Todas as noites mantenho-me no mesmo lugar, no alto de um prédio colossal,
no centro da cidade de Belo Horizonte, apenas observando o movimento, admirando
a lua, bela, um astro consagrado aos apaixonados, ou aos amaldiçoados. Faço
parte desse segundo grupo. Não posso taxar minha sina apenas como uma maldição.
Me concedeu alguns séculos prazerosos de vida. Vida também não é uma palavra
muita correta para indivíduos que se encontram na minha situação. Em realidade,
muitos me classificam como um morto vivo, amante da escuridão, ser das trevas,
um demônio sanguinário. Talvez eu seja mesmo. Não me importo de ser chamado de
nenhuma dessas coisas. Acabei me acostumando. Faz tempo desde que deixei ser
humano, de maneira que nem ao mesmo me recordo de como era ser alguém normal.
Foi ainda no século 18, durante uma expedição francesa em terras
brasileiras. Sou europeu. Fui parar nessas terras por um acaso do destino.
Havia vindo apenas por curiosidade, disposto a conhecer a fauna rica desse
lugar. Era um biólogo renomado no meu país. Respeitado por todos. Tinha uma
família linda, uma bela mulher ao meu lado. Ela se chamava Rita. Tenho saudades
dela. Nosso vínculo afetivo foi cruelmente destruído. Em nosso navio, havia um
homem um tanto estranho. Ficava apenas no interior da embarcação. Dizia não ter
um estômago muito preparado para encarar o balançar incessante das águas do
mar. Pelo que me recordo o bendito não se arriscou a tomar sequer um banho de
sol no convés. Tinha seus motivos o maldito. Devo acrescentar que agora enfrento o mesmo
problema. Que falta sinto de uma caminhada relaxante durante o entardecer. Bons
tempos.
Fui sua primeira vítima. Na última noite de viagem, resolvi ir até a
proa observar o mar. Era algo que me deliciava. O movimento suave das ondas se
quebrando contra a madeira do navio. Algo demasiadamente comum, mas que me
fascinava. Sempre fui muito ligado a natureza, sendo um observador nato dessa
maravilha de Deus. Passava horas nessa diversão, acompanhado de uma boa bebida,
velha parceira. Apesar de não ser mais um humano, ainda conservo o mesmo gosto
pelo álcool. Delicioso. Meu paladar continua apurado, devo confessar que até
mais do que o normal. Seria uma boa explicação para entender o motivo pelo qual
seres como eu, sentem tanto prazer ao saborearem alguns goles de sangue. Que líquido
maravilho. É a única coisa capaz de saciar minha fome e sede ultimamente.
Estava eu, absorto em milhares de
pensamentos, tragado pela ansiedade em desembarcar nas terras brasileiras, defrontar-me
com toda a sua beleza natural, sua imensidão verde, que como sempre ouvia falar
e confirmei pessoalmente, é vasta e bela. Não percebi a aproximação do homem
que mudaria a minha vida para todo o sempre. Não tive nem chance de reagir.
Quando notei sua presença, seu par de presas reluzentes e extremamente afiadas,
já penetravam em meu pescoço, fazendo um jato de sangue espirrar, manchando por
completo as minhas vestimentas. Foi bastante rápido. Quando dei por mim, já
estava caído no chão, manchado de vermelho da cabeça aos pés, a ponto de
desmaiar. Me recordo bem da sensação inédita que experimentava em meus últimos
momentos como humano. Era como se cada pedaço de meu ser queimasse, como um
carvão em brasa. Uma febre poderosa, a qual nunca havia tido o desprazer de experimentar.
Então, vieram as trevas. Quando despertei, já não era mais o mesmo.
Acordei em minha cabine, um tanto desorientado, perdido. Ao meu lado,
estava Rita, minha amada. Tinha uma expressão preocupada em sua face,
apreensiva. Assim que percebeu meus olhos aberto, abriu um sorriso brilhante
nos lábios, e começou a me beijar, desesperada. Senti cheiro de medo em seu
corpo. Um odor incômodo, repulsivo. Um outro aroma também se misturava a esse
primeiro, doce, extremamente suave. Despertou em mim um desejo incontrolável, uma
vontade insana de agarrar minha mulher e lhe rasgar a carne, como um animal
selvagem, indomável. Senti-me torturado por esse cheiro, pela proximidade a
qual estava sendo submetido a ela, uma aproximação perigosa, fatal. Não resisti
aos meus novos instintos. Agarrei Rita com violência pelo cabelo, deixando o
seu pescoço exposto, pronto para ser penetrado. O perfurei com minhas presas
recém adquiridas e suguei o máximo de sangue que fui capaz, levado por uma fome
insaciável, um prazer demoníaco, assustador. Quando voltei a pensar
racionalmente, já era tarde demais. Rita estava branca como cera, e sangrava
descontroladamente. Um arrependimento gélido dominou o pouco de emoções que
ainda me restavam. Apesar de triste, arrasado por dentro, sequer uma lágrima
rolou de meus olhos. Naquele momento, percebi que não era mais um biólogo cheio
de ambições e com uma família feliz ao seu lado. Havia me tornado um monstro,
para toda a eternidade.
Depois daquilo, desapareci, me misturei à multidão. Nunca mais ouviram
falar em mim. Tornei-me um cidadão brasileiro. Vivo agora em um apartamento no
centro de Belo Horizonte, de frente para o belo parque municipal. Que lugar
maravilhoso. Fico observando aquelas belas árvores, e sinto falta da vida que
levava no passado. As coisas poderiam ter sido bem diferentes. Infelizmente,
nada acontece da maneira que esperamos. No entanto, me considero feliz, apesar
do pesadelo que vivo desde muito tempo. Eu poderia já estar morto, mas ao contrário
disso, sigo respirando como qualquer outra criatura. Sou apenas privado de
caminhar livremente enquanto o sol não se por. Não me incômodo com isso. A vida
noturna sempre foi mais interessante, divertida, mesmo em meus tempos de
humano. Além disso, é nesse horário que posso vê-la, desprotegida, pronta para
ser surpreendida. Um alvo fácil. Não me atrevo a feri-la. Pelo menos, enquanto
ainda conseguir manter meu controle.
Bela mulher. Mora do outro lado da rua, também em um apartamento.
Elegante, assim com Rita era. Foi paixão a primeira vista. Dizem que vampiros
não tem sentimentos. Discordo. Devo ser uma exceção. Sentimos emoções de uma
maneira diferente, inaceitável para os outros, mas não somos apenas um pedaço
de carne ambulante. O que nos dá prazer é o desespero na expressão de uma
pessoa no momento em que lhe surpreendemos, na hora em que estamos prestes a
lhe tirar a vida. É muito gratificante. É o mesmo que os caçadores sentem
quando partem em suas aventuras, com a diferença de que não somos tão bem
compreendidos como eles.
É jovem, pelo que posso perceber. Tem cara de menina. Aposto que ainda
não deixou a adolescência. Apesar disso, ostenta uma expressão digna de mulher
feita, um olhar poderoso, sedutor. Me deixa enlouquecido. É uma pena que meus
desejos carnais tenham se apagado após minha transformação. Queria poder ainda
sentir o tesão humano. Deitar-se com mulheres estonteantes era minha rotina no
passado, mas agora, contento-me apenas com alguns bons pescoços. Queria tanto
poder voltar a ser vivo. Quem sabe, viver novamente uma paixão. Trataria essa garota
como uma verdadeira dama, com muito carinho. Não me atrevo a me aproximar
demasiadamente. Tenho medo de machucá-la. Gosto de observá-la enquanto dorme, é
a maior satisfação de minhas noites. Perder essa distração seria terrível. Um
golpe duro em minha tediosa eternidade.
Continuo no alto desse prédio, observando a garota dormir em seu quarto,
pela vidraça da janela. Por morar em um andar elevado, creio que ela não se
preocupe com sua segurança. Um tanto improvável que algum louco adentre em seu
quarto pela janela. Seria para um vampiro? Não. No entanto, nada faço.
Permaneço no mesmo lugar, imóvel como uma estátua, apenas lhe admirando. A
idéia de transformá-la me passou pela cabeça por diversas vezes, mas logo trato
de esquecê-la. Não seria a mesma coisa. Ela perderia o seu charme, e, sobretudo,
sua vivacidade, a saúde que ostenta em seu corpo. Deixaria de ser humana, para
se tornar uma criatura da escuridão, com a única pretensão de sobreviver a cada
dia, alimentando-se de sangue. Que coisa horrenda. Não quero um destino tão vil
para uma mulher tão especial. Pelo menos por enquanto. Enquanto puder manter
meu controle, assim o farei. Não creio que conseguirei por muito tempo. Seria
maravilhoso vê-la gritar com minha chegada, amedrontada ao notar minhas presas
afiadas em seu pescoço, a impossibilidade de uma fuga. Imensamente prazeroso. No
entanto, eu ainda me seguro...
Curti demais esse conto. Que triste que ele só olhava a garota da janela... mas pelo menos ele não a matou. Ele pensou nela antes de colocar os instintos dele em 1º lugar. :D Bacana esse conto.
ResponderExcluir