Hora de ignorar as regras.

  Adentrou no setor científico, que como o resto do lugar, estava completamente abandonado, tomado por uma escuridão sufocante. Maicon acendeu sua lanterna, inundando o ambiente com um facho de luz potente, que revelou cada ponto antes obscurecido do local. Um maquinário impressionante a aparentemente avançado se destacou diante de seus olhos. Já havia ouvido falar de tal maravilha tecnológica. Tratava-se de um super telescópio, capaz de visualizar corpos celestes com uma clareza sem igual, como uma bactéria vista por um microscópio. Ideal para o estudo de terrenos impossíveis de ser visitados, como o de Aidós.

   Maicon se deixou levar pela curiosidade e colocou-se em frente ao super telescópio. Encaixou seus olhos no orifício indicado e se surpreendeu ao ver os desertos de Tanatos tão próximos. Uma areia alaranjada tomava toda a extensão do planeta, impossibilitando a existência de qualquer ser vivo. Apenas um interminável nada em tom de laranja. Rochas e areia apenas.

  Maicon deixou-se levar pelo laranja berrante de Tanatos, tentando imaginar qual seria o objetivo de se estudar um planeta desprovido de qualquer resquício de vida.  Foi então que um ruído estrondoso lhe arrancou de suas dúvidas de volta para a realidade. Apontou a lanterna na direção do barulho, deparando-se com a figura arqueada de um homem, que berrou com angústia, afetado pela luz brilhante que lhe cegavam os olhos. O desconhecido saltou em direção à escuridão como um macaco selvagem, fugindo do campo de visão de Maicon, que permaneceu imóvel, atônito pela cena que havia acabado de se desenrolar.

   Girou a lanterna para todos os lados, tentando localizar o insano fugitivo. Antes que pudesse localizá-lo, algo lhe agarrou pelas pernas, puxando-o com uma força desigual, desumana. Caiu de barriga no chão, deixando sua lanterna escapar entre os dedos, ao mesmo tempo em que deixava um grito misto de dor e medo escapar por entre os seus lábios. Virou-se na direção do seu agressor e assustou-se com o que viu. O rosto de um homem se destacava em meio ao facho de luz perdido da lanterna. Estava completamente desfigurado, tomado por feridas infeccionadas, cobertas por um líquido branco, que parecia se tratar de pus. Cheirava terrivelmente, espalhando no ambiente um odor pestilento, de carne podre a beira da decomposição.

  O pior de tudo eram os seus olhos. Estavam negros, desprovidos de qualquer vestígio de humanidade. O homem parecia não ter uma alma capaz de lhe prover sentimentos. Uma besta selvagem, tomada pela mais pura irracionalidade. Respondia ao instinto mais básico dos seres vivos, o de sobrevivência. Maicon era uma ameaça e teria de ser eliminado.

   No entanto, Maicon não havia feito uma viagem de longos sete meses para simplesmente perder a sua vida em um canto esquecido do espaço. Tinha se esforçado muito para tornar-se um astronauta respeitado e não deixaria sua reputação ser sepultada por um demente intergaláctico. Reanimado por uma força fora do comum, Maicon se desvencilhou de seu adversário, atirando-o para longe. Agarrou-se a uma cadeira de aço e a utilizando como arma afundou-a na cabeça do homem com todas as suas forças, derrubando-o no chão. Correu até sua lanterna e a segurou, respirando aceleradamente, como um maratonista depois de uma prova quase interminável.

  Mirou o facho de luz na direção em que o homem de feições disformes havia caído. Ele já estava de pé, encarando Maicon de uma maneira assassina, com uma ânsia por brutalidade em seus olhos negros e sem expressão. Sua cabeça estava partida em dois e jorrava um sangue amarelado, tomado por uma substância desconhecida, fétida. Maicon deu alguns passos vacilantes para trás, observando um tentáculo sair do meio do crânio do homem, tomado por um terror incontrolável, o qual nunca havia experimentado antes em sua vida. O tentáculo estava tomado por globos oculares negros, e cada um deles fitava Maicon atentamente, como um animal preparando-se para o ataque.

  Maicon não esperou para ver o próximo ato da aberração. Virou-se e correu como um louco, guiado pela luz inquieta de sua lanterna, que pulava de um lado para o outro no ritmo de sua fuga desesperada. Escutava com horror os passos da criatura ressoando no piso, ruídos que foram se tornando cada vez mais presentes. Era como se a coisa que lhe perseguia estivesse crescendo de tamanho, expandindo-se, tornando-se uma verdadeira monstruosidade digna de um filme de terror dos mais assustadores.

   Enquanto fugia, Maicon escutou um grito ao longe, carregado de dor e desespero. Parecia ser de seu companheiro de viagem James, o moreno cismado à oficial de alto escalão. Ignorou o fato e continuou a correr, alcançando o hangar de entrada. A criatura tentou atravessar a abertura de acesso, mas não conseguiu. Havia realmente crescido de tamanho, transformando-se em um pedaço de carne gigante e podre, com milhares de olhos negros esbugalhados em sua extensão corporal.

   A imensa cabeça do monstro entalou no acesso do hangar. A criatura berra alucinadamente, exibindo presas amareladas de proporções desiguais. Maicon foi em direção a sua nave, disposto a fugir o mais rápido possível da estação espacial. No entanto, logo mudou de idéia. Dezenas de pessoas de aparência moribunda surgiram em seu caminho, de dentes arreganhados, dispostos a dilacerar a carne de Maicon ao primeiro sinal de movimento. Não havia alternativa. Estava condenado.

   Não morreria ali, entregue à bestas sedentas por sangue, mordido e dividido ao meio por presas podres e pustulentas. Terminaria como herói e de maneira digna, junto a sua maior paixão. Unindo o restante de suas energias, Maicon disparou em uma corrida alucinada, a última de sua existência. Alcançou uma alavanca em um canto da sala, puxando-a com toda a sua força. A entrada do hangar se abriu, dando espaço a pressão poderosa do vácuo espacial. Todos os moribundos foram tragados pelo infinito do universo, se espalhando por todas as direções, como folhas secas em uma ventania, inclusive Maicon.

   O vácuo espacial lhe lançou no meio da escuridão infinita do universo. Não havia mais volta. Seu oxigênio estava chegando ao fim, levando junto de si sua vitalidade e os sentidos, já fragilizados pela proximidade ameaçadora da boa senhora morte. Olhou para o vazio, disposto a encarar sua tragédia. Fixou seu olhar em um ponto brilhante no céu. Era uma estrela, bela, luminosa, iluminada como a alvorada de um novo dia. Fechou as pálpebras, com a imagem da estrela gravada em sua mente, como a derradeira recordação de sua existência. Então, a escuridão enfim prevaleceu.

 



  

sábado, 23 de junho de 2012

Carrasco

   Visão turva. Apenas imagens distorcidas, distante da realidade, sem forma definida. Sombras por todas as partes, lançadas como jatos de tintas descontrolados, manchando cada ponto diante de seus olhos. Enfim, a consciência se recobra. Charles força a vista. Sua cabeça dói angustiantemente, como se tivesse tomado um soco certeiro bem no meio da cara. Tem dificuldade para se manter de pé e se equilibrar tornar-se uma tarefa árdua. Sente-se doente. Um tanto perdido também. Não sabe exatamente aonde está. É um extenso corredor, escuro, sombrio e silencioso, de tal forma, que chega a assustar. Apenas isso. Um corredor, aparentemente, sem fim.

   Tenta se lembrar das coisas que havia feito antes de seu despertar inesperado. Lembranças disformes invadem sua mente como um estourar de uma garrafa de champanhe recentemente aberta, de leve, mas com certa agressividade. Uma cena forma-se diante de seus olhos. Um pequeno quarto em sua casa, fédido, apertado, ocupado apenas por uma cadeira de aço enferrujada. Em cima da mesma há uma grossa corrente, daquelas impossiveis de se quebrar. No chão uma pequena poça de sangue seco. Um pouco adiante no piso, um dente de algum desafortunado brilha diante das luzes fracas do cômodo, como que para alertar a todos de sua presença. Em uma pequena mesa ao lado da cadeira, há uma faca bem afiada, daquelas usadas pelos açougueiros. Está manchada de vermelho.

   Tal visão desaparece, e uma outra surge diante dos olhos assustados de Charles. Ele se vê em alguma época distante, vestido em seu uniforme tradicional de militar. É um polícial de respeito, um protetor dos fracos e oprimidos, dos homens de bem. Vive pela justiça, e tudo o que faz é em nome da mesma. Criminosos? Simplesmente os detesta. Se pudesse, faria uma limpa no mundo, acabando com todos eles, da maneira mais cruél que pudesse adotar. O motivo de tanta revolta? Em verdade, nenhum de grande relevância. Havia sido assaltado uma vez antes de seguir carreira como um oficial. Teve ódio pelo homem que lhe levou a carteira, e desde esse dia, resolveu que tinha de fazer algo pela humanidade. Um justiceiro às avessas. Justiça com as próprias mãos.

   Novamente o quarto apertado surge em sua mente. Dessa vez, na cadeira há um garoto de pele escura, repleto de ferimentos pelo corpo. Sua boca sangra, e um de seus dentes está no chão, reluzindo contra a luz fraca das lâmpadas. Charles está na sua frente, com uma faca em uma das mãos, uma expressão alucinada, própria de um desvariado. Havia visto o garoto roubando uma pobre senhora indefesa. Tinha sido tomado pelo mais puro ódio ao testemunhar o crime. Apreendeu o garoto, mas não o levou a uma instituição para recuperação de jovens. O destino era outro. O porão de sua casa. O local onde trataria de aplicar a devida lição ao deliquente juvenil, à sua própria maneira. Justiça.

   Julgamentos precipitados nos levam a cometer erros. Alguns de natureza gravíssima. Não que o garoto estivesse correto em roubar velhinhas indefesas. A vida tinha lhe ensinado a fazer isso, como uma forma de sobreviver ao caos do mundo, as desigualdades. Diante dos olhos de Charles, surgiu a modesta casa do garoto, um barraco pequeno de apenas dois cômodos, sendo um o quarto e o outro um banheiro, do tamanho de um ármario de vassouras. Havia uma cama no cenário, e nela uma mulher de aspecto desagradável. Estava adoentada, e muito próxima de sua morte. Doença quase fatal. Um câncer em estágio final. Não havia mais volta. Ao lado da cama estava o garoto aos prantos. Fazia milhares de promessas. Dizia que iria conseguir dinheiro, o necessário para pagar um tratamento decente para sua mãe, que já agonizava, sentindo a proximidade gélida da morte em seus calcanhares. Uma cena lastimável.

   Novamente o quarto onde Charles aplicava a justiça aos desregrados surgiu. O garoto jazia morto na cadeira, desfigurado pela faca de açougueiro. Em sua mão aberta, havia um pequeno retrato. Era de uma morena sorridente, de aparência simpática, abraçada a um garoto, o mesmo que naquele momento, tinha acabado de perder a sua vida em um porão imundo, na compania de ratos e de um louco que acreditava que estava livrando o mundo da perversidade. Charles viu o pequeno retrato. Sentiu um aperto no coração. Era como se um peso de dez toneladas houvesse se chocado contra seu orgão. Deixou algumas lágrimas de arrependimento rolarem por sua face. Em sua busca por justiça, um inocente, corrompido pelas adversidades da vida, tinha sido sacrificado. Charles estava arrependido. No entanto, já era tarde. Não havia mais como voltar atrás.

   As lembranças se desfizeram e o corredor interminável deu lugar há uma sala escura. Charles sentiu uma presença opressora tomando conta de todo o ambiente. Um cheiro de sangue velho se espalhou por todos os cantos, um aroma que Charles conhecia bem. Era o odor que tinha se impregnado em seu porão, após várias sessões de carnificina gratuita, em nome da imponente e irrevogável justiça. A cadeira onde os sacrificados costumavam ficar surgiu, dessa vez, ocupada por uma figura nova, um personagem diferente de todos os outros que Charles havia conhecido em sua vida. Tratava-se de um homem alto e forte. Tinha uma máscara de gás em seu rosto, que ocultava sua identidade, e usava um uniforme de sargento da polícia militar, empapado de sangue. Correntes tomavam completamente os seus braços, como uma segunda pele e em uma de suas mãos havia uma faca afiada, daquelas usadas por açougueiros. O desconhecido se levantou da cadeira, e olhou fixamente para Charles, encarando-o por trás de seus olhos vítreos.

   Se fitaram por alguns segundos. Charles tinha vontade de correr, desaparecer das vistas do homem, mas não conseguia. Estava tomado por um sentimento de arrependimento avassalador. Sentia que devia ser punido. Ajoelhou-se ao chão, abaixando sua cabeça, oferecendo seu pescoço desprotegido. O homem de máscara de gás se aproximou, parando há alguns centímetros de Charles. Ergueu seu braço o mais alto que podia, fazendo sua faca brilhar diante da pouca luz presente na sala. Antes de executar o ato final, disse, com uma voz abafada pela máscara, que a fazia soar desumana, incomum:
- Justiça.
 Acompanhada de tal palavra, veio um som de lâmina rasgando o ar, seguido de um ruído oco, de algo chocando-se contra o solo. Depois disso, nada mais se fez ouvir.
  

  
 

sábado, 9 de junho de 2012

A última esperança

   A lua estava cheia no céu, com um ar soberano, de pura superioridade. Uma noite bela, de inspiração para os mais românticos, triste para os que não são correspondidos por seus amores. Roberto é um desses homens desafortunados. Apaixonado por uma mulher, uma linda morena de olhos castanhos, que lhe ignora, finge não perceber sua sofrida existência. Roberto é capaz de loucuras para ter o coração da dama, atos insanos, impensados. Tentou de tudo. Deu flores, fez dezenas de convites para um passeio, passou até vergonha em frente a uma multidão, declarando-se, cantando canções recheadas de juras de amor, que de nada lhe serviram para conquistá-la. Virou motivo de piada na cidade, mas mesmo assim, ainda não desistiu. Tem esperança, confia em uma última tentativa, que poderá lhe custar caro. Não se importa com os riscos, só quer ter ao seu lado, a pessoa que acredita ser o grande amor de sua vida.

   Saiu de casa no meio da madrugada. O que planeja fazer, tem de ser feito as escondidas, sem olhares curiosos ao redor. Algo extremamente sigiloso. Aprendeu com as lendas de Monte Santo, passadas de geração em geração, sempre revividas, incrementadas, ainda mais misteriosas a cada versão. Histórias para ajudar crianças inquietas a dormir, ou talvez para lhes tirar o sono. Mexer com o imaginário das pessoas, fazê-las divagar por universos carregados de misticidade. Em alguns casos, tornarem-se reais para certos indíviduos desesperados, assim como Roberto, que desprovido de opções, escolheu agarrar-se ao considerado improvável. A sua última esperança, de fato.

  Parou em uma encruzilhada de terra batida, onde depositou ao chão uma pequena urna, que continha um pássaro morto. Uma oferenda para a entidade que planejava chamar. Olhou para o céu com uma angústia predatória e berrou com todos os seus pulmões, chamando por um nome em particular, antigo, conhecido por muitos em todo o mundo, nas mais diversas nomenclaturas. Esperou, sentindo-se um verdadeiro idiota por ter acreditar em simples lendas, provavelmente criadas por algum desocupado com a mente muito criativa. Foi então, que um cheio de podridão se fez sentir, seguido de um vento gélido, cortante como navalha. No horizonte surgiu uma sombra, que logo tomou a forma de um homem, vestido em um elegante terno preto, de muita fineza, daquele que só vemos no corpo de um magnata dos mais milionários. O sangue de Robertou congelou. Era verdade. O capiroto estava diante de seus olhos. Havia respondido ao seu chamado. Hora de arcar com as consequências.

   O homem trajado no belo terno se aproximou de Roberto, com um sorriso largo nos lábios, recheado de digamos, boas intenções, mesmo que essa não seja a melhor definição para esse caso. Estendeu sua mão, cumprimentando-o gentilmente, como um verdadeiro cavalheiro. Em seguida, disse, com uma voz simpática, dessas que só os radialistas sabem fazer:
- Do que você precisa, senhor? Posso te dar tudo o que você quiser. Tenho o poder de fazê-lo rico, dar-lhe um charme irresistível, que lhe dará plenas condições de ter todas as mulheres que desejar. O que você quiser.
- Quero o coração de Maria Lucia. É só isso que me importa - Disse Roberto, um tanto amedrontado por estar diante do ser das trevas.
- Que coisa linda. - Disse o homem, com uma expressão enojada em sua face.- Vocês mortais são uns imbecis. Perdendo tempo com uma mulher qualquer, quando existe a possibilidade de ter todas as que desejar aos seus pés! Posso lhe transformar no mais novo Don Juan, com apenas um estalar de dedos. 
- Isso não me interessa. Quero ter apenas Maria Lucia. E não a quero como um fantoche, apenas para satisfazer os meus desejos carnais. Com ela, penso em amor de verdade, romance. Eu a amo. - Disse Roberto, com toda a sinceridade do mundo.
- Ama uma pessoa que pouco se importa com você. É mesmo um grande idiota. Sentimentos não irão mudar nada em sua vida. Escute o que tenho para lhe dizer. Emoções são destrutivas, levam a um caminho sem volta. Amores são capazes de mutilar almas, despedaçar corações em um prazo curtíssimo. Servem para lhe fazer sofrer, essa é a verdade. - Disse o homem de terno, imensamente irritado pelo afeto exacerbado de Roberto por Maria. - Mulheres servem para dar prazer e nada mais. Coloque isso na sua cabeça
- Como você é mesquinho. Não é à toa que é tão mal visto por todos. - Disse Roberto, indignado com a falta de sensibilidade do capiroto. - Você não me entende, pelo simples fato de que não tem a capacidade de amar. Não sei como pode existir dessa forma. Que eternidade vazia a sua. Respira apenas para desgraçar com os outros. Depois o idiota sou eu. E realmente sou, por ter entregue o meu problema nas mãos de um inútil como você. Tenho uma idéia melhor. Irei hoje à casa de Maria, e lhe direi tudo o que sinto, pela centésima vez. Creio que não irá dar em nada, mas pelo menos é uma forma de persistir. Quem sabe, um dia a terei ao meu lado, da forma que quero, tendo de sua parte um amor verdadeiro. Não quero uma relação construída em mentiras e originada de um feitiço. Até mais, coisa ruim. - Disse Roberto, virando-se e caminhando de volta para o centro de Monte Santo, sem ao menos olhar para trás.

   O homem de terno permaneceu imóvel, sem palavras. Havia sido a primeira vez que seus serviços tinham sido dispensados. Não podia acreditar em algo assim. Sempre tinha conseguido corromper o coração humano, com suas mentiras, suas promessas de felicidade, mas dessa vez tinha falhado. Um ódio incontrolável lhe tomava suas entranhas. Havia sido julgado por um mortal, uma criatura burra, frágil, que duraria na terra por alguns poucos anos, para depois morrer, tornar-se pó, desaparecer de uma vez por todas. Um dos milhões de vermes criados por Deus, apenas para vagar a esmo pela dimensão dos vivos, sem um objetivo grandioso como o seu. Enfurecido, chutou a urna com a oferenda que lhe havia sido traga e desapareceu no ar. Ainda descobriria uma forma de vencer o amor, a única coisa que conseguia lhe enfraquecer e lhe impedir de fazer o mal. 

   Enquanto pensava em uma maneira de derrotar um sentimento tão nobre, em um canto da cidade Roberto se declarava para Maria, que lhe escutava impaciente, preparada para lhe desferir uma nova negativa. Isso lhe abalararia? Claro que não. Roberto amava aquela garota mais do que tudo, e começava a perceber que ela também nutria do mesmo sentimento, mas não demonstrava por puro orgulho. Insistiria e um dia iria enfim quebrar a barreira que impedia que o esperado romance enfim começasse. Confiaria no amor, o sentimento mais puro do mundo, a salvação da humanidade, o que ainda nos faz ter aquela esperança diminuta no peito, nos momentos mais difícieis, de que dias melhores virão e o próximo amanhecer, finalmente será repleto de felicidades.
  


sábado, 2 de junho de 2012

Querido papai

    Três longos meses, eternos para Clara. Perder o pai não é algo fácil para ninguém, ainda mais quando uma desgraça dessa acontece durante a adolescência, fase de transformações na vida de qualquer pessoa., um periódo em que um caráter pode ser moldado definitivamente. Uma depressão aguda com apenas dezesseis anos, é quase que insuportável. Uma tristeza profunda, que tomava conta de todos os familiares ligados ao falecido, um homem muito querido e admirado. 

   Clara não queria mais nada na vida. Seu quarto havia se tornado seu lar, um reino particular, proibido para o resto do mundo. Um lugar onde podia chorar a vontade, distante de olhares curiosos, de consolos que de nada serviam, a não ser para deixar seu coração ainda mais pesado, sufocado pela dor. Suas únicas companheiras eram as recordações tenras de seu pai, que surgiam em sua mente como retratos envelhecidos, daqueles que deixamos jogados em um canto do quarto, completamente esquecidos. 

   Ficou presa dentro de casa durante os três meses que se seguiram após a morte do pai. Se excluiu da sociedade, de sua rotina de antigamente, apesar dos protestos da mãe, que dizia para superar seu interminável sofrimento e voltar a ser a garota alegre de antes, capaz de abrir um sorriso nos lábios por qualquer motivo, mesmo os mais simples e banais. Não conseguia. Era como se sua alma houvesse sido levada junto de seu pai, para todo o sempre. Nunca mais seria a mesma, tinha a mais plena certeza disso.

  Sentia saudades de ouvir o barulho da chave indo de encontro a fechadura, seguido de um clique da destranca, que anunciava a chegada de seu amado pai, que vinha carregando em uma das mãos um presente, um doce de padaria, dos preferidos de Clara. Lembrava-se de descer as escadas ansiosa pelo reencontro, atirando-se nos braços do pai, fortes e firmes, sentir sua loção para barba, apreciar seus olhos negros como carvão. Momentos de intensa alegria, que como bem sabia, nunca mais voltariam a acontecer. Tinham ficado em um passado distante, que continuava a existir em seu inconsciente mais profundo e desesperado.

   E assim os dias passavam, imersos em lembranças. Em falsas esperanças também. Clara sonhava todas as noites com seu pai, e nessas abstratas oportunidades de vê-lo, conversava. Falava sobre como estava sendo duro aguentar a cruel realidade que era obrigada a defrontar, em como sentia saudades. No entanto, não era correspondida nessas experiências noturnas. A representação de seu pai apenas lhe encarava, sem nada dizer, como um mero boneco. Não havia sequer um afago carinhoso, um beijo na testa, como costumava fazer antes de colocá-la na cama para dormir. Apenas uma imagem em um sonho, incapaz de reproduzir sentimentos. 

   No entanto, em um desses sonhos, as coisas começaram a mudar. Normalmente, Clara se via em seu quarto nesses encontros com o pai. Dessa vez, sua mente construiu um novo palco, um lugar desconhecido, aparentemente no meio do nada. Um campo enorme coberto por grama e algumas runas de pedra, irreconhecíveis em meio a escuridão. Bem no meio da paisagem, estava seu pai, um moreno alto, forte, vestido em seu uniforme de trabalho, um macacão azul de encanador. Exibia uma expressão desesperada, que bradava por si só uma ajuda. Clara aproximou-se de seu pai, e perguntou, um tanto receosa:
- Do que você precisa?

   Seu pai nada disse. Limitou-se apenas a apontar para uma toalha vermelha que estava ao seu lado. Um arranjo feito para alguma espécie de ritual profano. Além da toalha, haviam algumas velas roxas, além do desenho de uma estrela de cinco pontas. Um cachorro estripado completava a cena, que parecia ter sido roubada de um filme de horror. Clara gritou diante de algo tão nefasto, despertando em sua cama, com os olhos arregalados e o corpo coberto de suor.

   A imagem desse pesadelo permaneceu em sua mente durante semanas, lhe intrigando profundamente. O que permanecia vivo em sua cabeça era o ritual, o arranjo diábolico, para o qual seu pai apontava suplicantemente. Aquilo lhe deixou imensamente confusa. Incapaz de controlar sua curiosidade, iniciou buscas pela internet relacionada ao assunto. Encontrou um endereço conhecido por abrigar tais seitas. Resolveu visitá-lo, saindo de casa pela primeira vez em três meses. Disse para a mãe que visitaria algumas amigas. Mentira. Tinha se afastado de suas amizades. Na verdade, tinha fugido do mundo, de toda a realidade que antes entendia como vida.

   Foi até o endereço. Era um lugar nem um pouco agradável. Ficava em um beco fedorento da cidade, oculto de todos, como que para menter em sigilo os segredos proibidos que pudesse ter. Adentrou no local, que apresentava-se demasiadamente apertado, repleto de artefatos sinistros, como crânios humanos e medalhões com símbolos considerados satânicos. Clara desejava estar longe dali, mas a vontade de compreender o sentido de seu pesadelo lhe incentivou a ficar. Além disso, queria poder atender ao pedido de seu pai, mesmo que fose apenas algo criado por sua mente desesperada, ferida pelo sofrimento da perda de alguém que tanto amava.

  Um homem de barba longa e vestes negras lhe atendeu. Não era nem um pouco agradável. Fedia como merda. Clara ignorou o odor desagradável e tratou de questioná-lo. Tinha de saciar sua curiosidade, que lhe atiçava como um inseto incômodo, picando partes do corpo impossíveis de se coçar. Podia simplesmente ter ido embora, mas não o fez. Certas coisas devem ficar em segredo. Certas respostas não devem ser procuradas. Clara não sabia disso, e mesmo que soubesse, teria ignorado. Seu pai lhe induzia a continuar. Virando-se para o estranho homem, disse:
- Tenho algumas dúvidas em relação a um ritual, e creio que esse seja o lugar certo para buscar respostas.
- De que tipo de ritual estamos falando especificamente? - Perguntou o homem, que parecia não escovar os dentes há décadas, tamanha a podridão exalada por sua boca.
- O que exige o sacríficio de um animais. - Disse Clara, sentindo-se nervosa por estar debatendo um assunto tão macabro.
- Existem vários desse tipo. Geralmente são feitos para estabelecer um comunicação com entidades superiores. Para satisfazer desejos impossíveis, digamos. - Disse o homem, coçando sua barba longa e suja. Clara avistou com repulsa um grão de arroz em meio a toda aquela pelugem.
- Qualquer tipo de desejo? - Perguntou Clara, deslumbarada pela possibilidade.
- Qualquer um. - Disse o homem, com uma expressão endiabrada no rosto, que faria qualquer um ter certeza de que estava possuído por algum ser maligno. - Exigem um custo alto, irrisório talvez, para quem quer algo que nunca poderia ter de maneiras normais.
- Só preciso de um sacríficio animal para esse ritual? - Perguntou Clara, pensando em seu pai. Já não havia mais volta. Suas ações no entanto, seriam desastrosas. 
- De um sacrifício e de uma boa quantidade de seu sangue. Um copo e meio deve bastar. - Disse o homem, parecendo cada vez mais enlouquecido.
- Certo.- Disse Clara, deixando o local em seguida, sem mais nada dizer.

  Foi durante a madrugada. Clara levantou-se silenciosamente de sua cama, disposta a colocar o seu plano em ação. Apanhou um pano de prato de uma gaveta no ármario da cozinha, e uma faca bem afiada de cima da mesa. Foi até o sofá, onde seu gato dormia tranquilamente, alheio ao perigo que se aproximava. Agarrou o animal pelo pescoço, enfiando a lâmina em seu ventre, fazendo uma quantidade de sangue considerável jorrar no chão. Estendeu o pano de prato encima da poça de sangue, colocando o gato morto por cima de todo o arranjo. Acendeu algumas velas e desenhou uma estrela de cinco pontas um tanto torta. Nunca tinha sido uma boa desenhista. Para sua sorte, ou quem sabe azar, a entidade que tentava invocar não ligava para tais detalhes. 

   Proferiu algumas palavras em latim, as quais não compreendia o significado, articulando-as apenas pelo simples fato de que eram necessárias para atrair a entidade capaz de realizar seus desejos mais insanos. Fechou os olhos e abriu um corte profundo em um de seus pulsos, que começou a sangrar descontroladamente. Assim que o líquido vermelho tocou o desenho da estrela de cinco pontas, o ar tornou-se insuportavelmente pesado, como que tomado por algum ser invísivel de presença opressiva. Um cheiro de putrefação se fez sentir, desaparecendo logo em seguida. Clara caiu ao chão inconsciente. Ficou desacordada por horas. Sua mãe lhe encontrou a beira da morte no chão da sala, pálida como cera por conta da quase fatal perda de sangue provocada pela ferida no pulso. Por obra do destino, sobreviveu.

   Passou uma semana no hospital, onde recuperou-se bem do incidente. Era obrigada a passar por sessões cansativas com psicólogos, que questionavam seu interesse por magia negra, ao mesmo tempo em que avaliavam a sua sanidade. Clara respondia aos questionamentos com muita paciência. Já havia assumido o seu momento de loucura, sua fraqueza, que lhe tinha levado a acreditar que teria seu pai de volta. Nada no mundo poderia proporcionar-lhe tal possibilidade. A morte é irreversível. Havia aceitado essa realidade, de uma vez por todas.

  Retornou para casa e decidiu voltar a viver. Resolveu rever seus antigos amigos, matriculou-se novamente na escola, disposta a recuperar o tempo perdido. Guardou o albúm de fotos de seu pai, o mais distante possível de suas mãos. Trataria de esquecê-lo por um tempo, para o seu próprio bem. No entanto, não é assim que a banda toca. Sempre tentamos enterrar o passado, mas ele sempre retorna, de uma maneira ou de outra. Foi assim com Clara. Seu passado bateu em sua porta, literalmente.

  Uma bela tarde de outono. Clara cuidava de terminar os deveres de escola. Estava distraída nessa árdua tarefa, quando ouviu o som da campainha no andar de baixo. Apostava que era uma de suas amigas. Sempre lhe visitavam nas horas mais impróprias. Começou a planejar uma maneira de dispensar quem quer que fosse, quando assustou-se com o berro estridente de sua mãe. Algo estava errado. Seria um ladrão, algum marginal carregado de más intenções? Clara não sabia. Estava amedrontada, mas mesmo assim saiu de seu quarto e desceu as escadas, ignorando o risco que corria. 

    Avistou sua mãe caída no chão, completamente desacordada. Correu até ela desesperada, parando subitamente com uma expressão de assombro no rosto. Parado na sua frente, estava um moreno alto e forte, vestido de um macacão azul todo manchado de terra. A figura não tinha mais cabelo e um de seus olhos parecia ter sido arrancado de sua órbita, por algum animal esfomeado. Verdade que o homem cheirava como carne podre, sem falar que seu rosto havia desaparecido quase que por inteiro, dando lugar para uma forma disforme, quase irreconhecível. Também não tinha dentes, mas Clara não se importava. Correu ao encontro do cadáver e o abraçou, beijando-o com carinho na face descarnada.

  Encarou o olho restante do pai, que estava dependurado no rosto por um nervo branco, que lembrava uma larva dessas que achamos no meio do lixo. Beijou-o na bochecha, sentindo o gosto de terra fresca adentrar em sua boca. Em seguida disse, com um sorriso luminoso, o qual há muito não se via em suas feições:
- Eu te amo, papai. Estou muito feliz em te ver de novo.
- Eu também. - Disse a coisa, com uma voz sufocada, semelhante a de alguém que grita socorro enquanto se afoga. - Vim para te levar. Você vai morar comigo agora. É um lugar muito agradável. Você vai adorar.
- Não importa para onde vamos. Só quero estar com você. - Disse Clara, segurando a mão da coisa. - Vamos.
- Lá viveremos para todo o sempre. Nunca mais iremos nos separar. - Disse o cadáver, com um sorriso sinistro, meio desajeitado, pois lhe restava apenas metade do lábio.

  Partiram de mãos dadas, para algum lugar qualquer. O fato é que Clara nunca mais foi vista. Desapareceu como fumaça, como se nunca houvesse existido antes. Alguns dizem vê-la perambulando pelas ruas, sozinha, clamando por seu pai. Outros afirmam tê-la visto acompanhada de um cadáver de macacão azul, caminhando sem rumo, como uma alma penada. Lendas urbanas, histórias criadas por mentes imaginativas demais. Não teria a garota enlouquecido e apenas fugido de casa? Não se sabe. Em realidade, ninguém nunca irá descobrir que fim levou Clara. Apenas mais uma pessoa desaparecida e esquecida com a passagem implacável do tempo.
   

  

  


Justiça

   Noite alta no Rio de Janeiro. Seus habitantes dormem traquilamente, alheios ao que acontece ao seu redor, perdidos na terra dos sonhos, em uma realidade distante e abstrata. Uma mulher, uma das poucas pessoas que ousam se aventurar nas ruas em um horário tão inapropriado, caminha apressadamente, ansiosa por chegar o mais rápido possível em sua casa, onde espera ficar em segurança. Tem medo, sente-se insegura por estar sozinha, completamente a mercê de um lunático qualquer, sujeita a qualquer risco. Já foi assaltada. Uma experiência nada agradável. Mais de uma vez, perdendo em uma dessas oportunidades, o salário suado de seus serviços como diarista. Consequências da falta de segurança em uma grande metrópole, aliada a falta de justiça. Marginais costumam cumprir penas irrisórias por seus feitos, ganhando liberdade em questão de horas. Mundo injusto. Sociedade carente de atitudes do alto escalão, o governo, quase sempre ausente nas questões mais importantes.

   Adentrou em um beco, um atalho que lhe ajudaria a economizar alguns minutos consideráveis. Estava um tanto escuro, quase impenetrável. Apressou o passo, sentindo um calafrio gélido passar por seu corpo. O medo revisitando suas sensações, acelerando os batimentos cardíacos, descordenando a respiração, que saia imprecisa, de uma maneira um tanto trôpega. Então, um ruído indefinido se fez ouvir, fazendo com que a mulher interrompesse seus movimentos por completo. Parou aterrorizada, tentando imaginar qual seria a origem de tal som. Não demorou nada para descobrir. Em meio as sombras, surgiu um homem corpulento, com um canivete afiado nas mãos, pronto para ser usado. Exibia um sorriso carregado de más intenções. Foi até a mulher, colocando o canivete em seu frágil pescoço, para então dizer:
- Uma dama como você na rua até uma hora dessas, com certeza está em busca de um pouco de diversão. Sorte que eu também estou. Tira a roupa.
- Por favor, me deixe ir! Tenho filhos para cuidar, uma família. Não me faça mal. - Disse a mulher, com uma expressão tomada pelo mais puro terror.
- Não lhe farei mal nenhum, ao contrário, vou te proporcionar uma noite incrível, acredite. Garanto que sou muito mais dotado que o babaca com o qual você é casada. - Disse o homem, insinuando-se, lambendo o pescoço da mulher com um desejo incontrolável.

  Inesperadamente, o homem do canivete foi agarrado pelos braços, sendo atirado contra um muro de concreto com uma força incrível, própria de um indivíduo conhecedor das artes marciais mais brutais. Um desconhecido trajado de uma vestimenta escura e uma máscara de hockey surgiu. Ofereceu sua mão para a mulher, que estava caída no chão, desamparada, quase aos prantos. Encarou-a com seus olhos vazios, indefinidos pela máscara, e disse:
- Vá embora. Eu cuido do resto.

   A mulher virou-se sem ao menos agradecer, e correu desesperada, ansiosa por se ver o mais distante possível do molestador de más intenções, que por pouco, não havia conseguido alcançar seus nefastos objetivos. O misterioso da máscara caminhou sem pressa até o homem atirado ao chão, erguendo-o pela gola da camisa de uma só vez. Acertou-lhe em cheio com três socos fortíssimos na face, que lhe arracaram de uma só vez, a metade dos dentes que se encontravam na parte frontal de sua boca, além de fraturar o nariz do infeliz, que jorrou sangue na mesma hora. Encarou o marginal com uma fúria capaz de se sentir de longe, e disse, com a voz carregada por um ódio quase mortal:
- Não vai fazer nada? Pra onde foi aquele homem másculo de antes, o rapaz bem dotado? Me responda!- Berrou, acertando um soco avassalador na boca do estomâgo do molestador, que abaixou-se tomado por uma dor incontrolável. Gorfou de imediato um jato de sangue. - Seu merda. Aposto que já foi preso várias vezes. Graças ao sistema judiciário, as leis fracas desse país, devem ter te libertado rapidamente, dando-lhe novas oportunidades de fazer mal a quem nada tem a ver com sua demência mental. Maldito. Dessa vez, você não escapa. Não sou tão gentil como os polícias com os quais costuma conviver. Eu vivo em nome da justiça, e em nome dela, tudo faço. Sou o desejo do povo, que clama por uma punição severa a marginais como você, que nada fazem pelo bem dessa nação. Escória. Apenas um verme, um desagregador, que vive apenas para desgraçar com os justos. Seus dias de atos insanos terminaram.
- Não me mate, por favor. - Disse o homem, esforçando-se para conseguir articular tais palavras. Seus lábios estavam completamente cortados, graças ao impacto poderoso dos golpes do misterioso da máscara.
- Quem falou em matar? Eu estaria me rebaixando ao seu nível se fizesse isso. Não sou um assassino. Apenas farei justiça, como nos velhos tempos, no glorioso império romano. Sabe o que faziam com bandidos como você? Castigavam da maneira devida. Quem usava as mãos para fazer o mal, era condenado a perdê-las. O que acha de tal destino? Interessante? Eu classifico como digno para alguém tão repulsivo. - Disse o homem da máscara, notando um desespero crescente na expressão mortificada do homem.
- Por favor, não... - Clamou o molestador.
- Aposto que quando suas vitímas dizem isso, você simplesmente as ignora. Gosto dessa atitude. Vou fazer o mesmo. - Disse o homem da máscara, agarrando os dedos de ambas as mãos do molestador, torcendo-os para trás com todas as forças de seu corpo, fazendo-os se quebrarem praticamente ao mesmo tempo. O homem gritou de dor, caindo inconsciente ao chão logo em seguida.
- Verme. - Disse o homem da máscara, pisoteando os braços do molestador, fraturando-os em várias partes. - Isso deve bastar. - Disse, deixando o beco silenciosamente em seguida.

   No dia seguinte encontraram o molestador jogado no chão, berrando como um louco, devido as dezenas de fraturas espalhadas por seus braços e mãos. Foi levado ao hospital. Se recuperou depois de meses. Os ossos cicatrizaram, mas de uma maneira um tanto fossilizada. Tinham se partido em muitos pedaços, acabando por diminuir os movimentos capazes de ser realizados pelo molestador, que depois dessa experiência, resolveu mudar de vida. Virou um bom rapaz, quem diria! Trabalhador, esforçado. Passou a controlar seus desejos indecentes, a respeitar damas desprotegidas altas horas da noite. Nunca mais cometeu um único crime. Passou a respeitar a justiça. Não a criada pelos homens, registrada em um pedaço de pápel, esquecida em escritórios judiciais. Passou a respeitar a justiça na forma de um homem. O misterioso da máscara.  O justiceiro do povo, o vigilante das noites mais negras da maravilhosa Rio de Janeiro