Serviço nojento. É isso o que Geraldo pensa de seu próprio trabalho,
enquanto caminha chapinhando merda para todos os lados, pisando e repisando na
água de esgoto de toda uma cidade, enorme como poucas no mundo, um organismo
pulsante de vida que não para de respirar nem nas altas horas da noite.
Enquanto Geraldo percorre encanamentos de dois metros de altura em busca de
pragas para dizimar, jovens e belas mulheres aproveitam as fartas opções de
entretenimento de São Paulo, gozando de prazeres que esse homem vestido de
roupa de borracha e com o rosto coberto
por máscara de gás pouco
pôde aproveitar em todos os seus anos de existência. É uma pena ser pobre,
esposo de uma mulher barriguda e chata, e pai de filhos que nem ao menos lhe
respeitam. Vida de merda, é isso o que tem.
Até que seus passeios pelos corredores escuros e gotejantes do
subterrâneo da cidade não são tão ruins como imaginado pelos que lhe ouvem
falar do seu cotidiano de trabalho. Para falar a verdade, no mais fundo de seu
ser, até gosta dessa rotina. As vezes é bom estar ali, longe dos gritos
estridentes da mulher que não suporta mais, distante dos problemas e
responsabilidades que teve de assumir desde que disse o maldito sim na igreja e
consumou um casamento sem futuro. Quem dera pudesse ter imaginado antes, que
tudo daria tão errado. Agora é tarde para se lastimar, já não tem forças para
correr atrás de outras oportunidades, de enfrentar as dores de cabeça de um longo processo de divórcio, de ter que largar mão de parte de seus bens a favor
da lei, senhora arrogante, que não aceita questionamentos, apenas obedecimento
sem hesitações. Melhor deixar as coisas como estão, isso se quiser preservar a
própria saúde.
Poderia ter estudado, mas sempre foi cabeça dura, e quando jovem queria
mais é aproveitar sem ter medo do amanhã, lema de drogados inveterados e de
homens que com certeza, algum dia irão se arrepender de decisão tão desmedida. Evitava
a escola a todo custo, preferia vagabundar pelas ruas com sua galera, queimando
bons baseados e ficando louco até o ponto máximo que a droga permitia. Olhando
para sua pança avantajada, alimentada pelo sedentarismo da idade e pelo
desânimo para com a vida, poucos imaginam que esse homem já foi alvo das
garotas mais atraentes do seu antigo bairro, um Don Juan que sabia bem enganar,
com palavras recheadas de floreios e malícia, tudo para levar uma para a cama
até o final do dia. Lastimável, mas seu eu recente não chega nem na ponta dos
pés do garoto vibrante e entusiástico que já foi no passado. Estranho como as
coisas mudam depressa, sem aviso. Em uma tarde de verão, se é o garanhão, o
invejado, e anos depois, não se é nem a sombra disso, apenas um senhor de
cabelos grisalhos, de porte que permite que lhe chamem de gordo, e longe de
alcançar sucesso, independente do sentido que se queira empregar para essa
mesma palavra.
Tudo o que lhe resta é caminhar pelas trevas dos canos de esgoto,
renegado da superfície, condenado a se esconder do sol por grande parte do dia,
como uma criatura feia que causa aversão ao ser encarada. Talvez seja mesmo um
animal de espécie desprezível, de fato não se sente mais como uma pessoa comum.
Passa tanto tempo cercado pelo fedor de excrementos humanos e mil outras coisas
desagradáveis, que seu corpo não possui mais odor de homem, tão impregnado está
pela natureza degradante do ambiente que é forçado a frequentar. Seu único
companheiro humano é um senhor de barba longa, que manca por causa de uma perna
defeituosa. O restante de sua companhia são milhões de baratas, grandes vilãs de donas de casas por todo o mundo, talvez o inseto mais odiado que já existiu na face da Terra. Geraldo
consegue entendê-las. Ultimamente vem sentindo na pele o peso de ter má fama, o
fardo de ser um fracasso, não só para si mesmo, mas aos olhos de todos.
Não tem nada contra as pobres baratas, se identifica com elas, sente que
tem uma estória em comum com as bichinhas, que são irmãos de caminhada. Entretanto,
é pago para fazer seu trabalho, que por ironia do destino, é caçar as coitadas
e matá-las com o veneno poderoso que carrega em um involucro nas costas, fumaça
branca que a tudo que toca dizima. Mandaram que fizesse isso em uma tentativa
de tentar parar a estranha praga que se espalha pela cidade e toma conta de
lares e de sarjetas imundas, assustando até mesmo homens de músculos
respeitáveis, que parecem nada temer, mas que se desmancham em feições de
terror e nojo ao verem uma massa uniforme de baratas avançar por becos e ganhar
ruas, em marcha decidida, quem sabe, em prol de uma revolução em nome dos
insetos renegados pela aparência. Geraldo antes acreditava que eram apenas
lendas, lorotas inventadas por pessoas sem nada melhor para fazer, mas mudou de
ideia ao ver o fenômeno acontecer no banheiro de sua humilde casa. Naquela
noite, gritou tanto quanto uma mulher assustada.
Estava tomando banho, esfregando com força a bucha ensaboada no corpo,
na esperança de se ver livre dos cheiros detestáveis de merda, cortesia
especial do seu odioso trabalho. Cantarolava enquanto a água lhe descia pela
pele em caminhos sinuosos, desbravando as curvas de banha aparente e lhe
trazendo frescor. Não pensava em nada, a mente estava vazia, vagava para longe
dos problemas, o que lhe proporcionava uma paz estranha, com a qual raramente
se encontrava. Então, em um instante de olhos fechados em resignação ao momento
de harmonia, os dedos de seus pés sentiram um roçar de leve com algo que fazia
cócegas. Essa sensação se juntou a tantas outras, e logo se uniu a uma coceira
infernal, que parecia ser proporcionada por um trotar de várias patas em sua
pele, insetos em carreata e tentando escalar o seu corpo de colosso. Abriu
olhos para ver que tipo de bicho estava ali, disposto a pisoteá-lo com os pés
nus mesmo, mas teve uma grande surpresa. Nada boa, para ser mais preciso.
Pelo ralo de furos pequenos passavam baratas à reveria, em uma
quantidade inacreditável, digna de quando contada aos outros, ser tida como pura
invencionice descabida, fora do que pode ser qualificado como realidade. O fato
é que eram muitas, talvez dezenas, quase uma centena, e vinham sem parar,
subindo pelas pernas de Geraldo, que aterrorizado, gritava como uma menina que
tem medo do que pode se esconder no escuro. Se balançou todo como uma gelatina,
sapateando no box do chuveiro em movimentos desajeitados e nada viris,
procurando desesperado com a mão direita a maçaneta para abrir a divisória de
vidro e sair dali com a sanidade ainda preservada. Conseguiu esse feito
rapidamente, para sua sorte, e saiu do banheiro ainda berrando, pelado como
veio ao mundo, deixando traumatizados filho e filha, que tamparam os olhos
apressadamente, nada satisfeitos em terem vislumbrado a aberração de homem com
porte de baleia. A esposa veio em seguida e não se segurou, rindo da situação,
ao mesmo tempo em que mandava o marido tomar vergonha e se vestir. Geraldo não
teve tempo de fazer isso, pois ao olhar novamente para a porta aberta do
banheiro, viu que de lá saia uma multidão de baratas em marcha apressada, elas
se espalhando pela casa e provocando um caos de proporções infinitas por onde
passavam. Logo, um coro de gritos se ouvia do número 98. Viraram motivo de
chacota para o bairro, mas Geraldo não ligou. Duvida que outras pessoas agissem
de forma diferente em face de ocorrido tão bizarro. Acredita que outros
passariam por vexame ainda maior com essa experiência.
A revolta das baratas não ocorreu apenas em sua casa. Em algumas
semanas, o que era considerado lenda, se tornou realidade, ao se repetir nos
metrôs, em outras residências e em grande escala no banheiro de um aeroporto,
que ficou tomado pelas criaturas, que cobriam chão e paredes como um grosso
cobertor, se movendo com uma uniformidade provida de fantástica coordenação,
como um organismo só, como a vida que reverbera pela grande São Paulo,
independente do horário, matutino ou tardio. Alguns gritavam ser o fim dos
tempos, uma praga parecida com a que assolou o egípcio nos tempos bíblicos. O
pessoal da prefeitura era de outra opinião, não compartilhava dos exageros
religiosos de crentes. Para eles, era apenas uma praga, e como tal, precisava
ser confrontada. Geraldo foi escolhido pela missão, desviado de sua função de
limpeza dos dutos. É o tipo de coisa que acontece quando a gente da política,
quer economizar visando um troquinho a mais em seus bolsos já abarrotados de
verdinhas.
Geraldo, como bom funcionário que sempre foi, homem com contas para
pagar e em propriedade para discutir o fato de estar cumprindo com serviço que
não fazia parte de seu ordenado, aceitou a missão de ajudar no aniquilamento da
praga. Agora, ao invés de tirar sujeira de canos, ele anda com o involucro cheio de veneno nas costas, segurando a mangueira à jato pronto para despejar o
material na horda de baratas que parece habitar os esgotos. Seria mentira se
dissesse não estar apavorado. O coração
bate acelerado no peito, os dentes tremem e ameaçam se quebrar ao se
chocarem contra os outros. Tem medo de que uma massa de milhões de baratas pule
por cima de seu corpo e devore sua carne até o osso, mordendo-o com suas
boquinhas malignas, arrancando sangue e o fazendo berrar de dor até sua voz se
perder com a morte. Cena terrível, que não para de se repetir em sua mente
atordoada pelo medo. Se não precisasse tanto de dinheiro, por certo não estaria
se prestando a um serviço desses. Grande merda ser pobre.
Seu velho amigo, o senhor de barba longa chamado Jacinto, está com o
semblante tranquilo, e ainda tem absoluta certeza de que as baratas revolucionárias são apenas uma mentira, uma invenção do governo para assustar a população e assim colocar em prática algum plano maleóvolo, se aproveitando da
distração criada. O homem não bate bem da cabeça, e praticamente respira crenças de
conspirações, ainda acreditando viver nos anos da ditadura, em que um simples
cochichar poderia ser tomado como tramoia. Segue ao lado de Geraldo, a lanterna
na frente do corpo, iluminando com um facho de luz minguado um pouco do caminho
que seguem. Pontos negros podem ser vistos correndo pelos cantos, ratos do
tamanho de gatos e baratas solitárias, mas nada de um exército desses insetos
em intensa revolta. Geraldo empilha tensão em seu silêncio, e sente verdadeiro
ódio do maldito Jacinto e de suas feições tranquilas. É como se ele estivesse
fazendo um passeio por um bosque de belas árvores, e não andando por um esgoto
fedorento, seguido de perto pela ameaça de uma praga aterradora. É impossível
não sentir vontade de socar o velho e fazê-lo mudar de expressão. É terrível
estar assustado e não ter ninguém para compartilhar desse sentimento, para
torná-lo menos opressivo.
Chegaram até uma porta de aço, fechada para dificultar o acesso a um setor proibido do esgoto,
isolado anos atrás por ter se tornado dispensável, visto que outras ramificações de
corredores e canos tinham sido construídas para melhorar a distribuição de toda
a sujeira. Não se via cadeado, e quem quisesse entrar nessa ala abandonada, não
precisaria de muito esforço para derrubar a porta enferrujada, detonada pelo
ambiente úmido em demasia. Pelas frestas, antenas de baratas se mexiam de um
lado para o outro, tentando absorver um pouco de informação do que havia nos
corredores adjacentes, temerosas em talvez, se arriscarem para fora do abrigo.
Algumas passavam por debaixo da porta, e eram logo mortas pelas botas do velho,
que as pisava com divertimento nos olhos, rindo e soltando fiapos de baba pela
boca muxibenta de idoso. Geraldo suspira entre dentes. Gostaria que tivessem
mandado um parceiro melhor para lhe ajudar no serviço, e não um sujeito com a
cabeça tão empoeirada por dentro e repleta de teias, que caduquice é algo que não
pode ser descartado ao observá-lo sorrir com a boca torta e trêmula. Por certo,
lhe faltam alguns parafusos.
— Ha! Que serviço mais besta! Nos
mandaram aqui só pra matar umas baratinhas, é isso mesmo? Poxa, deviam ter me
contratado só pra fazer isso. Tem coisa mais fácil?
— Não se engane. Estamos aqui para
erradicar uma praga. Não creio que serão apenas baratinhas dessas que teremos
de matar. Tem coisa grande por aqui.
— Como você é idiota! Acredita mesmo nos
absurdos ditos pelos jornais? Pura mentira dos políticos. Estão pensando em
algum jeito de meter a mão nos nossos bolsos e querem apenas tirar o foco do
povo com essa estória sem pé nem cabeça. Onde já se viu montanhas de baratas
infestando uma cidade? Parece até coisa de filme.
— Pense no que você quiser, mas vi isso
de perto, na minha casa. A praga existe mesmo. Se eu fosse você, começava a
rezar para essas baratas não serem carnívoras quando em um grupo.
— Nunca ouvi tantos absurdos na minha
vida! Depois o louco sou eu...
Geraldo fingiu não escutá-lo, se adiantando para a porta ao mesmo tempo
em que pisava nas baratas que saiam pela parte de baixo, enquanto com as mãos,
ia puxando as extremidades amassadas da pesada porta, onde era possível encaixar os dedos e
firmá-los para tentar abri-la. Estava enferrujada, velha,
de maneira que não foi difícil. Abriu com estardalhaço, dando um grito de metal
raspando em concreto, e revelando negritude cheia de formas em constante
movimento, como uma massa de criaturas unidas em uma só, tal como um organismo,
em que cada parte funciona em benefício de todas as outras. Geraldo tremeu ante
a esse pensamento e repentinamente, não quis ver o que se escondia por debaixo
da camada de sombras que ocultava o corredor e as coisas que se mexiam. Virou-se lentamente para o velho
com a lanterna, como se o tempo estivesse parado ao seu redor, lhe sufocando
com o arrastar angustiante dos segundos, o impedindo de ser rápido o bastante
para evitar o pior. Não queria que a luz revelasse as coisas que se escondiam sob o véu da escuridão, mas já era tarde demais.
O facho de luz bateu em uma massa negra que se remexia inquieta, viva,
composta por milhares, talvez milhões de pequenos insetos com asas e várias
pernas, um horror em grande escala, capaz de enfartar donas de casas que por
acaso se deparassem com essa aberração. O velho gaguejou ao se deparar com a
coisa e antes que pudesse articular algo que lembrasse uma tentativa de
reproduzir palavras, sua boca já estava selada por muitas baratas, essas que se
desprenderam da massa uniforme e voaram até a goela do senhor, o sufocando aos
poucos, entrando para mais fundo em seu corpo, descendo pela garganta e
chegando aos orgãos internos do pobre coitado, que caiu na água suja do esgoto
se debatendo em uma ânsia desesperada de querer respirar. Morreu em poucos
minutos, os fundilhos da calça pesados pelas fezes despejadas por sua carne
moribunda, os olhos congelados, ainda tingidos pela descrença e terror,
sentimentos que antes eram motivo de piada para o velho. Como foi tolo.
Geraldo não tentou fazer nada. Largou o veneno no chão e ficou apenas
encarando a massa de baratas, o organismo vivo feito de muitos, poderoso em
toda a sua unidade, perigoso como poucas coisas que já andaram pela Terra.
Esperou pelo seu destino de olhos fechados, já aceitando a morte inevitável.
Continuou parado quando sentiu uma centena delas se amontoar por debaixo de
seus pés, outras tantas jogá-lo ao chão, de costas, em uma queda que para ele
terminaria com toda a certeza, com uma onda de baratas lhe arrebatando e se
amontoando em seu corpo, devorando em conjunto sua carne e terminações nervosas
até nada restar, nem mesmo ossada para comprovar que já existiu. Estranho
perceber que continuava intacto ao cair, chocando-se não com a dureza do
concreto, e sim com o mole de várias criaturas transformadas em uma só, sendo
carregado como um trapo pela massa que ondulava sob seu corpo, forte em sua
peculiar união. Um momento que nunca esperaria vivenciar, nem mesmo nos seus
sonhos mais loucos.
A coisa feita de muitos carregou Geraldo por corredores, galerias
gotejantes, e subiu com ele nas costas até a superfície, onde deslizou por ruas
desertas pela noite, sendo vista apenas pela lua branca no céu, silenciosa,
prometendo nada falar a respeito do que presenciava. O organismo, a massa
uniforme de milhões, quem sabe bilhões de baratas, tomou conta de carros
estacionados, de vitrines de lojas, cobriu tudo com seu véu negro de várias
patas e asas. Os gritos começaram assim que a coisa se dividiu e começou a
entrar em cada casa, loja, prédio, dominando aos poucos a cidade, domesticando
os que antes se julgavam reis, e que agora conheciam o fim de suas tiranias
arrogantes. Geraldo nada falava, apenas apreciava o momento de cima de uma das
massas uniformes, sorriso de satisfação brilhando grotescamente em seu rosto.
Nada melhor do que estar por cima dos outros. Nunca sentiu-se tão bem em toda a
sua vida.