sábado, 12 de abril de 2014

Baratas!

       Serviço nojento. É isso o que Geraldo pensa de seu próprio trabalho, enquanto caminha chapinhando merda para todos os lados, pisando e repisando na água de esgoto de toda uma cidade, enorme como poucas no mundo, um organismo pulsante de vida que não para de respirar nem nas altas horas da noite. Enquanto Geraldo percorre encanamentos de dois metros de altura em busca de pragas para dizimar, jovens e belas mulheres aproveitam as fartas opções de entretenimento de São Paulo, gozando de prazeres que esse homem vestido de roupa de borracha e  com o rosto coberto por máscara de gás pouco pôde aproveitar em todos os seus anos de existência. É uma pena ser pobre, esposo de uma mulher barriguda e chata, e pai de filhos que nem ao menos lhe respeitam. Vida de merda, é isso o que tem.

     Até que seus passeios pelos corredores escuros e gotejantes do subterrâneo da cidade não são tão ruins como imaginado pelos que lhe ouvem falar do seu cotidiano de trabalho. Para falar a verdade, no mais fundo de seu ser, até gosta dessa rotina. As vezes é bom estar ali, longe dos gritos estridentes da mulher que não suporta mais, distante dos problemas e responsabilidades que teve de assumir desde que disse o maldito sim na igreja e consumou um casamento sem futuro. Quem dera pudesse ter imaginado antes, que tudo daria tão errado. Agora é tarde para se lastimar, já não tem forças para correr atrás de outras oportunidades, de enfrentar as dores de cabeça de um longo processo de divórcio, de ter que largar mão de parte de seus bens a favor da lei, senhora arrogante, que não aceita questionamentos, apenas obedecimento sem hesitações. Melhor deixar as coisas como estão, isso se quiser preservar a própria saúde.

     Poderia ter estudado, mas sempre foi cabeça dura, e quando jovem queria mais é aproveitar sem ter medo do amanhã, lema de drogados inveterados e de homens que com certeza, algum dia irão se arrepender de decisão tão desmedida. Evitava a escola a todo custo, preferia vagabundar pelas ruas com sua galera, queimando bons baseados e ficando louco até o ponto máximo que a droga permitia. Olhando para sua pança avantajada, alimentada pelo sedentarismo da idade e pelo desânimo para com a vida, poucos imaginam que esse homem já foi alvo das garotas mais atraentes do seu antigo bairro, um Don Juan que sabia bem enganar, com palavras recheadas de floreios e malícia, tudo para levar uma para a cama até o final do dia. Lastimável, mas seu eu recente não chega nem na ponta dos pés do garoto vibrante e entusiástico que já foi no passado. Estranho como as coisas mudam depressa, sem aviso. Em uma tarde de verão, se é o garanhão, o invejado, e anos depois, não se é nem a sombra disso, apenas um senhor de cabelos grisalhos, de porte que permite que lhe chamem de gordo, e longe de alcançar sucesso, independente do sentido que se queira empregar para essa mesma palavra.

    Tudo o que lhe resta é caminhar pelas trevas dos canos de esgoto, renegado da superfície, condenado a se esconder do sol por grande parte do dia, como uma criatura feia que causa aversão ao ser encarada. Talvez seja mesmo um animal de espécie desprezível, de fato não se sente mais como uma pessoa comum. Passa tanto tempo cercado pelo fedor de excrementos humanos e mil outras coisas desagradáveis, que seu corpo não possui mais odor de homem, tão impregnado está pela natureza degradante do ambiente que é forçado a frequentar. Seu único companheiro humano é um senhor de barba longa, que manca por causa de uma perna defeituosa. O restante de sua companhia são milhões de baratas, grandes vilãs de donas de casas por todo o mundo, talvez o inseto mais odiado que já existiu na face da Terra. Geraldo consegue entendê-las. Ultimamente vem sentindo na pele o peso de ter má fama, o fardo de ser um fracasso, não só para si mesmo, mas aos olhos de todos.

       Não tem nada contra as pobres baratas, se identifica com elas, sente que tem uma estória em comum com as bichinhas, que são irmãos de caminhada. Entretanto, é pago para fazer seu trabalho, que por ironia do destino, é caçar as coitadas e matá-las com o veneno poderoso que carrega em um involucro nas costas, fumaça branca que a tudo que toca dizima. Mandaram que fizesse isso em uma tentativa de tentar parar a estranha praga que se espalha pela cidade e toma conta de lares e de sarjetas imundas, assustando até mesmo homens de músculos respeitáveis, que parecem nada temer, mas que se desmancham em feições de terror e nojo ao verem uma massa uniforme de baratas avançar por becos e ganhar ruas, em marcha decidida, quem sabe, em prol de uma revolução em nome dos insetos renegados pela aparência. Geraldo antes acreditava que eram apenas lendas, lorotas inventadas por pessoas sem nada melhor para fazer, mas mudou de ideia ao ver o fenômeno acontecer no banheiro de sua humilde casa. Naquela noite, gritou tanto quanto uma mulher assustada.

    Estava tomando banho, esfregando com força a bucha ensaboada no corpo, na esperança de se ver livre dos cheiros detestáveis de merda, cortesia especial do seu odioso trabalho. Cantarolava enquanto a água lhe descia pela pele em caminhos sinuosos, desbravando as curvas de banha aparente e lhe trazendo frescor. Não pensava em nada, a mente estava vazia, vagava para longe dos problemas, o que lhe proporcionava uma paz estranha, com a qual raramente se encontrava. Então, em um instante de olhos fechados em resignação ao momento de harmonia, os dedos de seus pés sentiram um roçar de leve com algo que fazia cócegas. Essa sensação se juntou a tantas outras, e logo se uniu a uma coceira infernal, que parecia ser proporcionada por um trotar de várias patas em sua pele, insetos em carreata e tentando escalar o seu corpo de colosso. Abriu olhos para ver que tipo de bicho estava ali, disposto a pisoteá-lo com os pés nus mesmo, mas teve uma grande surpresa. Nada boa, para ser mais preciso.

    Pelo ralo de furos pequenos passavam baratas à reveria, em uma quantidade inacreditável, digna de quando contada aos outros, ser tida como pura invencionice descabida, fora do que pode ser qualificado como realidade. O fato é que eram muitas, talvez dezenas, quase uma centena, e vinham sem parar, subindo pelas pernas de Geraldo, que aterrorizado, gritava como uma menina que tem medo do que pode se esconder no escuro. Se balançou todo como uma gelatina, sapateando no box do chuveiro em movimentos desajeitados e nada viris, procurando desesperado com a mão direita a maçaneta para abrir a divisória de vidro e sair dali com a sanidade ainda preservada. Conseguiu esse feito rapidamente, para sua sorte, e saiu do banheiro ainda berrando, pelado como veio ao mundo, deixando traumatizados filho e filha, que tamparam os olhos apressadamente, nada satisfeitos em terem vislumbrado a aberração de homem com porte de baleia. A esposa veio em seguida e não se segurou, rindo da situação, ao mesmo tempo em que mandava o marido tomar vergonha e se vestir. Geraldo não teve tempo de fazer isso, pois ao olhar novamente para a porta aberta do banheiro, viu que de lá saia uma multidão de baratas em marcha apressada, elas se espalhando pela casa e provocando um caos de proporções infinitas por onde passavam. Logo, um coro de gritos se ouvia do número 98. Viraram motivo de chacota para o bairro, mas Geraldo não ligou. Duvida que outras pessoas agissem de forma diferente em face de ocorrido tão bizarro. Acredita que outros passariam por vexame ainda maior com essa experiência.

    A revolta das baratas não ocorreu apenas em sua casa. Em algumas semanas, o que era considerado lenda, se tornou realidade, ao se repetir nos metrôs, em outras residências e em grande escala no banheiro de um aeroporto, que ficou tomado pelas criaturas, que cobriam chão e paredes como um grosso cobertor, se movendo com uma uniformidade provida de fantástica coordenação, como um organismo só, como a vida que reverbera pela grande São Paulo, independente do horário, matutino ou tardio. Alguns gritavam ser o fim dos tempos, uma praga parecida com a que assolou o egípcio nos tempos bíblicos. O pessoal da prefeitura era de outra opinião, não compartilhava dos exageros religiosos de crentes. Para eles, era apenas uma praga, e como tal, precisava ser confrontada. Geraldo foi escolhido pela missão, desviado de sua função de limpeza dos dutos. É o tipo de coisa que acontece quando a gente da política, quer economizar visando um troquinho a mais em seus bolsos já abarrotados de verdinhas.

    Geraldo, como bom funcionário que sempre foi, homem com contas para pagar e em propriedade para discutir o fato de estar cumprindo com serviço que não fazia parte de seu ordenado, aceitou a missão de ajudar no aniquilamento da praga. Agora, ao invés de tirar sujeira de canos, ele anda com o involucro cheio de veneno nas costas, segurando a mangueira à jato pronto para despejar o material na horda de baratas que parece habitar os esgotos. Seria mentira se dissesse não estar apavorado. O coração  bate acelerado no peito, os dentes tremem e ameaçam se quebrar ao se chocarem contra os outros. Tem medo de que uma massa de milhões de baratas pule por cima de seu corpo e devore sua carne até o osso, mordendo-o com suas boquinhas malignas, arrancando sangue e o fazendo berrar de dor até sua voz se perder com a morte. Cena terrível, que não para de se repetir em sua mente atordoada pelo medo. Se não precisasse tanto de dinheiro, por certo não estaria se prestando a um serviço desses. Grande merda ser pobre.

    Seu velho amigo, o senhor de barba longa chamado Jacinto, está com o semblante tranquilo, e ainda tem absoluta certeza de que as baratas revolucionárias são apenas uma mentira, uma invenção do governo para assustar a população e assim colocar em prática algum plano maleóvolo, se aproveitando da distração criada. O homem não bate bem da cabeça, e praticamente respira crenças de conspirações, ainda acreditando viver nos anos da ditadura, em que um simples cochichar poderia ser tomado como tramoia. Segue ao lado de Geraldo, a lanterna na frente do corpo, iluminando com um facho de luz minguado um pouco do caminho que seguem. Pontos negros podem ser vistos correndo pelos cantos, ratos do tamanho de gatos e baratas solitárias, mas nada de um exército desses insetos em intensa revolta. Geraldo empilha tensão em seu silêncio, e sente verdadeiro ódio do maldito Jacinto e de suas feições tranquilas. É como se ele estivesse fazendo um passeio por um bosque de belas árvores, e não andando por um esgoto fedorento, seguido de perto pela ameaça de uma praga aterradora. É impossível não sentir vontade de socar o velho e fazê-lo mudar de expressão. É terrível estar assustado e não ter ninguém para compartilhar desse sentimento, para torná-lo menos opressivo.

     Chegaram até uma porta de aço, fechada para dificultar o acesso a um setor proibido do esgoto, isolado anos atrás por ter se tornado dispensável, visto que outras ramificações de corredores e canos tinham sido construídas para melhorar a distribuição de toda a sujeira. Não se via cadeado, e quem quisesse entrar nessa ala abandonada, não precisaria de muito esforço para derrubar a porta enferrujada, detonada pelo ambiente úmido em demasia. Pelas frestas, antenas de baratas se mexiam de um lado para o outro, tentando absorver um pouco de informação do que havia nos corredores adjacentes, temerosas em talvez, se arriscarem para fora do abrigo. Algumas passavam por debaixo da porta, e eram logo mortas pelas botas do velho, que as pisava com divertimento nos olhos, rindo e soltando fiapos de baba pela boca muxibenta de idoso. Geraldo suspira entre dentes. Gostaria que tivessem mandado um parceiro melhor para lhe ajudar no serviço, e não um sujeito com a cabeça tão empoeirada por dentro e repleta de teias, que caduquice é algo que não pode ser descartado ao observá-lo sorrir com a boca torta e trêmula. Por certo, lhe faltam alguns parafusos.
— Ha! Que serviço mais besta! Nos mandaram aqui só pra matar umas baratinhas, é isso mesmo? Poxa, deviam ter me contratado só pra fazer isso. Tem coisa mais fácil?
— Não se engane. Estamos aqui para erradicar uma praga. Não creio que serão apenas baratinhas dessas que teremos de matar. Tem coisa grande por aqui.
— Como você é idiota! Acredita mesmo nos absurdos ditos pelos jornais? Pura mentira dos políticos. Estão pensando em algum jeito de meter a mão nos nossos bolsos e querem apenas tirar o foco do povo com essa estória sem pé nem cabeça. Onde já se viu montanhas de baratas infestando uma cidade? Parece até coisa de filme.
— Pense no que você quiser, mas vi isso de perto, na minha casa. A praga existe mesmo. Se eu fosse você, começava a rezar para essas baratas não serem carnívoras quando em um grupo.
— Nunca ouvi tantos absurdos na minha vida! Depois o louco sou eu...

    Geraldo fingiu não escutá-lo, se adiantando para a porta ao mesmo tempo em que pisava nas baratas que saiam pela parte de baixo, enquanto com as mãos, ia puxando as extremidades amassadas da pesada porta, onde era possível encaixar os dedos e firmá-los para tentar abri-la. Estava enferrujada, velha, de maneira que não foi difícil. Abriu com estardalhaço, dando um grito de metal raspando em concreto, e revelando negritude cheia de formas em constante movimento, como uma massa de criaturas unidas em uma só, tal como um organismo, em que cada parte funciona em benefício de todas as outras. Geraldo tremeu ante a esse pensamento e repentinamente, não quis ver o que se escondia por debaixo da camada de sombras que ocultava o corredor e as coisas que se mexiam. Virou-se lentamente para o velho com a lanterna, como se o tempo estivesse parado ao seu redor, lhe sufocando com o arrastar angustiante dos segundos, o impedindo de ser rápido o bastante para evitar o pior. Não queria que a luz revelasse as coisas que se escondiam sob o véu da escuridão, mas já era tarde demais.

    O facho de luz bateu em uma massa negra que se remexia inquieta, viva, composta por milhares, talvez milhões de pequenos insetos com asas e várias pernas, um horror em grande escala, capaz de enfartar donas de casas que por acaso se deparassem com essa aberração. O velho gaguejou ao se deparar com a coisa e antes que pudesse articular algo que lembrasse uma tentativa de reproduzir palavras, sua boca já estava selada por muitas baratas, essas que se desprenderam da massa uniforme e voaram até a goela do senhor, o sufocando aos poucos, entrando para mais fundo em seu corpo, descendo pela garganta e chegando aos orgãos internos do pobre coitado, que caiu na água suja do esgoto se debatendo em uma ânsia desesperada de querer respirar. Morreu em poucos minutos, os fundilhos da calça pesados pelas fezes despejadas por sua carne moribunda, os olhos congelados, ainda tingidos pela descrença e terror, sentimentos que antes eram motivo de piada para o velho. Como foi tolo.

    Geraldo não tentou fazer nada. Largou o veneno no chão e ficou apenas encarando a massa de baratas, o organismo vivo feito de muitos, poderoso em toda a sua unidade, perigoso como poucas coisas que já andaram pela Terra. Esperou pelo seu destino de olhos fechados, já aceitando a morte inevitável. Continuou parado quando sentiu uma centena delas se amontoar por debaixo de seus pés, outras tantas jogá-lo ao chão, de costas, em uma queda que para ele terminaria com toda a certeza, com uma onda de baratas lhe arrebatando e se amontoando em seu corpo, devorando em conjunto sua carne e terminações nervosas até nada restar, nem mesmo ossada para comprovar que já existiu. Estranho perceber que continuava intacto ao cair, chocando-se não com a dureza do concreto, e sim com o mole de várias criaturas transformadas em uma só, sendo carregado como um trapo pela massa que ondulava sob seu corpo, forte em sua peculiar união. Um momento que nunca esperaria vivenciar, nem mesmo nos seus sonhos mais loucos.

      A coisa feita de muitos carregou Geraldo por corredores, galerias gotejantes, e subiu com ele nas costas até a superfície, onde deslizou por ruas desertas pela noite, sendo vista apenas pela lua branca no céu, silenciosa, prometendo nada falar a respeito do que presenciava. O organismo, a massa uniforme de milhões, quem sabe bilhões de baratas, tomou conta de carros estacionados, de vitrines de lojas, cobriu tudo com seu véu negro de várias patas e asas. Os gritos começaram assim que a coisa se dividiu e começou a entrar em cada casa, loja, prédio, dominando aos poucos a cidade, domesticando os que antes se julgavam reis, e que agora conheciam o fim de suas tiranias arrogantes. Geraldo nada falava, apenas apreciava o momento de cima de uma das massas uniformes, sorriso de satisfação brilhando grotescamente em seu rosto. Nada melhor do que estar por cima dos outros. Nunca sentiu-se tão bem em toda a sua vida.

sábado, 1 de março de 2014

Imortal

     Morte é o fim do caminho? Jorge acredita que não. Viu muita coisa para ter desconfianças dessa verdade atirada aos quatro ventos por todos que caminham pela Terra. Céu, inferno, são conceitos que não entram mais em sua cabeça e o fazem se envolver em uma luta íntima de teor filosófico. Real, fantasia, não existe mais uma linha que limite o distanciamento dessas definições. Não consegue mais saber o que é de fato pertencente ao mundo que lhe ensinaram a enxergar desde muito pequeno, onde demônios e anjos coexistiam em eterno combate, e Deus, um senhor de vestes brancas e longa barba, residia na maior das alturas, a tudo assistindo com sua sabedoria infinita. Essa era a sua noção de universo invisível, o máximo que poderia assimilar de fantasia, o que lhe permitiam que pudesse imaginar em sua mente ainda longe de amadurecer. Como poderia pensar que havia algo além disso? Descobriu da pior maneira possível, que existe muita coisa que vai além da ingênua consciência humana e que quando descobertas, podem levar um sujeito normal a mais completa loucura.

   Sua atual residência é no número 198 da rua Otaviano, na pequena cidade de Pontas, em Minas Gerais. Vive em um hospício há quatro anos, em um cárcere que se fez necessário por sua insanidade incurável. Perdeu a linha ao ver-se diante de coisas que fugiam ao seu controle, questões sobre eternidade que nunca antes tinham passado por sua cabeça e que agora desfilam sem cessar por sua mente adoentada, a ferindo ainda mais e alimentando o senso de irrealidade latente em seu íntimo. A maldita ainda lhe surge em pesadelos intermináveis, nos quais desperta com o corpo suado, os olhos arregalados em conjunto com sua boca escancarada, por onde sua alma aterrorizada fugiria se fosse possível. Não pode dizer a si mesmo que o que viu é mentira, pois sabe muito bem que isso seria uma maneira covarde de fugir da verdade. E assim os dois lados de seu eu se digladiam violentamente, o lado racional querendo colocá-lo como um contador de lorotas e sua faceta crente no inexplicável berrando em alto e bom som que o ocorrido não havia sido mero devaneio, e sim, um fato real e incontestável. Difícil se fazer existir como um homem dividido ao meio.

     A culpa é da sua tia Rita. Nunca a tinha levado a sério, não antes do inexplicável ocorrer. Todos da família a viam como a senhora excêntrica, dona de teorias estranhas, ideias de doida que compartilhava com quem quisesse ouvir, mesmo sabendo que seria motivo de piada assim que se calasse. Ela acreditava ser imortal, uma deusa condenada a vagar no meio de meros mortais, seres que nunca conseguiriam compreendê-la. Falava que permaneceria viva após seus conhecidos partirem para o desconhecido, para a escuridão existente depois do último e derradeiro fechar de olhos. A parte cristã da família a evitava, condenando-a ao inferno por dizer tantos absurdos, outros ficavam distantes, temerosos de serem contaminados por tal loucura, e as crianças... elas a seguiam, achando graça da tia biruta.

   Jorge gostava particularmente de escutá-la, se deliciando com as tantas estórias que a tia lhe contava, e ficava deslumbrado com a criatividade dela, curioso em descobrir de onde ela tirava tanta imaginação. Sorria ao ouvia-la falar que havia visto impérios inteiros caírem por sobre a terra, sociedades de tempos passados sucumbirem ao poder inevitável que a modernidade traz ao presente. Rita se colocava como a personagem central de suas narrativas e contracenava com nobres de séculos deixados há muito para trás, sempre a mocinha a viver as mais diversas aventuras, com direito a magia e o que há de mais absurdo em matéria de fantasia. Quando restava apenas silêncio ao término das estórias, Jorge sempre fazia questão de fazer a mesma pergunta, divertido em ouvir a resposta padrão da tia biruta.
— E era você mesma? Como poderia se isso aconteceu há séculos atrás? Ninguém vive tanto.
— Esqueceu que sou imortal? Pra mim nada é impossível. — respondia tia Rita, provocando um desejo irrefreável de rir em Jorge. O garoto se segurava. Ao contrário dos outros, não gostava de ridicularizá-la por nada. A via como doida, mas nem por isso jogava isso na cara dela.

      Certo dia, sua mãe o proibiu de continuar visitando a tia, afirmando que ela era uma péssima influência, alguém que o afastaria do caminho da salvação oferecido pelo bom Deus das Escrituras. Nem tentou discutir. Sua mãe era sempre quem dava a última palavra, a líder natural a traçar as leis que deveriam ser seguidas sem questionamentos dos que estivessem abaixo de sua posição na hierarquia da família feliz, comum a quase todo lar que se preze. Como bom filho que era, obedeceu e nunca mais viu tia Rita, pelo menos não viva.

   Aconteceu um ano depois da proibição da mãe. Os boatos na época foram variados, mas ninguém conseguiu chegar a uma explicação aceitável para a repentina morte de Rita. Alguns diziam que havia enfartado, espalhando por meio de fofocas que a mulher não se cuidava como deveria, comia porcarias a reveria e ficava a maior parte do tempo em casa, não se prestando a fazer sequer uma caminhada de alguns minutos, para pelo menos diminuir os fatores de riscos das doenças comuns a pessoas sedentárias. Outros afirmavam categoricamente que era uma punição do bom Deus, por ela ter levado uma vida de pecados, por negar sem pestanejar a benção de Cristo. A verdade é que nem a medicina conseguiu desvendar o motivo da morte dela. Puro mistério, que instigava a mente de todos e incentivava o surgimento das mais diversas teorias, por mais sem sentido que fossem.

     Apesar dos critícos que conservará em vida, tia Rita teve um funeral caprichado, cheio de belas coroas de flores e presenteada com um caixão com enchimento de veludo, que até os vivos gostariam de ter no quarto para descansar as costas de vez em quando. Muita gente compareceu, a família inteira, tanto os que gostavam dela mesmo que desgostassem de suas excentricidades e até os que por ela guardavam desprezo por sua condição de louca de pedra. No meio da pequena multidão reunida para dar adeus à mulher nascida para ser comentada em rodas de boteco e nas reuniões de família que ocorriam algumas vezes por ano, estava Jorge, o garoto olhando hipnotizado para o caixão aberto, fitando a face imóvel da tia com visível respeito, que poderia ser chamado de temor. Em sua imaginação de criança, a via se levantando como um morto vivo de filmes antigos de terror, correndo de braços abertos na sua direção, gritando o seu lema que naquele momento tanto lhe pareceu macabro, repleto de mórbida veracidade: — Sou imortal. Pra mim nada é impossível!

      Enquanto fitava a face dela em muda reverência, algo de estranho realmente aconteceu. Por um momento, julgou ter visto os olhos da tia se abrirem em lento movimento, as pupilas verdes da defunta voltadas para sua direção, entrando fundo nos seus olhos, penetrando no território proibido de sua mente e ali ficando marcados feito queimadura de fogo na pele. Sentiu-se enjoado, o chão sob seus pés mole como gelatina, tudo irreal demais para seu gosto, como que produto de um sonho descabido e que facilmente desmantela o sentido de qualquer um. Olhou para baixo, acreditando que logo desmaiaria e respirou fundo, querendo poupar-se da vergonha de cair como um saco de farinha no meio de tanta gente. Quando abriu os olhos novamente a ilusão havia passado, mas não o efeito dela.

   Como narrar sua surpresa ao ouvir gritos de desespero partirem do bolo de pessoas que antes velavam em silêncio o caixão, e que naquele instante de total estranheza, corriam de um lado para o outro e instauravam o caos em uma cerimônia que deveria seguir-se tranquila e não traumática. Homens e mulheres faziam uma roda em volta de um sujeito caído no chão, a mão direita firme no peito, ofegando sofridamente, vitíma de um ataque cardíaco violento, que por certo não lhe pouparia a vida. Era seu tio Roberto, com a face avermelhada, os olhos saltados de uma forma que prenunciavam que o pior inevitavelmente ocorreria. Ele gritou em seu último fôlego, palavras que vararam a carne dos presentes e fizeram cada um deles sentir um frio imensurável, fruto do horror de algo que ia muito além da capacidade de compreensão de pessoas acostumadas ao comum e não ao que extrapola o conceito de realidade.
— Ela abriu  os olhos. Imortal ela é! No túmulo não descansará, a morte nunca a levará. Meu Deus, me proteja do mau!

    Ele se calou  e morreu, os seus últimos espasmos de vida se seguindo com violência aterradora, músculos tremendo sem controle e os dentes batendo com tanta brutalidade que a maioria se quebrou e rolou em pedaços pelo piso de madeira da funerária, junto de pingos de sangue fresco. Os que haviam comparecido para o enterro de Rita se dispersaram rapidamente, uma parte fazendo sinal de cruzes com medo real despontando nas feições e alguns poucos se afastando para providenciar a remoção do segundo morto. Choro se ouvia vindo de todas as direções, mulheres gritavam histéricas, o inferno havia se incorporado ao funeral, quebrando a aura de despedida que antes por ali residia. Jorge se afastava dali junto da mãe, o rosto uma máscara de medo. O tio também a havia visto abrir os olhos, então... não tinha sofrido de uma alucinação. Havia sido real, mais até do que a percepção que se tem da própria respiração em momentos de solidão, em que nada mais se revela importante. Teve certeza de que teria pesadelos ao cair desacordado nessa noite.

     Semanas se passaram depois do evento, e Jorge não conseguiu se livrar das recordações do bizarro funeral. O episódio era lembrado principalmente em pesadelos, quando se via abandonado em um enorme salão repleto de candelabros, uma mesa negra atirada no centro do recinto, onde tia Rita descansava inerte, tal o cadáver que deveria ser após ter sido tocada pela morte. Então, ela abria os olhos tingidos pelo verde assustadoramente cor de esmeralda, e lhe fitava demoradamente, provando com um sorriso divertido no rosto, que afinal não era a louca, que sim, era imortal como uma deusa, não perecível aos efeitos predatórios do tempo. Imortal. Maldita palavra que pairava pela mente de Jorge feito folha seca desprendida de uma árvore, rodopiando de um lado para o outro, sem nunca abandoná-lo em definitivo.

       Foi assim por muito tempo. O trauma chegou a se arrastar por sua adolescência, atrapalhando suas experiências sociais. Lembrava-se da face da tia no caixão quando estava sozinho, mesmo quando rodeado de pessoas, por vezes até caminhando pelas ruas da sua cidade, a vendo em vidraças de loja a lhe sorrir zombeteiramente, os lábios tingidos por um vermelho cor de sangue que fazia a vista doer em resposta. Jurava que podia escutar ela lhe gritando, “sou imortal! Pra mim nada é impossível!”e ao ouvir a voz da defunta lhe tocando os ouvidos um grito era algo complicado de conseguir se segurar na garganta, onde deveria ficar sem soar, contido para não denunciar para Deus e o mundo o grau preocupante da loucura que se desenvolvia incubada em sua mente feito um parasita.

     Seus pais perceberam o esforço que fazia para se manter afastado das pessoas, isolado no casulo que havia construído para si, em uma tentativa falha de interromper o processo perigoso de irracionalidade que vinha lhe tomando o espírito. Preocupados com o filho problemático, o encaminharam para ser tratado por um psicológo bem conhecido na região, um profissional tido por todos como capaz de fazer milagres, fazer sumir neuroses em seus pacientes com poucas consultas e o minimo de desgaste possível. Jorge ia para as consultas desacreditado, mas teve de dar o braço a torcer com o passar dos meses. O psicólogo, um homem de meia idade chamado Ramon, era bom de lábia e após ouvir o relato do garoto, conseguiu fazê-lo acreditar que tinha imaginado o episódio, isso sem desprender maiores empenhos nessa façanha. No ano seguinte Jorge era uma nova pessoa, curado completamente do seu passado, pronto para viver como um indivíduo normal. Mal sabia que antigos fantasmas não costumam desaparecer por completo. A coisa ainda sobrevivia em seu cerne, apenas esperando pelo momento oportuno de retornar à superfície.
***
     Jorge tornou-se um adulto comum como qualquer outro, e construiu família com a esposa Selma, com quem teve três filhos, separados por poucos anos de idade em ordem de nascimento. Estava feliz, nada parecia capaz de abalar seu mundo sustentado em puro realismo, moldado por sua mente prática, educada para recusar qualquer conceito que pudesse dar margem à fantasias desvairadas. Nem mesmo religião lhe chamava a atenção, apesar de ter crescido em família cristã. Depois das inúmeras consultas com o psicólogo na infância, qualquer coisa que ameaçasse ir para o lado do sobrenatural era suficiente para lhe causar repulsa. Amadureceu como um cético dos mais radicais que se pode haver.

     É natural que se tornasse um homem infértil para qualquer fantasia. Julgava sua experiência quando criança como um devaneio dos mais extremos, daqueles que acometem um sujeito que use drogas pesadas. Passou a acreditar que naquele dia esteve demasiadamente perto da loucura, a um passo para tropeçar e cair no abismo da insanidade. Temendo perder a linha apenas com o ato de pensar a respeito do assunto, Jorge evitou ruminar a maldita lembrança, mesmo quando os gritos de seu tio alucinado pela visão do impossível, ressoavam com toda a força em sua mente, a prova incontestável do que preferia negar até a morte. O medo era a barreira que o segurava e o impedia de adentrar na densa escuridão da memória. Pelo menos foi por um tempo, até que um dia o dique se rompeu e a corrente poderosa antes retida veio ao seu encontro, sem que nada pudesse fazer para evitá-la.

    Foi em uma noite de verão, em que o sono não vinha, dificultado pela alta temperatura e pela sinfonia infernal dos pernilongos a atormentá-lo. Fechava os olhos e esperava impaciente que adormecesse sem aviso, desejando cair o mais fundo possível no veio de seus sonhos, mas isso lhe era negado e as horas iam passando, em um ritmo vertiginoso, terrível de se suportar. Em certo momento cansou-se de  esperar e levantou-se para tomar um copo de água gelada. Saiu de fininho do quarto, com todo o cuidado possível para não interromper o descanso da esposa.

    Pegou sua água e foi para a janela da sala, e lá ficou observando o quintal da sua casa, dando goles em meio a longos intervalos, sem pressa nenhuma de voltar para a cama. Já eram três horas da manhã e dali há outras três horas teria que sair para trabalhar. Que diferença faria se continuasse acordado? Para ele nenhuma, visto que havia perdido a noite inteira acordado. Não queria nem se imaginar no serviço, se forçando a permanecer desperto para cumprir com suas obrigações. Que longo dia teria!

     Terminou sua água e antes que pensasse em retornar para o quarto, um zumbido saiu das trevas da noite e infestou seus ouvidos. De súbito, a sua sala de estar se desfez como uma cena montada em um palco de teatro, e o que lhe surgiu ante aos olhos foi um portão gradeado escancarado, açoitado por uma chuva furiosa. Uma estradinha de terra perpassava pelo portão e seguia em linha reta por prados de verde escuro, coalhados aqui e ali por flores de várias cores, a maioria cabisbaixa sob o intenso temporal. Criptas terminavam de enfeitar o cenário, junto de imagens de anjos de mãos unidas, em mudas orações que nunca seriam pronunciadas por seus lábios de pedra. Era um cemitério, aliás bem conhecido por Jorge, como o descanso derradeiro de sua tia Rita.

    Quando deu por si, estava novamente na sala da sua casa, e os raios solares se infiltravam descaradamente pelas janelas, iluminando os vãos antes escurecidos pelas sombras profundas da noite passada. Olhou para o relógio pendurado na parede oposta e assustou-se ao perceber que estava uma hora atrasado para o trabalho. Sentou-se no sofá desnorteado, tentando entender o ocorrido, esforçando-se para desvendar o mistério por trás do desaparecimento de horas inteiras durante sua louca alucinação. Lembrou-se de ter parado ali para desfrutar do seu copo de água e de  ter sido envolvido pelo delírio, sentindo-se após ele como que saído de um sonho que dura toda uma madrugada, e só termina com um abrir de olhos impressionado, uma pergunta sendo formulada pela boca mesmo que ela por vezes não desfira as tais palavras no ar, tamanha a perplexidade diante da situação: “— Como o tempo pode ter passado tão rápido?”

   No serviço não conseguia se concentrar. A experiência lhe voltava vivida demais, com a trilha de terra seguindo por entre paragens gramadas e os túmulos contrastando macabramente ao serem tocados pelo brilho ameaçador de raios faiscando em um firmamento negro e sem vida. De fato, era o cemitério onde sua tia havia sido enterrada, em uma época que antes acreditava ter sido renegada ao esquecimento de um passado detestável, que voltava a bater em sua porta, trazendo consigo os seus juros exorbitantes. Desejava do fundo do seu coração, que isso não se tornasse rotina, que todas as noites não se visse de frente para o que queria ter deixado para trás em definitivo. Por mais que clamasse em silêncio para esses fantasmas se manterem afastados, Jorge ao mesmo tempo sabia que isso seria impossível. Não conseguiria continuar fugindo eternamente de seus terrores.

      Semanas se passaram e os delírios se tornaram mais enunciados. Em certa ocasião viu-se arrancado de uma reunião de trabalho e atirado no cemitério, vagando por entre criptas com os nomes desgastados de seus ocupantes, arruinados pela passagem esfomeada do tempo. A surpresa da alucinação não durou muito, pois segundos depois havia retornado para a sala, cercado por homens engravatados a lhe fitarem em busca de respostas para a sua expressão de assombro que nada condizia com a situação. Sorriu amarelo e pediu licença para ir ao banheiro. O que poderia dizer? Que estava enlouquecendo? Sem chance. Com uma família inteira para sustentar, não podia se dar ao luxo de ser afastado do emprego por estar sofrendo de transtornos inexplicáveis.

     Pensou em visitar psicólogos para falar sobre o seu novo problema, mas preferiu guardar o segredo para si mesmo. Não queria compartilhar algo tão íntimo para ninguém, nem mesmo para sua querida esposa, que vinha estranhando seu comportamento assustadiço e por vezes desligado, como se vagasse por outras realidades. Ela não poderia imaginar que pudesse estar tão próxima da verdade. Apesar das desconfianças da mulher, Jorge fazia um esforço anormal para continuar ocultando o que lhe ocorria, mesmo que isso lhe fizesse se sentir solitário, abandonado em terras estrangeiras onde era visto exclusivamente como inimigo. O que poderia dizer? “Querida, ando tendo visões estranhas sabe, coisa de louco, de biruta sem eira nem beira. Isso não é sensacional? O que você acha de espalhar a novidade para as crianças? Elas vão adorar saber que papai delas está doido da cabeça!” Não. Não queria assustar as pessoas que amava com algo que talvez fosse besteira, apenas uma crise de idade que pudesse passar em breve. Manteria-se em silêncio, pelo bem de todos.

    O fim do caminho chegou em uma noite de mormaço terrível, que antecipava uma tempestade, ameaçando a todos por entre nuvens negras a soltarem raios de intenso brilho, que iluminavam a tudo com um único rasgão no firmamento. Jorge estava acordado, pois tinha medo de dormir. Sempre que fechava os olhos via o portão enferrujado do cemitério rangendo em suas dobradiças, o vento soprando continuadamente, perpassando por seus ouvidos como doce melodia, uma canção soprada por alguma criatura além da mortalidade simplória dos pobres humanos. Era uma voz fatal, de atração arrebatadora, que lhe fazia desejar seguir seu rastro sem pestanejar, desconsiderando as consequências perigosas de obedecer o perigoso chamado. E por Deus, Jorge queria mesmo ir ao encontro da dona da voz, independente de estar rumando para sua própria perdição. Chega de fugir. Percebeu que era a hora de aceitar seu destino e enfrentá-lo de braços abertos.
***
     Foi em um sábado. Levantou-se bem cedo e saiu de casa em seu chevett 98, indo para o pequeno município de Pontas, onde havia nascido e passado praticamente toda a infância com a família, o lugar onde sua tia Rita havia sido enterrada, confiada ao seu descanso final. Tinha uma ótima desculpa para empreender a viagem, criada a quatro dias atrás, uma antecedência que não deixava espaço para que duvidassem de suas palavras. Havia dito à esposa que iria para uma reunião em Poços de Caldas, coisa da empresa, que queria espalhar mais filiais pelo restante do estado. Acrescentou ainda que não queria ir, que não suportaria ficar longe da mulher, mas... o dever vem em primeiro lugar, e não pode ser simplesmente desprezado. Ela engoliu a estória direitinho e não falou mais nada a respeito do assunto.

    Enquanto dirigia, as lembranças do passado retornavam sem cessar por sua mente tumultuada, principalmente as do dia do enterro da tia, dos olhos assustadoramente verdes dela, esbugalhados quando tinham de estar fechados para todo o sempre, apagados pela foice imperdoável da morte. Em seu íntimo desejava que nunca tivesse presenciado aquela cena irreal, que por algum azar que não conseguia explicar havia escapulido do terreno frágil dos sonhos para se insinuar no mundo real, ficar gravada em sua cabeça como um hematoma arroxeado que não some por inteiro, mesmo que anos inteiros se passem. Fato ou devaneio? Não tinha certeza de mais nada, e por isso esperava encontrar a resposta para suas angústias no terreno sagrado do cemitério.

     A viagem assombrada por fantasmas de um passado que preferia ter enterrado em definitivo, terminou após longas três horas, que pareciam que não queriam passar, em teimosia que causava aflição ao espírito já abalado de Jorge. Para seu alívio, no horizonte parcialmente coberto por nuvens escuras de chuva, surgiram os pequenos prédios da cidade de Pontas, edifícios em sua maioria de pequeno porte, antigos por estarem ali desde os primórdios da região, mas nem por isso decadentes e perto de ruírem em colunas de poeira e pedras empilhadas. Jorge sentiu o coração disparar no peito ante essa ansiada visão, e pressionou o acelerador com força, desesperado por chegar ao seu destino o quanto antes e encarar a coisa da qual vinha fugindo desde tenra idade.

    Parou antes em uma loja de construção, comprando com algumas notas uma pá de cabo de madeira. Jogou-a no porta-malas do carro e olhou pensativo para o céu, percebendo o quanto ele estava escuro, ameaçador quando cuspia seus ocasionais relâmpagos, urros de fúria da tempestade que logo assolaria os arredores. Entrou no carro e acelerou para a sua última parada, as mãos aferradas violentamente no volante, a ponto de deixar nele as marcas do aperto nervoso. Foram apenas quatro minutos até alcançar a rua onde se podia ver o antiquado portão gradeado de ferro, enferrujado por seu longo período de existência, movendo-se em ritmo ensandecido, ao gosto do vento gélido que soprava vindo das colinas próximas da cidade. Era o cemitério de volta à sua vida, após tanto tempo.

    Estacionou o carro e assim que colocou os dois pés para fora do veículo, a força dos ventos aumentou e soou como o uivo agonizante de algum animal que estivesse ferido e abandonado em uma clareira escura de uma floresta ensombreada. A chuva irrompeu das alturas, em gotas pesadas, que batiam nos ombros de Jorge e os faziam ceder alguns centímetros, como que galgados por anões brincalhões, de humores duvidosos. O homem prosseguiu pela cortina de água gelada, que aumentava de intensidade rapidamente, enquanto raios cintilavam pelos céus acinzentados, explodindo em árvores próximas e inaugurando o caos, que não tinha hora certa para terminar. Debaixo do aguaceiro Jorge agia metodicamente, como se estivesse à passeio em um dia de sol luminoso. Pegou a pá calmamente em seu porta-malas e atravessou o portão do cemitério. Tarde demais para se arrepender e voltar.

     Refez o passeio que vinha fazendo em sonhos e delírios regularmente, a caminhada por túmulos de pedra cinza e criptas enfeitadas por imagens de anjos, guardiões silenciosos dos mortos que ali descansavam. Foi caminhando penosamente pela estradinha sulcada de terra, escorregando no barro formado pela tempestade, que continuava a cair impiedosamente dos céus, como que furiosa com todos os que caminhavam pelo mundo, talvez jurada de fazê-los pagar por alguma ofensa antiga. Jorge estava com as roupas encharcadas, a pele tomada por arrepios decorrentes do frio, mas não  dava mostras de que recuaria. Estava decidido a ir até o fim, mesmo que tivesse muito a perder com isso. Além disso, a voz magnética já lhe soava pelos ouvidos, irrompendo pelo ar pesado de chuva e lhe convidando a ir em frente, a ignorar o resto e obedecer ao chamado. E foi isso mesmo que ele fez.

     Não teve de andar muito. Logo, estava de frente para o túmulo da tia, de onde subia da terra amolecida de chuva, o cantarolar da voz irresistível, que lhe pedia para começar a cavar, fazer seu serviço sem reclamar. Jorge assim o fez, metendo a pá em golpes seguidos no solo, cavando em bom ritmo, assobiando pelos lábios mesmo que nada pudesse ouvir de sua própria canção, tamanha a barulheira infernal da tempestade que continuava a cair, irredutível em parar. Meia hora se passou e a sepultura estava aberta, o caixão de madeira revelado, inchado por culpa da umidade decorrente, o longo período de reclusão nas entranhas da terra. Jorge o apreciou, os floreios talhados em sua superfície que um dia havia sido lustrosa, até seus olhos caírem em cheio em suas extremidades, os lugares onde seus dedos deviam se encaixar para que a tampa fosse arrancada e o interior dele revelado. A voz gritava em seus ouvidos, e exigia que terminasse logo com o que tinha de ser feito. Ele atendeu ao pedido.

    Agarrou com firmeza a tampa do caixão e após quatro tentativas infrutíferas de arrancá-la, na quinta alcançou seu intento e a tirou de um puxão, jogando-a para um canto qualquer da sepultura aberta. Olhou para o interior dele e viu a forma assustadoramente conservada de uma mulher, a pele pálida, mas nem por isso desprezível, carregada de uma beleza mística que ninguém seria capaz de explicar. Os cabelos molhados eram do mesmo tom negro que Jorge recordava-se da infância e os lábios da tia surgiam em um vermelho escuro, cor de sangue. Os olhos estavam abertos e eram verdes esmeraldas, tão vivos como os de qualquer outra pessoa. Lhe encaravam com real racionalidade, inteligência que morto nenhum poderia esbanjar. Jorge gritou ao sentir-se tocado por eles, apalpado como alguém que sofre de terrível abuso sexual.

     Ela lhe segurou pelos pulsos, sorriso de víbora despontando em sua face pálida. Os olhos verdes continuavam fixos nos de Jorge, que aprisionado em um rompante de loucura inconsolável, berrava a plenos pulmões, as veias saltadas em sua pele, os músculos retesados pelo puro terror que corria livre por sua corrente sanguínea. A tia mantinha o contato visual e como se não bastasse, sussurrou por entre os lábios a frase pela qual tanto ficou conhecida e eternizada no seio de sua família. “Eu sou imortal! Para mim nada é impossível, sobrinho querido. Não é uma alegria nos vermos de novo? Dê um beijinho gostoso na sua tia. Estava com saudades”. Disse ela, colando a sua boca na testa de Jorge, que não conseguia parar de gritar, desvairado, perdido nos campos desolados da insanidade, dos quais nunca mais seria capaz de retornar. Acabou perdendo os sentidos, caindo desacordado por cima do ventre da mulher imortal, que gargalhava em intensa alegria, satisfeita por seu retorno triunfal.

    Foi encontrado horas depois, tremendo sentado no caixão, mergulhado até as coxas em água barrenta de chuva. Gemia baixinho, de vez em quando soltava palavras ininteligíveis, que faziam os outros pensarem que estivesse falando em outra língua. A verdade é que ficava parado na mesma posição, olhos fechados, como  que temendo deparar-se com o próprio diabo ao abri-los para o mundo. Os moradores das redondezas que vieram lhe tirar dali, disseram que ele não se cansava de repetir a mesma coisa, como uma vitrola quebrada, que não consegue mais terminar o verso da música. “Imortal, imortal, imortal, imortal, imortal...”

    Jorge não pode mais ter uma vida normal. Entrou em um estado de constante catatonia, abandonado sem identidade, pois ninguém da cidade soube de que família pertencia ou de onde havia vindo. Dele não conseguiam arrancar nenhuma informação, pois seus lábios teimavam em falar frases sem coerência, despidas de qualquer racionalidade, carregadas apenas da loucura que havia constituído morada em sua alma ferida. Sem entes queridos na cidade, acabou sendo internado no hospício local, bancado pelo município junto de tantos outros loucos. Vive agora em um quarto apertado, repetindo sem cessar a palavra que lhe assombra, os braços cruzados no corpo, como uma estátua que represente a decadência a que um homem pode chegar quando desprovido da sanidade. E ele por vezes também grita durante noites que se revelam eternas, quando escuta o arranhar de unhas na janela do seu quarto, olhos verdes cor de esmeralda se destacando no negrume da noite, lembrando-o de coisas que prefere esquecer. Entre sussurros escuta, “imortal...”


sábado, 22 de fevereiro de 2014

Apartamento 423



    Fazia tempo que Jeff procurava por um apartamento para alugar. Havia decidido morar sozinho, cansado de ficar sob o mesmo teto da mãe, mulher neurótica que lhe cobrava um emprego decente, o que significaria abrir mão de seu sonhos, por mais loucos que fossem. Não queria desistir de ser um ator de renome, independente do quanto pudesse ser penosa a caminhada ao estrelato. Verdade que o dinheiro que ganhava representando não cobria quase nada das suas despesas, não servia nem para pagar a fatura alta do seu cartão de crédito, mas mesmo sofrendo tanto para se manter, não descartaria seu dom para as artes para pegar um emprego qualquer de telemarketing, condenando-se ao inferno de uma central de atendimentos. Não. Preferia morrer de fome.

     Sua teimosia irritava sua mãe profundamente, a ponto das brigas se tornarem recorrentes, tão naturais quanto respirar. Assim que chegava em casa após a apresentação noturna no teatro de amadores no centro de Belo Horizonte, era recebido com uma saraivada de palavras afiadas como navalhas, alcunhas que seriam terríveis até para um cão sarnento, a mais leve o apelido carinhoso de vagabundo. Não conseguia nem mesmo responder as maldições de sua mãe, pois ela falava tão rápido, que não restava brecha para retrucar. Não é de se espantar que o rapaz quisesse um porto seguro para se ver livre das garras da megera, antes que um dia perdesse as estribeiras e fizesse algo do qual acabasse por se arrepender.

    Não é preciso dizer que Jeff ficou eufórico ao ver nos anúncios do jornal, um apartamento disponível em um bairro próximo do centro, mais do que bem localizado. Não pode conter a ansiedade e se dispôs a visitar o local no mesmo dia, o coração batendo acelerado, vitimado pela animação explosiva do seu senhor. A manhã nem terminou e já estava sentado em uma das cadeiras da imobiliária que havia feito o anúncio, tomado por uma expectativa nervosa que poderia mata-lo se não tomasse cuidado.

   Um senhor baixo e com barriga inchada de cerveja lhe recebeu em seu escritório, o contrato de aluguel preso embaixo de seus dedos gordos, esperando para ser assinado. Jeff o faria, claro, não lhe restava dúvidas de que queria o apartamento, na verdade nunca houve a mínima indecisão. Mesmo se o lugar fosse marcado pelo sangue de crimes antigos, não mudaria de ideia. Tudo para se ver longe da megera.
— É um lugar muito bem localizado, ponto de ônibus na porta de casa, comércio a minutos de caminhada. O que acha? Não vai perder essa chance, certo?
— É mesmo um apartamento e tanto! O problema é que tenho orçamento apertado, e dependendo do valor do aluguel, será impossível firmarmos um acordo. – respondeu Jeff, desanimado ao recordar-se da pilha de contas que ainda tinha que pagar.
— Não se preocupe com isso! Temos os melhores preços do mercado, duvido que vá achar apartamento tão bom e barato em qualquer outro lugar. Trezentos reais está bom para você?
— Sério? Ótimo! Onde eu assino?
— Muito bem, adoro pessoas decididas, que sabem o que querem. Assine na linha pontilhada e vai ser feliz, meu amigo! — falou o vendedor gorducho, sorriso aberto nos lábios, os dentes impecavelmente brancos expostos e brilhando sob a luminosidade amarelada de lâmpadas elétricas.

     Assinou sem nem mesmo ler o contrato e com os papeis em mãos, pegou um táxi e foi sem perder tempo para o apartamento que passaria a chamar de lar. O metal da chave da porta de entrada surgia reconfortador em sua pele, com uma frieza que tocava fundo em sua alma, a espada que ergueria para declamar sua independência e assim cortar as correntes que lhe prendiam ao reinado de ignorância da megera. Sentia-se livre como um pássaro, a felicidade brilhando em seus olhos, que esquadrinhavam sua nova vizinhança com inquietante curiosidade, ansiosos por conhecerem as ruas que lhe cercariam e os rostos com os quais passaria a trombar em seus passeios de rotina.

     Nada a reclamar do prédio. Era uma construção de cinco andares, pintada em tons amarelos que não mostravam desgaste e nem mesmo o mofo decorrente da chuva. Dispunha de um porteiro de feições gentis, que ficava no turno da manhã e tarde, e outro para a noite, sujeito que em sua primeira visita não pode conhecer. O que falar do apartamento? Ora, melhor impossível. Espaçoso, dois quartos e uma sala de estar que causaria inveja a muita gente. As janelas em sua maioria davam para a vista de uma praça adorável, enfeitada por arvoredos frondosos e flores da estação em constante desabrochar. Do que poderia reclamar? De nada, aparentemente.

    Combinou que uma carreta fosse buscar seus pertences no dia seguinte e antes que uma discussão amarga com a mãe pudesse ganhar proporções, já estava indo embora, sem se dar ao trabalho de olhar uma vez que fosse para trás. A megera tentou lhe agarrar e impedir que fosse, chegando a derramar lágrimas, que para Jeff soaram falsas, mais mentirosas do que as de um crocodilo. Sabia que era só cena da mãe, furiosa por ter perdido a batalha, incapaz de aceitar a derrota. Ignorou a interpretação digna de Oscar dela e foi viver sua vida, sentindo-se leve como nunca antes em sua curta existência.

     Os móveis foram dispostos na sala de estar do apartamento, um pequeno amontoado de bens materiais que havia acumulado em seu tempo de moradia com a mãe, o suficiente para um jovem rapaz. Na sala de estar colocou sua televisão de LCD de quarenta polegadas, que no cômodo vazio pareceu estranha, como que deslocada, dando a impressão de não pertencer ao lugar. Contava com poucos móveis para encher a sala, um deles uma estante com alguns livros, que só não levou para o quarto por achar que ficaria melhor ali, complementando a paisagem sem muitos detalhes. Uma poltrona velha que pertencia ao falecido pai surgiu também como um bom acréscimo, mesmo que estivesse desgastada, com buracos em seus braços, o recheio escapando em fiapos enegrecidos de algodão. Fora esses três móveis, nada mais havia. Percebeu logo que em breve teria de ir as compras e fazer ainda mais contas em seu cartão de crédito quase estourado. Eis o preço que se paga ao se declarar independente.

     Arredou a poltrona de couro negro para perto da parede da direita e seus olhos acabaram captando uma coloração escurecida na tinta branca, uma mancha com perfeitos contornos humanos. Abaixou-se para poder enxergá-la melhor e percebeu que a figura se assemelhava bastante a sombra de uma pessoa que tivesse se sentado recostada bem junta à parede, os braços caídos flacidamente ao lado do corpo e a cabeça tombada para a frente, como um boneco de juntas flexíveis. A curvatura dos ombros estava muito relaxada, dando a impressão de que o sujeito representado ali estava desacordado ou talvez... morto. Um frio percorreu a espinha de Jeff ante a esse pensamento e seu olhar se desviou da misteriosa forma da parede. Talvez fosse paranoia da sua cabeça. Tratou de ignorá-la e cuidar de sua vida.

     Saiu para o teatro e nessa noite apresentou-se para um público pequeno, um bando de adolescentes inquietos em um canto e um casal de idosos que dormiram do início ao fim da peça. Foi embora desgostoso para casa, o pouco dinheiro ganho no dia guardado em sua carteira, míseras quatro notas de cinco reais. No caminho comprou uma garrafa de vinho que correspondia a metade desse valor, bebida de procedência duvidosa, que com toda a certeza lhe daria uma ressaca terrível na manhã seguinte, mas isso não lhe importava. Precisava relaxar um pouco, nem que para isso tivesse que despertar expelindo jatos de vômitos malcheirosos de sua boca. Tudo para afastar as vozes da megera de sua cabeça, ecoando desgraças para o filho rebelde e os seus sonhos de liberdade.

    Adentrou em seu apartamento quase vazio e foi logo apertando o interruptor para acender a lâmpada elétrica. Colocou a garrafa de vinho na bancada de mogno da pequena cozinha ao lado da sala de estar e empenhou-se em procurar por um abridor, vasculhando as gavetas do seu armário embutido, um dos poucos móveis que havia comprado em seus longos anos de estadia com a mãe. Não encontrou o que queria, e sim uma mancha negra nos azulejos, mais ao canto do cômodo, a forma perfeita de uma pessoa estirada ao chão de braços e pernas abertas, cada um apontando para uma direção diferente, como uma bússola que houvesse enlouquecido. Olhou para a silhueta tão assustadoramente humana e sentiu o seu coração acelerar no peito, vítima de uma arritmia que poderia não terminar bem. “O que diabos será essa coisa?”, pensou Jeff, incapaz de encontrar uma resposta boa o suficiente para explicar a origem das misteriosas silhuetas em seu apartamento.

     De súbito, o ruído estrondoso de um tiro ecoou por todo o apartamento, entrando fundo em seus tímpanos e arrancando um grito agudo de sua garganta. Seguido ao primeiro disparo vieram muitos outros, uma saraivada de explosões que deixaram o odor característico de pólvora no ar, além de levantar poeira de reboco, como se os projéteis da arma houvessem trespassado a massa da parede e a esfarelado com o impacto. Jogou-se ao chão por instinto e esperou que os tiros cessassem, fazendo orações que acreditava terem sido deixadas em seus tempos de infância. Assim que o silêncio se apossou do apartamento, Jeff se levantou cambaleante, os olhos injetados, esquecido de sua garrafa de vinho, que jazia estourada por cima da bancada de mogno, um alvo infeliz do atirador desconhecido. Só queria saber o que havia acabado de acontecer.

     Foi para a sala de estar e estancou de imediato ao ver uma poça de sangue escorrendo do ponto exato onde estava gravada a silhueta humana na parede. Jeff fechou os olhos, a respiração irregular, sentindo o terror assomando em seu íntimo, uma criaturinha de focinho longo e presas pontiagudas mordiscando sua mente e estraçalhando com sua serenidade. Por fim abriu os olhos, atemorizado de deparar-se novamente com o sangue brilhoso a escorrer, infiltrando-se nas tábuas de madeira do apartamento e indo gotejar nos andares inferiores, quem sabe na mesa de jantar de uma família reunida e em seus pratos cheios de sopa. Pensamento terrível, que continuou mesmo depois de comprovar com seus olhos que nada havia no piso da sua sala. Limpo como antes. Decidiu que era melhor se deitar.
***
 
Despertou na manhã seguinte crente de ter sonhado com os acontecimentos estranhos da última noite e antes de sair da cama, decidiu que não ficaria pensando nessas coisas absurdas e por certo fantasiadas por sua mente cansada. Arrumou-se e logo já estava nas ruas da cidade, absorto nos problemas que teria de resolver ao longo do dia. Lá para as oito da noite retornou para o apartamento, as lembranças do estranho ocorrido cuspidas de sua cabeça e momentaneamente esquecidas. Tinha coisas melhores nas quais pensar, uma delas a garota morena de belas coxas que havia conhecido na fila do banco e da qual havia ganhado o número de telefone. Estava eufórico demais com o possível encontro para ficar refletindo a respeito do que deveria ter sido mero devaneio.

   Assim que colocou os pés em seu apartamento, decidiu que precisava tomar um banho e tirar o cheiro desagradável de rua. Encheu a banheira e se jogou na água morna perfumada por sais. Deixou o corpo relaxar, o queixo tocando a espuma branca, os músculos amolecidos pelo contato refrescante da água, capaz de curar dores. Fechou os olhos e entrou em um estado de sonolência que ameaçou lhe arrastar para um sono profundo, nas maravilhosas Terras do Sonhos. Quando estava perto de realmente adormecer, a percepção de ter um dos braços agarrado por dedos lhe fez abrir os olhos de uma única vez, arregalados em um desespero mudo que não pode sequer ser manifestado, pois no segundo seguinte já estava submerso na água cheirosa, se afogando como uma criança que é deixada sozinha na banheira. Entregou-se a uma luta sofrível pela vida, os braços se debatendo furiosamente, derramando água por todos os cantos e tentando escapar do aperto invisível da entidade desconhecida. Nesse momento, Jeff acreditou que morreria e viu suas memórias passando feito um filme por sua cabeça.

    Em uma desesperada demonstração de força, Jeff pulou para fora da banheira e caiu esparramado no piso de azulejos do banheiro, cuspindo água e tossindo dolorosamente, ansiando por ar como um peixe que teve azar de ser pescado. Vomitou o líquido em excesso do seu estômago e levantou-se tonto, procurando entender o que havia acabado de lhe ocorrer. Enfiou a mão na banheira com medo de ser agarrado novamente, e como isso não ocorreu, tirou o tampão para a água escoar pelo ralo, até que ela ficasse vazia e o seu fundo pudesse ser visto. Na superfície de pedra branca dela havia outras das silhuetas humanas, a forma de uma pessoa com os membros voltados para uma mesma direção, como que inertes, endurecidos pela violência de uma morte cheia de sofrimento. Ficou zonzo ao deparar-se com a imagem inesperada e o desejo de tomar um banho deixou de ser uma prioridade. Abandonou o banheiro se decidindo por encher a cara no boteco mais próximo.

    Foi para um bar chamado “Louras Geladas”, onde pediu logo de cara uma dose de cachaça, planejando ficar bêbado o suficiente e cair em um estado de letargia que o impossibilitasse até mesmo de sofrer de alucinações. Mal o copo foi depositado na sua frente, a bebida já descia por sua garganta, a queimando de forma tranquilizadora, ajudando-o a afirmar que ainda estava lúcido, inserido na realidade. Após a terceira dose, os pensamentos mostravam-se turvos e o episódio da banheira começava a ficar distante, uma recordação agourenta imersa nas profundezas do lago negro de sua mente angustiada.  Quando partia para a quarta dose, um homem encurvado e de bigode mexicano no rosto sentou-se ao seu lado, pedindo uma cerveja com um tímido erguer de mão. Virou-se para Jeff, e como se o conhecesse de longa data, foi puxando assunto com a maior naturalidade do mundo.
— Você é o novo morador do apartamento 323 do edifício Cervantes?
— Sim. — respondeu Jeff, olhando desconfiado para o estranho. — Como sabe disso?
— Me contaram. Sabe como o pessoal costuma ser fofoqueiro, ainda mais em se tratando da vida alheia. — disse o sujeito com bigode mexicano, bebericando um gole da cerveja que foi colocada na sua frente. — Gostou do apartamento?
— É agradável. — respondeu Jeff, recordando-se do episódio da banheira e sentindo uma tremedeira alucinada varar seu corpo de alto a baixo.
— Não parece estar muito certo disso. Aconteceu algo estranho?
— Talvez... bem, eu não sei explicar e mesmo se tentasse, você provavelmente me chamaria de louco. Não vai acreditar em mim.
— Pode tentar companheiro. — disse o homem do bigode, com um sorriso enigmático na face. — Não me surpreendo com nenhuma estória que me contarem sobre aquele apartamento. Nada mesmo.
— O que você quer dizer com isso?
— Não sabe dos suicídios? — perguntou o sujeito do bigode, notando o quanto os olhos do Jeff saltaram nas órbitas, em completa surpresa. — Pelo visto não. Bom, já que comecei o assunto vou termina-lo. Foram mais ou menos uns cinco ocorridos dentro do apartamento, e me atrevo a arriscar que cada um dos cômodos foi palco de pelo menos uma morte. Um afogado no banheiro, outro com a cabeça estourada por uma bala na sala de estar, uma com o pescoço cortado no quarto... se aquelas paredes falassem, contariam coisas terríveis para quem quisesse ouvir.
— Está brincando comigo? — questionou Jeff, inquietude gritante em suas feições perturbadas.
— E eu brincaria com um negócio desses? Por acaso tenho cara de palhaço?
— Acho melhor eu ir embora. Não estou me sentindo bem. — disse Jeff, tomando o copinho de cachaça a sua frente de um só gole e se levantando apressado, sem preocupar-se em despedir-se do importuno companheiro.
— Tudo bem. Nós vemos por ai, pelo menos assim espero.

    Foi para o apartamento desesperado por cair em sua cama e de lá não sair até o raiar da próxima manhã. Nada de ficar pensando em baboseiras, lendas urbanas que por certo eram mentiras inventadas por um sujeito bêbado e com as ideias desconexas na cabeça. O episódio da banheira? Um delírio criado por sua mente cansada, sedenta por um adormecer de horas para se recuperar da fadiga da nova rotina que havia escolhido para si. Tinha que ser essa a explicação para os fenômenos que vinha enfrentando ultimamente. Quem sabe, talvez estivesse ficando louco, precisando de férias no hospício mais próximo. Agora, encarar o ocorrido como real, não, isso já era demais. Nunca acreditou no sobrenatural, e não começaria a fazer isso de uma hora para a outra.

    Jogou-se na cama e fechou os olhos de imediato, sentindo-se acolhido pela escuridão do quarto. Estava um pouco bêbado pela quantidade de cachaça ingerida e em questão de minutos estava ressoando ruidosamente, feito uma turbina defeituosa de avião. Sua consciência foi tragada para a irrealidade de um sonho, no qual se via sentado na beira da cama olhando para uma mulher sentada em uma cadeira à sua frente, uma jovem de cabelos negros e vestida em uma camisola quase transparente, que se grudava a silhueta do seu corpo e dava destaque aos seus contornos delicados, aos seios pequenos. Ela olhava pela janela com as feições entristecidas, vislumbrando o nada na esperança de enxergar um sentido em sua vida miserável. Na mão direita segurava uma faca cuja lâmina afiada brilhava ao toque do luar que se infiltrava pelas frestas da janela. O reflexo era rubro, da cor do sangue que verte de uma ferida recente.

      Ela olhou por um segundo para Jeff, com sorriso lunático despontando em seus lábios vermelhos, o batom borrado, dando a impressão de que tivesse acabado de se empanturrar com amoras. Levantou a faca na altura do ombro e a cravou com todas as forças no próprio pescoço, fazendo um jato de sangue explodir pelo corte aberto e tingir as paredes mais próximas, por onde escorreram até empoçar no chão. Jeff gritou ante a essa cena, o horror crescendo em suas entranhas ao notar a maneira como a cabeça dela caia para trás, em um ângulo torto, impossível de ser imitado, as dobras da pele se separando e os ossos perdendo contato, até a espinha se quebrar com um ruído seco que lhe lembrou um galho se partindo sob a pressão de mãos musculosas. A cabeça da mulher caiu rolando pelo carpete do quarto, indo se perder na escuridão debaixo da cama. O corpo dela levantou-se e caminhou desnorteado de um lado para o outro, feito uma barata decepada que ainda corre pelos cantos pelo efeito dos seus últimos espasmos de vida. O cadáver veio com os braços estendidos na direção do Jeff, que berrava como uma criança aterrorizada, ansiosa por se ver livre da trama sombria de seus próprios pesadelos.

   Acordou com um berro sufocado na garganta. Sentou-se na cama suando frio, olhando ao redor com medo de deparar-se com a jovem decepada. Ficou aliviado ao ver que o quarto estava vazio a não ser por... levantou-se da cama, o coração disparado no peito, apertando os olhos para tentar enxergar melhor a vaga forma na parede próxima da janela, uma mancha escura que tinha a exata forma de uma pessoa sentada com a cabeça tombada para o lado, uma terrível caricatura da jovem que havia visto em seu pesadelo noturno. Sentiu-se sem ar e saiu correndo do quarto, escorregando em algo viscoso no chão e se estatelando pesadamente, o ombro batendo na quina da cama e explodindo em galáxias inteiras de dor. Olhou para o piso e viu sangue vindo de debaixo da cama, uma poça grande o bastante para cobrir a sola inteira de seus pés. Gritou como nunca e saiu dali com a calça marcada na frente por um círculo úmido de urina.

   Da sala foi direto para a porta de entrada do apartamento, decidido em retornar para a casa da mãe, mesmo que tivesse que continuar pagando os aluguéis firmados por contrato por alguns bons meses. Se amaldiçoou por ter sido tão precipitado em suas decisões e mais ainda por ter sido um péssimo filho. Talvez sua mãe tivesse mesmo razão, a carreira de ator era um erro, nunca seria capaz de lhe dar o dinheiro suficiente para se sustentar futuramente, para ser um homem independente como sempre sonhou. Quem sabe deixasse o teatro de lado e conseguisse um emprego sério, algo que desse grana. Ninguém vive de sonhos, eis a frase mais famosa da megera, que agora lhe faz todo o sentido do mundo. No futuro pode ser que retome sua carreira de artista, mas por hora, a única coisa que quer é sua antiga vida de volta e estar a quilômetros de distância do maldito apartamento.

   Colou a mão direita na maçaneta da entrada e tentou girá-la para o lado, surpreendendo-se ao notar que ela mal saia do lugar, afixada no mesmo ponto por alguma força contrária desconhecida. Chutou a madeira da porta furioso, como um animal enjaulado que resolvesse querer recuperar a vida selvagem que lhe foi roubada. A golpeou freneticamente, mas a única coisa que conseguiu em troca foi ferir os dedos e desgastar-se. Deixou a porta de lado, forçando a mente a trabalhar em alta velocidade, as engrenagens girando rápido demais, a ponto de levar os circuitos mentais a um curto irreparável. Suor escorria por suas axilas, pela fronte, uma espécie de nervosismo pisoteava sua tranquilidade e o colocava muito perto de um ataque de insanidade. Lembrou-se do seu falecido tio Carlos, morto por um momento estressante que rompeu todos os vasos sanguíneos do seu cérebro. Não seria um absurdo pensar que pudesse ter o mesmo destino.

    O som ensurdecedor de um tiroteio surgiu do vazio de sua sala e entrou fundo em seus ouvidos, fazendo-o gritar de surpresa e terror. Olhou para a direção do ruído e viu a forma de um homem parada no centro da sala, um vulto vago com um dos braços levantados na altura da cabeça, a forma de uma arma calibre 32 despontando do que parecia ser uma de suas mãos. O dedo da aparição apertava o gatilho sem parar, fazendo soar a cada vez que o pressionava o som de um disparo, que explodia a cabeça sombria dele e espalhava pelos arredores sangue feito de sombra, que escorria pelos poucos móveis e se concentrava no chão na forma de grandes poças. Para Jeff esse foi o limite do que sua consciência sempre realista e descrente de fantasias poderia aguentar. Saiu correndo da sala para o quarto, com um plano de fuga desesperado já articulado em sua mente.

   No corredor que ligava a sala ao banheiro e ao quarto, trombou com a forma cambaleante de um homem encharcado, gotejando água pelo piso e deixando marcas de suas passadas por onde pisava. As feições da aparição estavam enegrecidas, os olhos envoltos por uma camada amarelada semelhante a pus seco. A coisa abriu a boca e vomitou um jato de água negra e malcheirosa, que foi se perder nos pés de Jeff, que com um grito, passou correndo pela aparição e adentrou em seu quarto, os olhos fixos na janela escancarada, lhe convidando para um pulo no abismo, a um voo rápido até a calçada lá embaixo. Por um momento não teve certeza do queria fazer, mas ao vislumbrar a jovem com a faca ensanguentada sentada na cadeira ao lado da cama, suas convicções voltaram com força total. Tinha que pular. Era isso ou enlouquecer dentro do circo de horrores em que seu apartamento havia se transformado.

      Passou pela jovem no exato momento em que ela cortava o pescoço com a faca e fazia esguichar sangue pelo quarto, um véu vermelho que tingia a tudo que tocava. Jeff subiu no umbral da janela e olhou de esguelha para baixo. Quatro andares, alguns metros até o chão. Deixou um pé tocar o vazio, retornando logo em seguida com ele para dentro, o corpo tremendo descontroladamente, a boca seca pelo medo de altura. Olhou para trás e viu a cena do pesadelo se repetindo, o pescoço da mulher tombando para o lado, os tecidos da pele perto de se romperem e a vértebra se quebrar, deixando a cabeça rolar livre para algum canto escuro qualquer, onde talvez nunca mais pudesse ser encontrada. Não precisava ver o resto. Na verdade, não queria ver mais nada. Pulou de olhos fechados, ao encontro da sua salvação.


   O zumbido do vento lhe ensurdeceu e não houve sequer tempo para pensar em qualquer coisa. A única imagem que surgiu em sua mente foi a da sua mãe lhe gritando impropérios, um filme rápido dos melhores momentos da megera, que conseguiram encher seu coração de raiva e saudades ao mesmo tempo. Por fim ela lhe surgiu chorosa, pedindo em meio ao pranto para que o filho não lhe abandonasse, não virasse as costas e a deixasse sozinha, fadada a aguentar os próximos anos de sua vida em constante e incômoda solidão. Lembrou-se de a ter ignorado e seguido em frente, mal escutando as maldições que ela lhe atirava. Dizem que praga de mãe pega e nada no mundo é capaz de salvar um homem delas. Jeff chegou a pensar que tudo o que lhe acontecia era fruto de uma praga das boas, um feitiço odioso da velha bruxa que havia lhe dado à luz, porém antes que seu raciocínio pudesse continuar, seu crânio chocou-se com o concreto e tudo o que se seguiu foi profunda escuridão.

sábado, 27 de abril de 2013

Na cama com A Coisa


  Conheceu um rapaz diferente dos outros. Esse era o seu sonho e diga-se de passagem, o de muitas outras mulheres. Ao contrário do cafajeste que havia lhe traído com metade das que se diziam suas “amigas”, esse era um sujeito responsável, sério o bastante para querer um compromisso. Se conheceram em uma balada da faculdade e o romance de uma noite germinou e tornou-se algo especial. Gostava do jeito que Sebastião lhe tratava. Sabia ser atencioso e lhe escutava sempre, pronto para oferecer conselhos valiosos e cariciais em pontos estratégicos, que despertavam em Carla toda a sua malicia sexual mais faminta. Em outras palavras era um expert na cama.

  Não demoraram a marcarem um encontro em um motel e darem inicio a fase sexualmente ativa da relação. Todos os finais de semana, reservavam um quarto em um motel razoável do centro de Belo Horizonte e passavam a madrugada acordados, desfrutando das habilidades sexuais de cada um, em um jogo que se prolongava por horas a fio, sem cessar. Sebastião aprendeu a leva-la ao delírio de milhares de formas diferentes, surpreendendo-a a cada novo encontro. Em dado momento, Carla começou a sentir-se dependente do parceiro. Não servia apenas o sexo de final de semana. Precisava do vigor incansável de Sebastião, todos os dias. Era como estar viciada em uma droga pesada, extremamente sedenta pelos prazeres de seu uso.

  Nunca havia sido adepta do sexo anal. Havia experimentado uma vez, tendo saído bem dolorida da experiência, com dificuldades para se sentar durante quase uma semana inteira. Ao lado de Sebastião, tinha se encorajado a tentar de novo. Não sabia explicar a gama de sensações que lhe envolveram, após o ato com seu fantástico parceiro. Ao ser cavalgada, penetrada impiedosamente pelo insaciável parceiro, Carla havia sentido um prazer estonteante, impossível de ser descrito em palavras. Ao terminar, deitou-se suada na cama e após alguns breves minutos de descanso, pediu por mais, ainda mais fogosa do antes. Em uma única noite, transou tantas vezes que acabou perdendo a conta.

  Quando estava no trabalho, a mente viajava para longe, voltando para o quarto de hotel no centro de Belo Horizonte, que havia se tornado a sua segunda casa. Ansiava sempre por mais. Longe de Sebastião, seus pensamentos vagavam pela incoerência de um desejo que nunca morria. A rotina de seu cotidiano era tediosa, e Carla via-se contando as horas para um novo encontro. Sentia-se como que presa em um daqueles romances eróticos de banca de jornal, no qual esperava nunca chegar ao fim. Pena que nada é eterno. Em certa noite enluarada, recebeu uma mensagem de texto de seu parceiro, convidando-a para mais uma noite de sexo desenfreado, dessa vez, em novo endereço. Se encontrariam na casa de Sebastião. Foi animada para o destino, tentando imaginar que tipo de surpresas lhe estariam sendo reservadas.

  Sebastião morava em um bairro distante do centro, em uma região bastante inóspita, um conjunto de casas cuja maioria estava abandonada.  Era um casebre pequeno, não muito confortável. Estava imerso em sombras quando Carla chegou. Bateu na porta um tanto receosa, temendo ter errado de endereço. Tal temor desapareceu assim que viu Sebastião parado junto à porta, sorrindo-lhe de maneira maliciosa. Convidou-a para entrar, e antes que qualquer palavra pudesse ser trocada, já lhe tirava a roupa sem cerimônia, atirando-a na cama com tanta intensidade, que chegou a lhe machucar as costas. Tentou reagir diante da brutalidade do parceiro, mas seus braços foram imobilizados e as pernas abertas. Estava à mercê de Sebastião. Foi penetrada com tamanha violência, que ao invés de sentir prazer, berrou como se estivesse sendo espancada. Ninguém ouviu seus gritos desesperados. Estava em uma vizinhança fantasma, onde não havia uma única alma viva para lhe socorrer.

 Ao término do ato, Carla escorregou lentamente para a inconsciência. Antes da escuridão lhe envolver, ela ainda sentiu o contato das mãos do parceiro em sua pele. Era como algo viscoso lhe tocando, uma superfície amolecida, que a fazia pensar em esponja molhada apodrecida.  Olhou para o rosto de Sebastião e o que enxergou foi apenas um vulto verde, uma face grotesca, que dava a impressão de estar escorrendo, como cera derretida de uma vela a arder. O parceiro tinha olhos vermelhos cor de sangue. Acreditou estar delirando e fechou os olhos com força, perdendo-se no negrume do desmaio que lhe acometeu em seguida.

  Despertou no dia seguinte com os raios solares incidindo diretamente em seu rosto, fazendo os seus olhos arderem incomodamente. Estava jogada na cama como uma boneca maltrapilha, com as vestes rasgadas e manchadas de sangue; os cabelos desgrenhados, dando a ela um aspecto de foragida do hospício. Sua virilha doía terrivelmente, como se tivesse sido espancada com um pedaço de pau. Lembrou-se da noite anterior, da maneira como Sebastião havia lhe penetrado com selvageria, como se estivesse tendo relações sexuais com um pedaço de carne qualquer. Levantou-se sofridamente, percebendo o quanto o quarto onde estava era pequeno e escuro. Deixou o cômodo, procurando o parceiro desesperadamente, constatando que havia sido simplesmente abandonada. Desabou no sofá, em um choro incontido.

 Ficou entregue ao seu pranto doloroso por alguns minutos, até que percebeu uma ardência estranha em seu ventre. Era como se algo estivesse lhe chutando de dentro do corpo, forçando passagem para libertar-se do cárcere da carne. Olhou para sua barriga e assustou-se ao vê-la grande e redonda, como a de uma gestante de pelo menos quatro meses. Correu até o banheiro, olhando-se no espelho com assombro. Como algo assim poderia ter acontecido? Estava grávida? Nunca havia ouvido falar sobre um feto que se desenvolvesse com tanta velocidade. Enquanto pensamentos desordenados passavam por sua mente aterrorizada, uma pancada acometeu seu ventre com violência, fazendo-a trincar os dentes e soltar um grito atormentado. Algo estava tremendamente errado.

 A dor era tanta, que seu corpo desabou ao chão fragilizado, adotando uma posição fetal, como se assim o sofrimento pudesse ser controlado e amenizado. Berrou com todas as forças, clamando por uma ajuda que nunca viria. Sangue escorreu de sua vagina, ensopando o assoalho gasto do banheiro. A pele por sobre o ventre repuxou-se, como se algo estivesse tentando rompê-la. Uma dor lacerante acometeu-lhe o útero, privando-lhe de forças para gritar. Desmaiou, deixando-se envolver pela escuridão.

  Acordou no sofá da sala. A noite já seguia alta do lado de fora da casa. Sentou-se desnorteada, alisando distraidamente a barriga. Parecia ter crescido um pouco mais, apresentando-se estufada, como a de alguém que acaba de empanturrar-se com comida pesada. Passou os dedos pelos lábios e notou sangue seco. Levantou-se com dificuldade, caminhando como uma quase inválida até o banheiro, sentindo pontadas violentas acometerem o seu ventre. No caminho tropeçou em algo que estava caído no chão. Olhou para baixo e viu vísceras espalhadas, ossos e o crânio de um gato rachado ao meio, ainda com pelo grudado em sua superfície alva. Gritou aterrorizada e antes que pudesse fazer qualquer coisa, desmaiou novamente, perdendo-se em um vagalhão de inconsciência.

  Despertou durante a manhã no chão da sala. Onde haviam vísceras, nada mais restava. Alguns ossos viam-se espalhados pela casa, mas o crânio do gato havia desaparecido. Sentou-se no sofá, sendo tomada por imagens desconexas, de um sonho distante, que talvez houvesse surgido durante seu sono tumultuado após o desmaio. Viu-se caminhando por ruas escuras, seguindo o rastro que vagueava pelo ar na forma de um cheiro doce, irresistível às suas narinas. Parou diante da janela de uma casa as escuras, adentrando no recinto como um experiente gatuno. Havia um berço no quarto iluminado por luzes coloridas, na forma de personagens de desenhos infantis. Nele repousava um pequenino bebê. Agarrou-o pelo pescoço, impedindo-o de gritar, e arrancou-o do aconchego da casa dos pais, que só mais tarde foram perceber que o filho havia sido levado. Nesse ponto, o sonho de Carla se perdia em completa negritude.

 Esbugalhou os olhos, aterrorizada pela compreensão que tarde chegava. Correu pela casa, a procura de algo que não queria ver. Adentrou na cozinha e viu por sobre a mesa roupas pequenas, manchadas de sangue, vestes do tamanho das usadas por bebês. Um sapatinho jazia caído ao chão, com um pezinho cortado na altura do calcanhar preenchendo-o, uma lembrança desagradável da noite anterior. Carla gritou ensandecida, ajoelhando-se e vomitando um jato amarelado e fétido. Desfaleceu, mergulhando em um sono sem sonhos.

  Abriu os olhos, piscando diante dos raios alaranjados da tarde que morria. Tentou se levantar, mas não conseguiu nem mesmo se mexer. O ventre despontava enorme, tensionado a ponto de explodir. Uma dor lacerante lhe envolveu de imediato, arrancando-lhe berros de verdadeiro sofrimento. Cuspiu uma golfada de sangue, que foi se perder no metal branco da geladeira, escorrendo até o assoalho da cozinha lentamente. Um ruído de carne sendo subitamente rasgada irrompeu pelo cômodo, seguido de um grito estridente, que ressoou por cada parede da vizinhança fantasma. Sua barriga abriu-se ao meio e dela saiu uma criatura de aproximadamente sessenta centímetros de altura, de olhos vermelho escarlate e pele esverdeada. A coisa arrastou-se por cima de Carla, aproximando-se de seu rosto, fitando-a com curiosidade. Lambeu sua face contraída pelas dores dos minutos finais de vida, e lhe mordeu a bochecha, arrancando um pedaço generoso de carne. Carla não mais gritou. O banquete estava servido.