domingo, 20 de maio de 2012

Sangue

 
   Todas as noites mantenho-me no mesmo lugar, no alto de um prédio colossal, no centro da cidade de Belo Horizonte, apenas observando o movimento, admirando a lua, bela, um astro consagrado aos apaixonados, ou aos amaldiçoados. Faço parte desse segundo grupo. Não posso taxar minha sina apenas como uma maldição. Me concedeu alguns séculos prazerosos de vida. Vida também não é uma palavra muita correta para indivíduos que se encontram na minha situação. Em realidade, muitos me classificam como um morto vivo, amante da escuridão, ser das trevas, um demônio sanguinário. Talvez eu seja mesmo. Não me importo de ser chamado de nenhuma dessas coisas. Acabei me acostumando. Faz tempo desde que deixei ser humano, de maneira que nem ao mesmo me recordo de como era ser alguém normal. 

  Foi ainda no século 18, durante uma expedição francesa em terras brasileiras. Sou europeu. Fui parar nessas terras por um acaso do destino. Havia vindo apenas por curiosidade, disposto a conhecer a fauna rica desse lugar. Era um biólogo renomado no meu país. Respeitado por todos. Tinha uma família linda, uma bela mulher ao meu lado. Ela se chamava Rita. Tenho saudades dela. Nosso vínculo afetivo foi cruelmente destruído. Em nosso navio, havia um homem um tanto estranho. Ficava apenas no interior da embarcação. Dizia não ter um estômago muito preparado para encarar o balançar incessante das águas do mar. Pelo que me recordo o bendito não se arriscou a tomar sequer um banho de sol no convés. Tinha seus motivos o maldito.  Devo acrescentar que agora enfrento o mesmo problema. Que falta sinto de uma caminhada relaxante durante o entardecer. Bons tempos. 

  Fui sua primeira vítima. Na última noite de viagem, resolvi ir até a proa observar o mar. Era algo que me deliciava. O movimento suave das ondas se quebrando contra a madeira do navio. Algo demasiadamente comum, mas que me fascinava. Sempre fui muito ligado a natureza, sendo um observador nato dessa maravilha de Deus. Passava horas nessa diversão, acompanhado de uma boa bebida, velha parceira. Apesar de não ser mais um humano, ainda conservo o mesmo gosto pelo álcool. Delicioso. Meu paladar continua apurado, devo confessar que até mais do que o normal. Seria uma boa explicação para entender o motivo pelo qual seres como eu, sentem tanto prazer ao saborearem alguns goles de sangue. Que líquido maravilho. É a única coisa capaz de saciar minha fome e sede ultimamente. 

    Estava eu, absorto em milhares de pensamentos, tragado pela ansiedade em desembarcar nas terras brasileiras, defrontar-me com toda a sua beleza natural, sua imensidão verde, que como sempre ouvia falar e confirmei pessoalmente, é vasta e bela. Não percebi a aproximação do homem que mudaria a minha vida para todo o sempre. Não tive nem chance de reagir. Quando notei sua presença, seu par de presas reluzentes e extremamente afiadas, já penetravam em meu pescoço, fazendo um jato de sangue espirrar, manchando por completo as minhas vestimentas. Foi bastante rápido. Quando dei por mim, já estava caído no chão, manchado de vermelho da cabeça aos pés, a ponto de desmaiar. Me recordo bem da sensação inédita que experimentava em meus últimos momentos como humano. Era como se cada pedaço de meu ser queimasse, como um carvão em brasa. Uma febre poderosa, a qual nunca havia tido o desprazer de experimentar. Então, vieram as trevas. Quando despertei, já não era mais o mesmo. 

  Acordei em minha cabine, um tanto desorientado, perdido. Ao meu lado, estava Rita, minha amada. Tinha uma expressão preocupada em sua face, apreensiva. Assim que percebeu meus olhos aberto, abriu um sorriso brilhante nos lábios, e começou a me beijar, desesperada. Senti cheiro de medo em seu corpo. Um odor incômodo, repulsivo. Um outro aroma também se misturava a esse primeiro, doce, extremamente suave. Despertou em mim um desejo incontrolável, uma vontade insana de agarrar minha mulher e lhe rasgar a carne, como um animal selvagem, indomável. Senti-me torturado por esse cheiro, pela proximidade a qual estava sendo submetido a ela, uma aproximação perigosa, fatal. Não resisti aos meus novos instintos. Agarrei Rita com violência pelo cabelo, deixando o seu pescoço exposto, pronto para ser penetrado. O perfurei com minhas presas recém adquiridas e suguei o máximo de sangue que fui capaz, levado por uma fome insaciável, um prazer demoníaco, assustador. Quando voltei a pensar racionalmente, já era tarde demais. Rita estava branca como cera, e sangrava descontroladamente. Um arrependimento gélido dominou o pouco de emoções que ainda me restavam. Apesar de triste, arrasado por dentro, sequer uma lágrima rolou de meus olhos. Naquele momento, percebi que não era mais um biólogo cheio de ambições e com uma família feliz ao seu lado. Havia me tornado um monstro, para toda a eternidade. 

  Depois daquilo, desapareci, me misturei à multidão. Nunca mais ouviram falar em mim. Tornei-me um cidadão brasileiro. Vivo agora em um apartamento no centro de Belo Horizonte, de frente para o belo parque municipal. Que lugar maravilhoso. Fico observando aquelas belas árvores, e sinto falta da vida que levava no passado. As coisas poderiam ter sido bem diferentes. Infelizmente, nada acontece da maneira que esperamos. No entanto, me considero feliz, apesar do pesadelo que vivo desde muito tempo. Eu poderia já estar morto, mas ao contrário disso, sigo respirando como qualquer outra criatura. Sou apenas privado de caminhar livremente enquanto o sol não se por. Não me incômodo com isso. A vida noturna sempre foi mais interessante, divertida, mesmo em meus tempos de humano. Além disso, é nesse horário que posso vê-la, desprotegida, pronta para ser surpreendida. Um alvo fácil. Não me atrevo a feri-la. Pelo menos, enquanto ainda conseguir manter meu controle. 

  Bela mulher. Mora do outro lado da rua, também em um apartamento. Elegante, assim com Rita era. Foi paixão a primeira vista. Dizem que vampiros não tem sentimentos. Discordo. Devo ser uma exceção. Sentimos emoções de uma maneira diferente, inaceitável para os outros, mas não somos apenas um pedaço de carne ambulante. O que nos dá prazer é o desespero na expressão de uma pessoa no momento em que lhe surpreendemos, na hora em que estamos prestes a lhe tirar a vida. É muito gratificante. É o mesmo que os caçadores sentem quando partem em suas aventuras, com a diferença de que não somos tão bem compreendidos como eles. 

  É jovem, pelo que posso perceber. Tem cara de menina. Aposto que ainda não deixou a adolescência. Apesar disso, ostenta uma expressão digna de mulher feita, um olhar poderoso, sedutor. Me deixa enlouquecido. É uma pena que meus desejos carnais tenham se apagado após minha transformação. Queria poder ainda sentir o tesão humano. Deitar-se com mulheres estonteantes era minha rotina no passado, mas agora, contento-me apenas com alguns bons pescoços. Queria tanto poder voltar a ser vivo. Quem sabe, viver novamente uma paixão. Trataria essa garota como uma verdadeira dama, com muito carinho. Não me atrevo a me aproximar demasiadamente. Tenho medo de machucá-la. Gosto de observá-la enquanto dorme, é a maior satisfação de minhas noites. Perder essa distração seria terrível. Um golpe duro em minha tediosa eternidade.

  Continuo no alto desse prédio, observando a garota dormir em seu quarto, pela vidraça da janela. Por morar em um andar elevado, creio que ela não se preocupe com sua segurança. Um tanto improvável que algum louco adentre em seu quarto pela janela. Seria para um vampiro? Não. No entanto, nada faço. Permaneço no mesmo lugar, imóvel como uma estátua, apenas lhe admirando. A idéia de transformá-la me passou pela cabeça por diversas vezes, mas logo trato de esquecê-la. Não seria a mesma coisa. Ela perderia o seu charme, e, sobretudo, sua vivacidade, a saúde que ostenta em seu corpo. Deixaria de ser humana, para se tornar uma criatura da escuridão, com a única pretensão de sobreviver a cada dia, alimentando-se de sangue. Que coisa horrenda. Não quero um destino tão vil para uma mulher tão especial. Pelo menos por enquanto. Enquanto puder manter meu controle, assim o farei. Não creio que conseguirei por muito tempo. Seria maravilhoso vê-la gritar com minha chegada, amedrontada ao notar minhas presas afiadas em seu pescoço, a impossibilidade de uma fuga. Imensamente prazeroso. No entanto, eu ainda me seguro...


Um comentário:

  1. Curti demais esse conto. Que triste que ele só olhava a garota da janela... mas pelo menos ele não a matou. Ele pensou nela antes de colocar os instintos dele em 1º lugar. :D Bacana esse conto.

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