sábado, 22 de fevereiro de 2014

Apartamento 423



    Fazia tempo que Jeff procurava por um apartamento para alugar. Havia decidido morar sozinho, cansado de ficar sob o mesmo teto da mãe, mulher neurótica que lhe cobrava um emprego decente, o que significaria abrir mão de seu sonhos, por mais loucos que fossem. Não queria desistir de ser um ator de renome, independente do quanto pudesse ser penosa a caminhada ao estrelato. Verdade que o dinheiro que ganhava representando não cobria quase nada das suas despesas, não servia nem para pagar a fatura alta do seu cartão de crédito, mas mesmo sofrendo tanto para se manter, não descartaria seu dom para as artes para pegar um emprego qualquer de telemarketing, condenando-se ao inferno de uma central de atendimentos. Não. Preferia morrer de fome.

     Sua teimosia irritava sua mãe profundamente, a ponto das brigas se tornarem recorrentes, tão naturais quanto respirar. Assim que chegava em casa após a apresentação noturna no teatro de amadores no centro de Belo Horizonte, era recebido com uma saraivada de palavras afiadas como navalhas, alcunhas que seriam terríveis até para um cão sarnento, a mais leve o apelido carinhoso de vagabundo. Não conseguia nem mesmo responder as maldições de sua mãe, pois ela falava tão rápido, que não restava brecha para retrucar. Não é de se espantar que o rapaz quisesse um porto seguro para se ver livre das garras da megera, antes que um dia perdesse as estribeiras e fizesse algo do qual acabasse por se arrepender.

    Não é preciso dizer que Jeff ficou eufórico ao ver nos anúncios do jornal, um apartamento disponível em um bairro próximo do centro, mais do que bem localizado. Não pode conter a ansiedade e se dispôs a visitar o local no mesmo dia, o coração batendo acelerado, vitimado pela animação explosiva do seu senhor. A manhã nem terminou e já estava sentado em uma das cadeiras da imobiliária que havia feito o anúncio, tomado por uma expectativa nervosa que poderia mata-lo se não tomasse cuidado.

   Um senhor baixo e com barriga inchada de cerveja lhe recebeu em seu escritório, o contrato de aluguel preso embaixo de seus dedos gordos, esperando para ser assinado. Jeff o faria, claro, não lhe restava dúvidas de que queria o apartamento, na verdade nunca houve a mínima indecisão. Mesmo se o lugar fosse marcado pelo sangue de crimes antigos, não mudaria de ideia. Tudo para se ver longe da megera.
— É um lugar muito bem localizado, ponto de ônibus na porta de casa, comércio a minutos de caminhada. O que acha? Não vai perder essa chance, certo?
— É mesmo um apartamento e tanto! O problema é que tenho orçamento apertado, e dependendo do valor do aluguel, será impossível firmarmos um acordo. – respondeu Jeff, desanimado ao recordar-se da pilha de contas que ainda tinha que pagar.
— Não se preocupe com isso! Temos os melhores preços do mercado, duvido que vá achar apartamento tão bom e barato em qualquer outro lugar. Trezentos reais está bom para você?
— Sério? Ótimo! Onde eu assino?
— Muito bem, adoro pessoas decididas, que sabem o que querem. Assine na linha pontilhada e vai ser feliz, meu amigo! — falou o vendedor gorducho, sorriso aberto nos lábios, os dentes impecavelmente brancos expostos e brilhando sob a luminosidade amarelada de lâmpadas elétricas.

     Assinou sem nem mesmo ler o contrato e com os papeis em mãos, pegou um táxi e foi sem perder tempo para o apartamento que passaria a chamar de lar. O metal da chave da porta de entrada surgia reconfortador em sua pele, com uma frieza que tocava fundo em sua alma, a espada que ergueria para declamar sua independência e assim cortar as correntes que lhe prendiam ao reinado de ignorância da megera. Sentia-se livre como um pássaro, a felicidade brilhando em seus olhos, que esquadrinhavam sua nova vizinhança com inquietante curiosidade, ansiosos por conhecerem as ruas que lhe cercariam e os rostos com os quais passaria a trombar em seus passeios de rotina.

     Nada a reclamar do prédio. Era uma construção de cinco andares, pintada em tons amarelos que não mostravam desgaste e nem mesmo o mofo decorrente da chuva. Dispunha de um porteiro de feições gentis, que ficava no turno da manhã e tarde, e outro para a noite, sujeito que em sua primeira visita não pode conhecer. O que falar do apartamento? Ora, melhor impossível. Espaçoso, dois quartos e uma sala de estar que causaria inveja a muita gente. As janelas em sua maioria davam para a vista de uma praça adorável, enfeitada por arvoredos frondosos e flores da estação em constante desabrochar. Do que poderia reclamar? De nada, aparentemente.

    Combinou que uma carreta fosse buscar seus pertences no dia seguinte e antes que uma discussão amarga com a mãe pudesse ganhar proporções, já estava indo embora, sem se dar ao trabalho de olhar uma vez que fosse para trás. A megera tentou lhe agarrar e impedir que fosse, chegando a derramar lágrimas, que para Jeff soaram falsas, mais mentirosas do que as de um crocodilo. Sabia que era só cena da mãe, furiosa por ter perdido a batalha, incapaz de aceitar a derrota. Ignorou a interpretação digna de Oscar dela e foi viver sua vida, sentindo-se leve como nunca antes em sua curta existência.

     Os móveis foram dispostos na sala de estar do apartamento, um pequeno amontoado de bens materiais que havia acumulado em seu tempo de moradia com a mãe, o suficiente para um jovem rapaz. Na sala de estar colocou sua televisão de LCD de quarenta polegadas, que no cômodo vazio pareceu estranha, como que deslocada, dando a impressão de não pertencer ao lugar. Contava com poucos móveis para encher a sala, um deles uma estante com alguns livros, que só não levou para o quarto por achar que ficaria melhor ali, complementando a paisagem sem muitos detalhes. Uma poltrona velha que pertencia ao falecido pai surgiu também como um bom acréscimo, mesmo que estivesse desgastada, com buracos em seus braços, o recheio escapando em fiapos enegrecidos de algodão. Fora esses três móveis, nada mais havia. Percebeu logo que em breve teria de ir as compras e fazer ainda mais contas em seu cartão de crédito quase estourado. Eis o preço que se paga ao se declarar independente.

     Arredou a poltrona de couro negro para perto da parede da direita e seus olhos acabaram captando uma coloração escurecida na tinta branca, uma mancha com perfeitos contornos humanos. Abaixou-se para poder enxergá-la melhor e percebeu que a figura se assemelhava bastante a sombra de uma pessoa que tivesse se sentado recostada bem junta à parede, os braços caídos flacidamente ao lado do corpo e a cabeça tombada para a frente, como um boneco de juntas flexíveis. A curvatura dos ombros estava muito relaxada, dando a impressão de que o sujeito representado ali estava desacordado ou talvez... morto. Um frio percorreu a espinha de Jeff ante a esse pensamento e seu olhar se desviou da misteriosa forma da parede. Talvez fosse paranoia da sua cabeça. Tratou de ignorá-la e cuidar de sua vida.

     Saiu para o teatro e nessa noite apresentou-se para um público pequeno, um bando de adolescentes inquietos em um canto e um casal de idosos que dormiram do início ao fim da peça. Foi embora desgostoso para casa, o pouco dinheiro ganho no dia guardado em sua carteira, míseras quatro notas de cinco reais. No caminho comprou uma garrafa de vinho que correspondia a metade desse valor, bebida de procedência duvidosa, que com toda a certeza lhe daria uma ressaca terrível na manhã seguinte, mas isso não lhe importava. Precisava relaxar um pouco, nem que para isso tivesse que despertar expelindo jatos de vômitos malcheirosos de sua boca. Tudo para afastar as vozes da megera de sua cabeça, ecoando desgraças para o filho rebelde e os seus sonhos de liberdade.

    Adentrou em seu apartamento quase vazio e foi logo apertando o interruptor para acender a lâmpada elétrica. Colocou a garrafa de vinho na bancada de mogno da pequena cozinha ao lado da sala de estar e empenhou-se em procurar por um abridor, vasculhando as gavetas do seu armário embutido, um dos poucos móveis que havia comprado em seus longos anos de estadia com a mãe. Não encontrou o que queria, e sim uma mancha negra nos azulejos, mais ao canto do cômodo, a forma perfeita de uma pessoa estirada ao chão de braços e pernas abertas, cada um apontando para uma direção diferente, como uma bússola que houvesse enlouquecido. Olhou para a silhueta tão assustadoramente humana e sentiu o seu coração acelerar no peito, vítima de uma arritmia que poderia não terminar bem. “O que diabos será essa coisa?”, pensou Jeff, incapaz de encontrar uma resposta boa o suficiente para explicar a origem das misteriosas silhuetas em seu apartamento.

     De súbito, o ruído estrondoso de um tiro ecoou por todo o apartamento, entrando fundo em seus tímpanos e arrancando um grito agudo de sua garganta. Seguido ao primeiro disparo vieram muitos outros, uma saraivada de explosões que deixaram o odor característico de pólvora no ar, além de levantar poeira de reboco, como se os projéteis da arma houvessem trespassado a massa da parede e a esfarelado com o impacto. Jogou-se ao chão por instinto e esperou que os tiros cessassem, fazendo orações que acreditava terem sido deixadas em seus tempos de infância. Assim que o silêncio se apossou do apartamento, Jeff se levantou cambaleante, os olhos injetados, esquecido de sua garrafa de vinho, que jazia estourada por cima da bancada de mogno, um alvo infeliz do atirador desconhecido. Só queria saber o que havia acabado de acontecer.

     Foi para a sala de estar e estancou de imediato ao ver uma poça de sangue escorrendo do ponto exato onde estava gravada a silhueta humana na parede. Jeff fechou os olhos, a respiração irregular, sentindo o terror assomando em seu íntimo, uma criaturinha de focinho longo e presas pontiagudas mordiscando sua mente e estraçalhando com sua serenidade. Por fim abriu os olhos, atemorizado de deparar-se novamente com o sangue brilhoso a escorrer, infiltrando-se nas tábuas de madeira do apartamento e indo gotejar nos andares inferiores, quem sabe na mesa de jantar de uma família reunida e em seus pratos cheios de sopa. Pensamento terrível, que continuou mesmo depois de comprovar com seus olhos que nada havia no piso da sua sala. Limpo como antes. Decidiu que era melhor se deitar.
***
 
Despertou na manhã seguinte crente de ter sonhado com os acontecimentos estranhos da última noite e antes de sair da cama, decidiu que não ficaria pensando nessas coisas absurdas e por certo fantasiadas por sua mente cansada. Arrumou-se e logo já estava nas ruas da cidade, absorto nos problemas que teria de resolver ao longo do dia. Lá para as oito da noite retornou para o apartamento, as lembranças do estranho ocorrido cuspidas de sua cabeça e momentaneamente esquecidas. Tinha coisas melhores nas quais pensar, uma delas a garota morena de belas coxas que havia conhecido na fila do banco e da qual havia ganhado o número de telefone. Estava eufórico demais com o possível encontro para ficar refletindo a respeito do que deveria ter sido mero devaneio.

   Assim que colocou os pés em seu apartamento, decidiu que precisava tomar um banho e tirar o cheiro desagradável de rua. Encheu a banheira e se jogou na água morna perfumada por sais. Deixou o corpo relaxar, o queixo tocando a espuma branca, os músculos amolecidos pelo contato refrescante da água, capaz de curar dores. Fechou os olhos e entrou em um estado de sonolência que ameaçou lhe arrastar para um sono profundo, nas maravilhosas Terras do Sonhos. Quando estava perto de realmente adormecer, a percepção de ter um dos braços agarrado por dedos lhe fez abrir os olhos de uma única vez, arregalados em um desespero mudo que não pode sequer ser manifestado, pois no segundo seguinte já estava submerso na água cheirosa, se afogando como uma criança que é deixada sozinha na banheira. Entregou-se a uma luta sofrível pela vida, os braços se debatendo furiosamente, derramando água por todos os cantos e tentando escapar do aperto invisível da entidade desconhecida. Nesse momento, Jeff acreditou que morreria e viu suas memórias passando feito um filme por sua cabeça.

    Em uma desesperada demonstração de força, Jeff pulou para fora da banheira e caiu esparramado no piso de azulejos do banheiro, cuspindo água e tossindo dolorosamente, ansiando por ar como um peixe que teve azar de ser pescado. Vomitou o líquido em excesso do seu estômago e levantou-se tonto, procurando entender o que havia acabado de lhe ocorrer. Enfiou a mão na banheira com medo de ser agarrado novamente, e como isso não ocorreu, tirou o tampão para a água escoar pelo ralo, até que ela ficasse vazia e o seu fundo pudesse ser visto. Na superfície de pedra branca dela havia outras das silhuetas humanas, a forma de uma pessoa com os membros voltados para uma mesma direção, como que inertes, endurecidos pela violência de uma morte cheia de sofrimento. Ficou zonzo ao deparar-se com a imagem inesperada e o desejo de tomar um banho deixou de ser uma prioridade. Abandonou o banheiro se decidindo por encher a cara no boteco mais próximo.

    Foi para um bar chamado “Louras Geladas”, onde pediu logo de cara uma dose de cachaça, planejando ficar bêbado o suficiente e cair em um estado de letargia que o impossibilitasse até mesmo de sofrer de alucinações. Mal o copo foi depositado na sua frente, a bebida já descia por sua garganta, a queimando de forma tranquilizadora, ajudando-o a afirmar que ainda estava lúcido, inserido na realidade. Após a terceira dose, os pensamentos mostravam-se turvos e o episódio da banheira começava a ficar distante, uma recordação agourenta imersa nas profundezas do lago negro de sua mente angustiada.  Quando partia para a quarta dose, um homem encurvado e de bigode mexicano no rosto sentou-se ao seu lado, pedindo uma cerveja com um tímido erguer de mão. Virou-se para Jeff, e como se o conhecesse de longa data, foi puxando assunto com a maior naturalidade do mundo.
— Você é o novo morador do apartamento 323 do edifício Cervantes?
— Sim. — respondeu Jeff, olhando desconfiado para o estranho. — Como sabe disso?
— Me contaram. Sabe como o pessoal costuma ser fofoqueiro, ainda mais em se tratando da vida alheia. — disse o sujeito com bigode mexicano, bebericando um gole da cerveja que foi colocada na sua frente. — Gostou do apartamento?
— É agradável. — respondeu Jeff, recordando-se do episódio da banheira e sentindo uma tremedeira alucinada varar seu corpo de alto a baixo.
— Não parece estar muito certo disso. Aconteceu algo estranho?
— Talvez... bem, eu não sei explicar e mesmo se tentasse, você provavelmente me chamaria de louco. Não vai acreditar em mim.
— Pode tentar companheiro. — disse o homem do bigode, com um sorriso enigmático na face. — Não me surpreendo com nenhuma estória que me contarem sobre aquele apartamento. Nada mesmo.
— O que você quer dizer com isso?
— Não sabe dos suicídios? — perguntou o sujeito do bigode, notando o quanto os olhos do Jeff saltaram nas órbitas, em completa surpresa. — Pelo visto não. Bom, já que comecei o assunto vou termina-lo. Foram mais ou menos uns cinco ocorridos dentro do apartamento, e me atrevo a arriscar que cada um dos cômodos foi palco de pelo menos uma morte. Um afogado no banheiro, outro com a cabeça estourada por uma bala na sala de estar, uma com o pescoço cortado no quarto... se aquelas paredes falassem, contariam coisas terríveis para quem quisesse ouvir.
— Está brincando comigo? — questionou Jeff, inquietude gritante em suas feições perturbadas.
— E eu brincaria com um negócio desses? Por acaso tenho cara de palhaço?
— Acho melhor eu ir embora. Não estou me sentindo bem. — disse Jeff, tomando o copinho de cachaça a sua frente de um só gole e se levantando apressado, sem preocupar-se em despedir-se do importuno companheiro.
— Tudo bem. Nós vemos por ai, pelo menos assim espero.

    Foi para o apartamento desesperado por cair em sua cama e de lá não sair até o raiar da próxima manhã. Nada de ficar pensando em baboseiras, lendas urbanas que por certo eram mentiras inventadas por um sujeito bêbado e com as ideias desconexas na cabeça. O episódio da banheira? Um delírio criado por sua mente cansada, sedenta por um adormecer de horas para se recuperar da fadiga da nova rotina que havia escolhido para si. Tinha que ser essa a explicação para os fenômenos que vinha enfrentando ultimamente. Quem sabe, talvez estivesse ficando louco, precisando de férias no hospício mais próximo. Agora, encarar o ocorrido como real, não, isso já era demais. Nunca acreditou no sobrenatural, e não começaria a fazer isso de uma hora para a outra.

    Jogou-se na cama e fechou os olhos de imediato, sentindo-se acolhido pela escuridão do quarto. Estava um pouco bêbado pela quantidade de cachaça ingerida e em questão de minutos estava ressoando ruidosamente, feito uma turbina defeituosa de avião. Sua consciência foi tragada para a irrealidade de um sonho, no qual se via sentado na beira da cama olhando para uma mulher sentada em uma cadeira à sua frente, uma jovem de cabelos negros e vestida em uma camisola quase transparente, que se grudava a silhueta do seu corpo e dava destaque aos seus contornos delicados, aos seios pequenos. Ela olhava pela janela com as feições entristecidas, vislumbrando o nada na esperança de enxergar um sentido em sua vida miserável. Na mão direita segurava uma faca cuja lâmina afiada brilhava ao toque do luar que se infiltrava pelas frestas da janela. O reflexo era rubro, da cor do sangue que verte de uma ferida recente.

      Ela olhou por um segundo para Jeff, com sorriso lunático despontando em seus lábios vermelhos, o batom borrado, dando a impressão de que tivesse acabado de se empanturrar com amoras. Levantou a faca na altura do ombro e a cravou com todas as forças no próprio pescoço, fazendo um jato de sangue explodir pelo corte aberto e tingir as paredes mais próximas, por onde escorreram até empoçar no chão. Jeff gritou ante a essa cena, o horror crescendo em suas entranhas ao notar a maneira como a cabeça dela caia para trás, em um ângulo torto, impossível de ser imitado, as dobras da pele se separando e os ossos perdendo contato, até a espinha se quebrar com um ruído seco que lhe lembrou um galho se partindo sob a pressão de mãos musculosas. A cabeça da mulher caiu rolando pelo carpete do quarto, indo se perder na escuridão debaixo da cama. O corpo dela levantou-se e caminhou desnorteado de um lado para o outro, feito uma barata decepada que ainda corre pelos cantos pelo efeito dos seus últimos espasmos de vida. O cadáver veio com os braços estendidos na direção do Jeff, que berrava como uma criança aterrorizada, ansiosa por se ver livre da trama sombria de seus próprios pesadelos.

   Acordou com um berro sufocado na garganta. Sentou-se na cama suando frio, olhando ao redor com medo de deparar-se com a jovem decepada. Ficou aliviado ao ver que o quarto estava vazio a não ser por... levantou-se da cama, o coração disparado no peito, apertando os olhos para tentar enxergar melhor a vaga forma na parede próxima da janela, uma mancha escura que tinha a exata forma de uma pessoa sentada com a cabeça tombada para o lado, uma terrível caricatura da jovem que havia visto em seu pesadelo noturno. Sentiu-se sem ar e saiu correndo do quarto, escorregando em algo viscoso no chão e se estatelando pesadamente, o ombro batendo na quina da cama e explodindo em galáxias inteiras de dor. Olhou para o piso e viu sangue vindo de debaixo da cama, uma poça grande o bastante para cobrir a sola inteira de seus pés. Gritou como nunca e saiu dali com a calça marcada na frente por um círculo úmido de urina.

   Da sala foi direto para a porta de entrada do apartamento, decidido em retornar para a casa da mãe, mesmo que tivesse que continuar pagando os aluguéis firmados por contrato por alguns bons meses. Se amaldiçoou por ter sido tão precipitado em suas decisões e mais ainda por ter sido um péssimo filho. Talvez sua mãe tivesse mesmo razão, a carreira de ator era um erro, nunca seria capaz de lhe dar o dinheiro suficiente para se sustentar futuramente, para ser um homem independente como sempre sonhou. Quem sabe deixasse o teatro de lado e conseguisse um emprego sério, algo que desse grana. Ninguém vive de sonhos, eis a frase mais famosa da megera, que agora lhe faz todo o sentido do mundo. No futuro pode ser que retome sua carreira de artista, mas por hora, a única coisa que quer é sua antiga vida de volta e estar a quilômetros de distância do maldito apartamento.

   Colou a mão direita na maçaneta da entrada e tentou girá-la para o lado, surpreendendo-se ao notar que ela mal saia do lugar, afixada no mesmo ponto por alguma força contrária desconhecida. Chutou a madeira da porta furioso, como um animal enjaulado que resolvesse querer recuperar a vida selvagem que lhe foi roubada. A golpeou freneticamente, mas a única coisa que conseguiu em troca foi ferir os dedos e desgastar-se. Deixou a porta de lado, forçando a mente a trabalhar em alta velocidade, as engrenagens girando rápido demais, a ponto de levar os circuitos mentais a um curto irreparável. Suor escorria por suas axilas, pela fronte, uma espécie de nervosismo pisoteava sua tranquilidade e o colocava muito perto de um ataque de insanidade. Lembrou-se do seu falecido tio Carlos, morto por um momento estressante que rompeu todos os vasos sanguíneos do seu cérebro. Não seria um absurdo pensar que pudesse ter o mesmo destino.

    O som ensurdecedor de um tiroteio surgiu do vazio de sua sala e entrou fundo em seus ouvidos, fazendo-o gritar de surpresa e terror. Olhou para a direção do ruído e viu a forma de um homem parada no centro da sala, um vulto vago com um dos braços levantados na altura da cabeça, a forma de uma arma calibre 32 despontando do que parecia ser uma de suas mãos. O dedo da aparição apertava o gatilho sem parar, fazendo soar a cada vez que o pressionava o som de um disparo, que explodia a cabeça sombria dele e espalhava pelos arredores sangue feito de sombra, que escorria pelos poucos móveis e se concentrava no chão na forma de grandes poças. Para Jeff esse foi o limite do que sua consciência sempre realista e descrente de fantasias poderia aguentar. Saiu correndo da sala para o quarto, com um plano de fuga desesperado já articulado em sua mente.

   No corredor que ligava a sala ao banheiro e ao quarto, trombou com a forma cambaleante de um homem encharcado, gotejando água pelo piso e deixando marcas de suas passadas por onde pisava. As feições da aparição estavam enegrecidas, os olhos envoltos por uma camada amarelada semelhante a pus seco. A coisa abriu a boca e vomitou um jato de água negra e malcheirosa, que foi se perder nos pés de Jeff, que com um grito, passou correndo pela aparição e adentrou em seu quarto, os olhos fixos na janela escancarada, lhe convidando para um pulo no abismo, a um voo rápido até a calçada lá embaixo. Por um momento não teve certeza do queria fazer, mas ao vislumbrar a jovem com a faca ensanguentada sentada na cadeira ao lado da cama, suas convicções voltaram com força total. Tinha que pular. Era isso ou enlouquecer dentro do circo de horrores em que seu apartamento havia se transformado.

      Passou pela jovem no exato momento em que ela cortava o pescoço com a faca e fazia esguichar sangue pelo quarto, um véu vermelho que tingia a tudo que tocava. Jeff subiu no umbral da janela e olhou de esguelha para baixo. Quatro andares, alguns metros até o chão. Deixou um pé tocar o vazio, retornando logo em seguida com ele para dentro, o corpo tremendo descontroladamente, a boca seca pelo medo de altura. Olhou para trás e viu a cena do pesadelo se repetindo, o pescoço da mulher tombando para o lado, os tecidos da pele perto de se romperem e a vértebra se quebrar, deixando a cabeça rolar livre para algum canto escuro qualquer, onde talvez nunca mais pudesse ser encontrada. Não precisava ver o resto. Na verdade, não queria ver mais nada. Pulou de olhos fechados, ao encontro da sua salvação.


   O zumbido do vento lhe ensurdeceu e não houve sequer tempo para pensar em qualquer coisa. A única imagem que surgiu em sua mente foi a da sua mãe lhe gritando impropérios, um filme rápido dos melhores momentos da megera, que conseguiram encher seu coração de raiva e saudades ao mesmo tempo. Por fim ela lhe surgiu chorosa, pedindo em meio ao pranto para que o filho não lhe abandonasse, não virasse as costas e a deixasse sozinha, fadada a aguentar os próximos anos de sua vida em constante e incômoda solidão. Lembrou-se de a ter ignorado e seguido em frente, mal escutando as maldições que ela lhe atirava. Dizem que praga de mãe pega e nada no mundo é capaz de salvar um homem delas. Jeff chegou a pensar que tudo o que lhe acontecia era fruto de uma praga das boas, um feitiço odioso da velha bruxa que havia lhe dado à luz, porém antes que seu raciocínio pudesse continuar, seu crânio chocou-se com o concreto e tudo o que se seguiu foi profunda escuridão.

Nenhum comentário:

Postar um comentário