quarta-feira, 4 de julho de 2012

Cidade Fantasma


 O camaro 74 rasgou a estrada em alta velocidade, ignorando as placas que alertavam sobre o limite de velocidade, que não passava de 80 quilômetros na interestadual. O motorista chama-se George, um homem branco e alto, com um cabelo arrepiado no melhor estilo Elvis Presley. Sujeito metido à besta. Acredita piamente que seus óculos escuros lhe dão um ar sensual, capaz de seduzir qualquer garota que surgir em seu caminho. Não sabe que está ridículo aos olhos dos outros, um verdadeiro idiota tentando se passar por um cara elegante. Também, não há ninguém para alertá-lo de seu visual vexatório. Está no meio da estrada, em meio ao mais puro nada. Não tem destino. Um louco viajando sem rumo, apenas disposto a apreciar o que há de melhor em seu país. 

   Seu plano era atravessar todo o território nacional, conhecer novos cenários, cidades de todos os cantos, pessoas novas. Está tremendamente cansado de sua rotina repetitiva. Antes de partir em sua jornada insana, George trabalhava como entregador de pizza em Boston. Uma profissão nada gratificante, ainda mais quando já se está com quase trinta anos nas costas. Quando adolescente, sonhava em ocupar um lugar de respeito na sociedade, talvez como um empresário bem sucedido, alguém de renome. Não chegou nem perto. Deixou de estudar ainda novo, pensando em aproveitar a vida, desfrutar do máximo de garotas possíveis, pretensão normal para qualquer jovem rapaz, ainda mais quando se está com os hormônios a flor da pele. Tornou-se um derrotado, sem um futuro brilhante no horizonte. 

  No entanto, algo de bom aconteceu. George é grande amante dos jogos de loteria. Não deixa de tentar sua sorte uma única semana sequer, habito que aprendeu com o pai, que morreu sem ganhar um único tostão em tais apostas. Porém, a história de George foi um pouco diferente. Faturou uma quantia interessante acertando uma quina por acaso, pois nesse dia, apostou em números distintos, sem qualquer tipo de ligação com sua vida, ao contrário da grande maioria das pessoas, que preferem arriscar-se com numerologias ligadas a datas especiais e marcantes, algo que nunca premiou ninguém. 

  Nunca havia visto tanto dinheiro em suas mãos em toda a sua insignificante existência. Levado pela alegria incontrolável, George decidiu viajar sem rumo, pegando qualquer estrada que surgisse em seu caminho. Tinha como se sustentar em sua aventura. Poderia garantir-se tranquilamente em qualquer canto do país, podendo privar-se de qualquer tipo de preocupação. Sentia-se livre, desacorrentado de suas obrigações, das implicâncias da mãe, que sempre fazia questão de lhe lembrar do fracasso que haviam sido suas tentativas de conquistar uma profissão melhor, realizar-se como pessoa. Nada mais importava. Nada.

   Tanta felicidade não poderia existir sem estar acompanhada de uma frustração. Nada pode ser perfeito. Essa é uma das regras cruciais da vida. Não foi diferente com George. Havia planejado percorrer ao menos cem quilômetros sem uma única parada, objetivo frustrado por seu camaro 74. O motor do veículo, já um tanto desgastado pelo uso, pifou, deixando George na mão. Sentia-se como um verdadeiro imbecil. Tinha o dinheiro necessário para dar uma geral em seu carro, mas tinha se esquecido de tal precaução. Agora, encontrava-se completamente abandonado no meio da estrada, distante de qualquer tipo de civilização. Teria que se virar. 

   Não se deixou tomar completamente pelo desânimo. Próximo de onde se encontrava, havia a única esperança. Uma cidade se destacava em meio à paisagem. Não se apresentava agradável. Em realidade, por seu aspecto deplorável, parecia estar abandonada há bastante tempo, por anos incontáveis. Era sua única alternativa. Iniciou a caminhada até a cidade, andando com pressa. Queria retomar sua viagem o mais rápido possível. O primeiro destino de sua lista seria Las Vegas, onde apostaria mais uma vez em sua sorte. Poderia acabar ficando rico. Quem sabe? Sua boa fase poderia lhe presentear com uma pequena fortuna, o bastante para calar de uma vez por todas a boca de todos os desacreditados em sua vitória. Acabar com a sina de pobreza incrustada em sua família, colocando-a no ponto mais alto da sociedade. 

   Havia uma placa bem na entrada, com o nome da cidade gravado em letras brancas, grandes o bastante para se fazerem ver de uma distância considerável. Greenville, esse era o nome do lugar. George já tinha ouvido essa nomenclatura uma vez, só não conseguia se recordar onde e muito menos quando. A única coisa que lhe interessava, era conseguir encontrar alguém capaz de lhe ajudar a fazer o pobre camaro voltar a funcionar novamente. Depois, se concentraria novamente em sua viagem, nos destinos infindáveis que tinha em mente. Tinha de aproveitar a vida, pelo menos, enquanto durasse o seu prêmio. 

  Caminhou por entre os prédios de Greenville, construções decadentes, desoladas pela passagem implacável do tempo, que havia lhes tirado a vivacidade da pintura, a firmeza de uma estrutura capaz de suportar qualquer tempestade. Estava um tanto deslumbrado. Muitas histórias tinham acontecido na cidade, em épocas passadas, acontecimentos diversos. Em sua cabeça a imaginação trabalhava aguçadamente, tentando criar uma explicação razoável que solucionasse o mistério por trás do fim de toda uma civilização. Como teriam sido os últimos dias de Greenville? Dúvida cruel, que lhe trazia a tona o desejo de vasculhar cada ponto oculto do local, perseguindo respostas escondidas por anos. Levantar a poeira deixada pelo passado. Seria uma boa idéia? Certas questões devem continuar insolúveis, pelo próprio bem de muitos, afinal, a curiosidade um dia matou um gato. 

   De súbito, um vulto lhe chamou a atenção. Movia-se com velocidade em um beco estreito, sumindo de vista rapidamente. Poderia ser alguém. George enfiou-se no beco, correndo desesperadamente. Precisava de ajuda. Não planejava passar a noite na cidade e queria retomar a sua viagem o mais rápido possível. Avistou o vulto ao longe, descendo uma escadaria comprida, que levava a uma porta onde se lia o aviso: “Entrada autorizada somente para funcionários da prefeitura”. George ignorou o alerta. Desde criança, sempre tinha tido a capacidade nata de quebrar regras, e não havia mudado depois de crescido. Abriu a porta, penetrando em uma escuridão densa, de certa forma, assustadora. 

   Acendeu o isqueiro que costumava trazer sempre em seu bolso, iluminando o que se encontrava ao seu redor. Uma podridão nauseante invadiu suas narinas. Era um odor úmido, carregado do fedor inconfundível de merda. Estava bem próximo dos esgotos da cidade. Era uma espécie de acesso alternativo, utilizado talvez, em emergências. Caminhou com cuidado, tomando todo o cuidado possível para não pisar em falso. Percebeu um vulto se movendo adiante, e seguiu em sua direção. Estava um tanto irritado. Sentia-se como que usado pelo estranho que perseguia, que parecia estar jogando, divertindo-se com o seu desespero por estar em um lugar desconhecido, e para piorar, longe de casa. Muito longe.

   Seguiu o som dos passos do vulto, indo parar em um beco sem saída. Não havia mais para onde ir. Tentou raciocinar, pensar a respeito do que faria. Um ruído de água escorrendo ao fundo atrapalhava suas idéias, deixando-o desconcentrado, ainda mais perdido do que realmente estava. Então, sem aviso prévio, seu isqueiro resolveu apagar-se, abandonando-o na mais completa escuridão. Tentou acendê-lo novamente, mas sem sucesso. Parecia estar sem carga, justo na hora em que mais precisava. Forçou sua vista, na esperança de conseguir rasgar as trevas e surpreender quem quer que ali estivesse lhe observando. Porém, antes que conseguisse ao menos visualizar as sombras que lhe cercavam algo lhe acertou em cheio na cabeça, fazendo-o perder os sentidos de uma só vez. Caiu ao chão inconsciente. 

  Quando despertou, viu-se cercado por dezenas de estranhos vestidos em vestes negras, com suas faces ocultas por debaixo de um capuz. Todos lhe encaravam, como que aguardando pelo momento em que recobrasse sua lucidez. Suspirou atemorizado, com dificuldade em articular palavras. Estava completamente desnorteado. Não sabia o que dizer em realidade. Sentia-se como que perdido em meio às páginas de algum livro aterrorizante, ansioso por chegar ao seu fim, e desvendar toda a trama de uma única vez. 

  Quando se permitiu pensar de maneira mais ordenada, percebeu que estava atado a cordas grossas, amarrado em uma espécie de coluna de pedra. Debateu-se como um peixe preso na rede de um pescador, tentando escapar da armadilha de forma inútil. Por fim desistiu, decidindo-se utilizar da única arma que lhe restava, sua língua. Disse, com a voz tomada pelo medo que agredia seu íntimo: - O que vocês querem de mim?
- Nós nada. – Disse um dos encapuzados, em um tom de voz sereno, capaz de trazer calma a qualquer pessoa, menos para George, que já começava a suar frio de terror. – Você foi escolhido por nosso bom senhor. Afortunado, terá a benção de fazer parte de nossa importante missão, a de levar a palavra sagrada a todos os cantos da terra. Sua jornada começa aqui, irmão.
- Do que você está falando? Está louco? É alguma espécie de demente por acaso? – Indagou George, tomado por uma fúria quase incontrolável.
- Logo você irá entender. Compreenderá que sua vida vazia foi traçada para este encontro. – Disse o encapuzado, sorrindo na escuridão, exibindo seus dentes amarelados, carcomidos pelas cáries que castigavam sua boca. – Sei o quanto sofreu. Incompreendido por todos, tido como um idiota sem futuro, um derrotado. Tolos. Nunca conseguiram enxergar sua luz interior. Você foi marcado desde seu nascimento. Escolhido pelo anjo da justiça como o messias que carregará sua verdade pelo mundo. A hora da revelação chegou.
- Luz interior? Que papo é esse? Messias? – Perguntou George, cada vez mais perdido.
- Sim. Você nasceu para ser um líder. Nosso guia. O porta voz da justiça divina. – Disse o homem, afastando-se enquanto continuava a falar. – Você irá começar a entender tudo o que estou dizendo quando for tocado pelo poder divino. Acordará de sua ignorância, para enfim se tornar o proclamador dos bons tempos. – Terminou, acendendo algumas velas, para depois deixar a sala, seguida de uma fila de indivíduos trajados de negro.
- Espere!- Gritou George desesperado, sem ser atendido. Estava mais uma vez sozinho. Não completamente.

   Sentia uma presença opressora no ambiente, um ser poderoso, capaz de destruí-lo em um piscar de olhos se assim fosse sua vontade. A entidade parecia estar bem próxima, examinando-o atentamente, articulando planos nada sadios em seu silêncio espectral, perturbador. Então, George foi tomado por uma dor agonizante, que vinha de dentro de seu corpo, do meio de suas entranhas. Era como se uma criatura estivesse se locomovendo por entre sua carne, perfurando-a, abrindo caminho com os dentes, dilacerando tudo o que surgia em seu caminho. E pelo jeito, parecia estar faminta. George gritou, sentindo um líquido morno escorrer por entre suas vestes. Era sangue. Jorrava violentamente, de uma ferida imaginária. Não estava machucado. Isso lhe deixou ainda mais confuso.

   Sua pele começou a arder como se tivesse sido tocada por chamas incandescentes, fazendo-o contorcer-se bruscamente de um lado para o outro, tomado por dores anormais, daquelas que acometem mulheres na hora do parto. Algo parecia estar penetrando por seus poros, tomando o controle de seu corpo, transformando-o em um simples recipiente, que serviria para abrigar uma criatura sem forma definida, mas imensamente poderosa. Sentiu sua capacidade de pensar lhe sendo tirada, substituída pela consciência de um novo ser, milenar, talvez, com a mesma idade do próprio início da existência. Seus olhos desfaleceram, tomados por uma cor esbranquiçada, indefinida. Gritou desesperado, clamando por piedade. Não foi atendido. Sentiu sua mente desaparecendo em uma explosão violenta, despedaçando-se como uma lâmpada recebendo o impacto da queda contra o solo. Depois disso, a escuridão se fez existir.

  Abriu os olhos, com um sorriso maldoso no rosto. Não era mais o mesmo. Na verdade, havia deixado de existir. Seu corpo agora era ocupado por outro ser. A coisa que tinha se apossado de sua carne, exibia uma expressão de satisfação insana na face, um prazer mórbido, daqueles que vemos na cara de um psicopata, logo após cometer algum ato desumano, doentio. Estava livre. Tinha esperado por séculos por uma oportunidade dessas. Enfim, caminharia por entre os mortais. Trataria de levar sua justiça para todos, o devido castigo aos incrédulos de sua soberania. Enfim, reinaria. Nada poderia lhe impedir. Nada.